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Ciência

A vaca transgênica

Ela é idêntica às vacas comuns, exceto por um detalhe: não tem chifres. Foi criada por uma empresa americana e liberada para criação no Brasil. Mas seu DNA continha genes invasores – vindos de uma bactéria.

por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 set 2020, 16h50 - Publicado em 26 dez 2019 11h59

Ela é idêntica às vacas comuns, exceto por um detalhe: não tem chifres. Foi criada por uma empresa americana e liberada para criação no Brasil. Mas seu DNA continha genes invasores – vindos de uma bactéria.

Reportagem Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz | Ilustração Carlo Giovani | Design Juliana Krauss

Está tudo pronto. Álcool, seringa, tesoura, facão e um martelo de ferro em forma de T. Dois homens dividem as tarefas: o ajudante enlaça a bezerra e a imobiliza, com as quatro patas amarradas, enquanto o chefe coloca o martelo no fogo. Usando a tesoura, eles aparam os pelos em volta dos dois “botões”, os pontos onde estão nascendo os chifres do animal. Injetam uma anestesia no local, mas é preciso segurar com força a vaquinha, que dá um pulo e se contorce de dor: o chefe acaba de decepar o primeiro botão do chifre com o facão, fazendo o sangue jorrar. Ele então pega o martelo em brasa e cauteriza a ferida, gerando uma fumaceira. A bezerra, em estado de choque, já nem se mexe. Só observa os dois homens, apavorada. Mas ainda não acabou. Eles suspendem o animal pelas patas e o deitam do outro lado, para repetir o procedimento com o segundo botão. No final, aplicam um spray cicatrizante no crânio ainda quente. A dor da ferida persiste por dias, semanas, meses.

Essa cena acontece todos os dias nas fazendas. É a descorna, também chamada de “mocha” ou “mochamento”. Alguns pecuaristas dispensam o facão e simplesmente queimam o chifre, que atrofia com a alta temperatura. Outros o removem utilizando um produto cáustico, que pode ser ainda mais doloroso – pois tem ação prolongada e também pode queimar o rosto da bezerra e as tetas da mãe. Em alguns casos, nem se usa anestesia. A descorna é um procedimento doloroso e cruel. Mas virou rotina no gado leiteiro, porque deixa as vacas mais dóceis, facilita a ordenha e reduz os riscos de ferimentos no criador e em outros animais. Existem raças de vaca que nascem sem chifre (“mochas”), mas elas dão menos leite. Os produtores preferem criar vacas leiteiras da raça Holstein, que produzem bastante – e apelar para o ferro em brasa. Assim caminha a humanidade.

Mas e se houvesse uma solução menos cruel e mais tecnológica, ou seja, mais humana? Em 2015, a empresa de biotecnologia Recombinetics anunciou o nascimento de Buri, o primeiro touro sem chifres desenvolvido por edição genética. Seu DNA foi alterado para que ele não tivesse chifres – uma característica que, eis o ponto importante, ele transfere aos descendentes [veja infográfico abaixo]. A ideia é usar o sêmen de machos editados, como Buri, para gerar rebanhos de vacas leiteiras sem chifres. Buri era malhado em preto e branco, do mesmo jeito que uma vaca Holstein, mas sua cabeça era lisa como a da raça Angus, que é mocha. Em questão de dois anos, portanto, a empresa americana conseguiu em laboratório o que os pecuaristas levariam décadas pelo processo natural de cruzamento nas fazendas. A nova tecnologia permitia  acabar com o sofrimento animal, sem reduzir a produção de leite.

A chave da façanha era o chamado “alelo Céltico”, um gene que faz as vacas Angus não desenvolverem chifres. Ele foi introduzido, com precisão, num determinado trecho do DNA de Buri, simulando o que ocorre naturalmente em raças mochas. “Nós sabemos onde o gene deve ir, e o colocamos em seu lugar exato”, disse Tammy Lee Stanoch, o CEO da Recombinetics, à imprensa americana em 2017. “Temos todos os dados científicos provando que não há efeitos fora do alvo.”

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Começava, ali, uma nova fase na evolução agropecuária: a era dos bovinos geneticamente modificados. Em novembro de 2018, o sêmen de Buri foi liberado para uso no Brasil. Até que, no primeiro semestre de 2019, tudo mudou. Uma descoberta feita por acaso revelou que, na verdade, Buri era um animal problemático: continha DNA de bactéria misturado ao bovino. E, pior ainda, suas células carregavam genes de resistência a antibióticos.

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(Design: Juliana Krauss / Ilustração: Carlo Giovani/Superinteressante)
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Tesouras moleculares

Talvez você já tenha ouvido falar da técnica CRISPR (abreviação em inglês para “repetições palindrômicas curtas interespaçadas regularmente e agrupadas”). Ela usa uma proteína, que é produzida naturalmente por bactérias, para cortar e editar o DNA de seres vivos – e tem revolucionado a genética nos últimos anos. Buri foi criado com uma técnica parecida, que se chama TALEN (“nucleases com efetores do tipo ativador transcricional”) e utiliza enzimas. Em 2013, os cientistas da Recombinetics usaram essa ferramenta para cortar fora os genes que fazem nascer chifres nas vacas Holstein.

Assim que as enzimas eliminam aquele pedaço do DNA, a célula tenta consertar o estrago, emendando o corte. Se, nesse exato momento, você fornecer a ela um fragmento genético qualquer, a célula faz algo incrível: simplesmente pega aqueles genes e coloca no buraco. Mas, para que a coisa dê certo, é preciso levar o pedacinho de DNA que você quer inserir até  a região exata do corte.

Para fazer esse transporte, a Recombinetics usou um plasmídeo: uma molécula de DNA presente em bactérias. Na natureza, o plasmídeo geralmente carrega genes que ajudam as bactérias a sobreviver (fornecendo resistência a antibióticos, por exemplo). Em Buri, sua função era transportar fragmentos genéticos.

A partir da célula editada, os cientistas criaram um embrião e o implantaram no útero de uma vaca, no verão de 2014. Depois fizeram figa e aguardaram os nove meses de gestação. Deu certo: Buri nasceu em 2015, com saúde de ferro. Também nasceu Spotigy, um clone dele.

A Recombinetics então entrou em contato com a geneticista Alison Van Eenennaam, da Universidade da Califórnia em Davis (UC-Davis), pedindo que ela abrigasse e estudasse os bezerros. A empresa e a universidade receberam dinheiro do governo dos EUA.

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Spotigy foi sacrificado, em 2016, para que seus tecidos fossem submetidos a análise. A autópsia concluiu que ele era normal e saudável. Buri continuou vivendo nas instalações da UC-Davis, monitorado por Alison.

No final daquele ano, os cientistas deram o passo seguinte: usaram o sêmen de Buri para inseminar dez fêmeas da raça Hereford (com chifre) e gerar filhotes mochos, sem chifre. Em janeiro de 2017, seis gestações foram confirmadas.

Embora o DNA de Buri tenha sido alterado, ele e seus descendentes são geneticamente idênticos aos Holstein normais. Isso porque uma pequena porcentagem dos bovinos dessa raça já nasce, naturalmente, sem chifres. Se você cruzar bois e vacas Holstein que não tenham chifres, vai acabar formando um rebanho onde todos os animais são mochos.

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Mas isso pode levar décadas. Ou seja: a Recombinetics só provocou artificialmente uma característica genética que já existe na natureza.

É algo totalmente diferente do que acontece com a soja transgênica, por exemplo (que possui genes de outra espécie, e só existe devido à engenharia genética). Por isso, a empresa estava otimista com as perspectivas comerciais da nova tecnologia.

Mas, naquele mesmo mês, apareceu o primeiro imprevisto: a FDA emitiu a Norma Regulatória 187, estabelecendo que animais geneticamente editados seriam encarados como se fossem medicamentos (new animal drugs). Esse termo estranho significava que Buri, seus filhotes e as gerações seguintes teriam que passar pelos mesmos testes aplicados a  novos remédios – um caminho longo e árduo, que pode levar mais de dez anos e consumir dezenas de milhões de dólares. “A FDA tomou essa decisão quando os bezerros ainda estavam no útero. Ficamos tentando entender o que significava para eles”, diz Alison.

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Na prática, a norma 187 servia para dificultar a liberação de animais criados via edição genética – que a FDA sempre encarou com receio. O salmão transgênico AquAdvantage, único aprovado pela agência até hoje, levou mais de 20 anos para conseguir isso (seus criadores pediram a liberação à FDA em 1993, mas só a obtiveram em 2015). O peixe modificado cresce na metade do tempo do salmão convencional. Sua inventora, a empresa AquAbounty, introduziu no salmão do Atlântico o gene do hormônio do crescimento de outra espécie de peixe, o salmão-rei.

A nova regra da FDA foi um banho de água fria na Recombinetics. Mas ela não se deixou abater. Em setembro de 2017, nasceram os seis filhotes de Buri: cinco machos e uma fêmea, todos saudáveis – e mochos. E a empresa começou a procurar outros países para criar suas vacas sem chifres. Entre eles, o Brasil.

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(Design: Juliana Krauss / Ilustração: Carlo Giovani/Superinteressante)
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Churrasco de alelos

“Nós não precisamos dos Estados Unidos”, disse Mitch Abrahamsem, diretor científico da Recombinetics, à revista científica Nature em fevereiro de 2019. Algumas semanas antes, a empresa tinha recebido autorização da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) para usar sua tecnologia no Brasil. A CTNBio é um conselho, criado em 2005, que orienta o governo federal em temas científicos. Tem 27 membros, que são escolhidos pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e incluem especialistas em saúde humana e animal, biotecnologia e meio ambiente.

A Recombinetics queria usar o sêmen de Buri para inseminar vacas brasileiras. Para isso, ela fez uma parceria com a AgroPartners Consulting, uma empresa fundada em 2016. Ela é formada por sete pesquisadores, e foi um spin off da Unesp de Araçatuba. Seus clientes incluem grandes empresas de papel e celulose e produtores de camarão, tilápia, bovinos de corte e leite, ovinos e equinos. O sêmen de Buri seria usado em rebanhos existentes no Brasil, para gerar novos animais geneticamente modificados. Inicialmente em pequena escala, para ver como os nossos tipos de vaca reagiriam a ele. “As raças Gir, Holandesa, Jersey e Wagyu, entre outras, se beneficiariam disso”, diz José Fernando Garcia, da AgroPartners.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, os bezerros filhos de Buri provocavam um impasse inusitado. As normas americanas determinam que os animais utilizados em pesquisas científicas devem ser sacrificados. A equipe da geneticista Alison Van Eenennaam, que estava cuidando dos animais, tem como política comer a carne dos bichos utilizados em testes. Mas isso só poderia ser feito se os descendentes de Buri fossem considerados seguros para consumo humano.

Do contrário, sua carne deveria ser incinerada. E não é barato. “Isso me custa US$ 0,60 centavos por libra de animal”, diz Van Eenennaam. Equivale a aproximadamente R$ 5 por quilo – o que dá R$ 3 mil a R$ 5 mil por animal, conforme o tamanho dele. “É um grande problema. Se cada laboratório que trabalha nessa área tiver que incinerar todos os animais experimentais por três gerações, durante os testes das ‘novas drogas animais’ [novo regime imposto pela FDA], a pesquisa se tornará proibitiva para os cientistas do setor público e de pequenas empresas”, afirma ela.

Alison entrou em contato com a FDA pedindo autorização para comer a carne dos bezerros. A agência lhe enviou uma extensa lista de perguntas, que incluía uma descrição completa da alteração genética e do modo como havia sido obtida, dados do sequenciamento do genoma dos bezerros, das reprodutoras e de um grupo de animais de controle, além do registro de saúde dos bichos e a análise da composição nutricional dos tecidos musculares comestíveis.

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A pesquisadora respondeu ao questionário em dezembro de 2018. Seu minucioso dossiê indicava que os animais tinham saúde perfeita. Mas a cientista Alexis Norris, especialista da FDA em bioinformática, resolveu dar uma olhada no código genético dos animais. Ela queria testar um software novo, que a agência tinha acabado de começar a usar. E encontrou algo que ninguém esperava.

Norris constatou que Buri, e seu clone Spotigy, haviam incorporado DNA de bactéria. Isso aconteceu porque o plasmídeo (aquela molécula de DNA de bactéria, usada durante a edição genética de Buri), acabou se fundindo com o genoma do animal. Na genética, isso é conhecido como efeito off-target, ou seja, fora do alvo. Uma mudança que ninguém queria fazer. E esse erro tinha passado para quatro dos seis filhotes de Buri.

Embora minúscula, aquela inserção genética já era suficiente para colar neles um rótulo altamente indesejado: eram animais transgênicos, pois continham DNA de outra espécie (uma bactéria) em seu genoma. Aquilo mudava tudo. E, o mais preocupante, tinha passado batido em todos os estudos feitos até então.

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“Nossa descoberta revela um possível ponto cego nos métodos habituais de análise de edição genética”, escreveu Norris num artigo científico publicado em julho de 2019. O texto, que ela redigiu com cinco pesquisadores, também sugere modificar os métodos atuais para “detectar de maneira confiável a integração não intencional de plasmídeos”. A FDA notificou Van Eenennaam, que refez o exame e confirmou: quatro dos bezerros tinham DNA de bactéria. Mas como, afinal, o plasmídeo ficou “colado” no genoma deles? 

Os genes são segmentos de DNA que ficam armazenados no interior dos cromossomos. Eles contêm as instruções para a formação e o funcionamento do corpo. Cada gene tem duas versões: os alelos. Você herda um alelo do seu pai, o outro da sua mãe. Os alelos podem ser dominantes ou recessivos. Por isso, é a combinação deles que vai determinar traços como a cor da pelagem de um coelho ou a calvície de um homem.

Você talvez se lembre de ter estudado isso no colégio. O gene que determina a cor dos nossos olhos, por exemplo, possui dois alelos, B e b. Uma pessoa com a combinação BB ou Bb terá olhos escuros (devido à presença do alelo dominante “B”). Já quem possui a combinação bb terá olhos claros (devido aos alelos recessivos “b”).

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Com o chifre dos bovinos, é a mesma coisa. A ausência de chifres é determinada pelo alelo dominante M; a presença deles, pelo alelo recessivo m. Portanto, um touro MM ou Mm será mocho, ao passo que um animal mm terá chifres. Num dos alelos de Buri, o M, o processo de edição e reparação genética ocorreu conforme esperado. No outro alelo, não: o plasmídeo entrou junto.

“Nós não havíamos procurado o plasmídeo, tanto durante a seleção das células para clonagem como durante a análise de off-target, em 2016”, admite Sabreena Larson, diretora da Acceligen (a divisão agropecuária da Recombinetics). “Quando fizemos o animal, a integração do plasmídeo não era esperada”, diz.

Mas a descoberta mais chocante nem foi o plasmídeo em si. O estudo da FDA também indicou que os genes herdados por Buri eram aqueles que conferem às bactérias sua característica mais preocupante: a resistência a antibióticos.

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(Design: Juliana Krauss / Ilustração: Carlo Giovani/Superinteressante)
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Buri e as superbactérias

“Dos dois genes de resistência a antibióticos encontrados pela FDA, um confere resistência a neomicina e canamicina e o outro, resistência a ampicilina”, escreveram os cientistas americanos Jonathan Latham e Allison Wilson num artigo sobre o caso. Latham foi pesquisador do departamento de genética da Universidade de Wisconsin. Wilson é doutora em biologia molecular e genética pela Universidade de Indiana.

Para eles, a presença desses genes em Buri levanta questões de biossegurança. “Isso porque todas as células do animal também contêm os genes de resistência, permitindo que eles sejam facilmente transferidos para bactérias”, dizem os autores.

Se isso acontecesse, haveria problemas sérios. A neomicina é usada para tratar infecções de pele, intestinais e hepáticas, entre outras. A ampicilina tem indicação para doenças como a meningite e infecções de garganta e urinárias.

Já a canamicina serve para tratar tuberculose. Buri e seus descendentes poderiam transmitir a resistência a esses antibióticos para diversas espécies e linhagens de bactérias – inclusive aquelas que, hoje, não possuem essa característica. No limite, poderiam contribuir para o surgimento de novas superbactérias.

A Recombinetics e Van Eenennaam negam que exista esse risco. Especialistas ouvidos pela SUPER afirmam que ele é quase nulo. Primeiro, porque os genes em questão estão inseridos dentro do DNA das vacas. “Como o gene está no DNA de um bovino, inserido num cromossomo, é muito difícil ele conseguir sair dali e ser funcional em outro organismo. Por isso consideramos que o risco é zero ou próximo de zero”, diz Luciana Relly, professora do Programa de Biologia Celular e Molecular da PUC-RS.

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Além disso, os genes não se ativam em qualquer célula. Eles são como as lâmpadas da sua casa: precisam de interruptores para acender. Esses interruptores são chamados de “promotores”. Os genes de bactéria só se ativam na presença de determinados promotores – que não existem nas células bovinas, ou humanas. “O trecho que foi integrado ao genoma da vaca requer maquinaria molecular bacteriana”, afirma a FDA em nota enviada à SUPER. “Portanto, é improvável que os marcadores de resistência a antibióticos sejam expressos (ou ‘ativados’) na vaca”, informa a agência. 

Os genes que destroem antibióticos não serão ativados em Buri, pois ele é um boi; não uma bactéria. Mas e se ele, ou seus descendentes, acabarem passando esses genes para outras bactérias do ambiente? Na natureza, há casos de transmissão não sexual de material genético entre espécies diferentes (a chamada “transferência horizontal de genes”).

Há evidências de que plantas receberam DNA de bactérias, e há casos documentados de transferência de DNA do protozoário Trypanosoma cruzi, o causador da doença de Chagas, para células germinativas (que dão origem a óvulos e espermatozoides) de humanos que tiveram a infecção.

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A transferência genética de um animal para uma bactéria é extremamente improvável, mas também pode ter acontecido. A Legionella pneumophila, bactéria que causa uma forma rara de pneumonia, conhecida como doença dos legionários, produz mais de cem proteínas derivadas de eucariontes (seres mais sofisticados, como os mamíferos, cujas células têm o núcleo protegido por uma membrana). E as cianobactérias – bactérias que obtêm energia pela fotossíntese – também adquiriram uma característica típica de seres mais complexos: a capacidade de produzir actina, uma proteína que ajuda na formação do esqueleto celular.

E pesquisadores do Instituto de Biologia Molecular de Barcelona descobriram que bactérias da espécie Bacteroides fragilis, causadora de doenças intestinais no homem e no gado, incorporaram a proteína ADAM, presente em animais. Segundo os autores, a proteína “foi cooptada pela B. fragilis por um caso raro de transferência genética horizontal de uma célula eucariótica para uma célula bacteriana”. Em suma: um animal pode, ainda que seja improvável, transferir DNA para uma bactéria.

São casos intrigantes, mas extremanente específicos. Não é possível transpô-los para Buri e seus filhotes – inclusive porque a linhagem geneticamente modificada a que eles pertencem não será mais produzida em grande escala. A FDA entrou em contato com a CTNBio, que revogou a autorização concedida a Buri. “Nós imediatamente reconsideramos o parecer”, diz a bioquímica Maria Sueli Felipe, presidente da comissão.

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Ela destaca que, quando a entidade recomendou a liberação do sêmen de Buri, não havia nenhuma informação sobre a possível presença de DNA bacteriano. “Quando a requerente [no caso, a AgroPartners Consulting] entra com o dossiê na CTNBio, fornece dados experimentais. E nós não temos uma infraestrutura, como tem a FDA, para rechecar aqueles dados”, diz a cientista.

Mas a história dos bois geneticamente modificados não terminou. Na Austrália, onde o sêmen de Buri pode ser utilizado, ele deu origem a 11  bezerros, que nasceram em 2019. Todos sem chifre. Como o DNA de bactéria só aparece em um dos dois genes alelos, os criadores de lá optaram por fazer uma triagem genética – e só estão criando os animais que não têm o plasmídeo.

A Recombinetics e a AgroPartners ainda querem introduzir vacas sem chifre no Brasil, mas sem usar o sêmen de Buri. “A descoberta de um fragmento de DNA de bactéria no animal não atrapalhou a estratégia, pois hoje o processo [de edição genética] não utiliza mais um plasmídeo”, diz Garcia. A técnica é a mesma, a TALEN, mas agora sem o auxílio da molécula de bactéria. Também há uma etapa a mais, o que aumenta a segurança do processo. “As células são editadas, selecionadas e só então utilizadas para a geração de clones”, afirma o pesquisador.

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Outros cientistas também têm desenvolvido projetos similares no Brasil. Um deles é Charles Long, da Texas A&M University, que pretende criar animais com DNA modificado no País. “Como a FDA regula os animais geneticamente editados como drogas, o processo de aprovação é extenuante”, diz. “No Brasil é diferente. Os brasileiros perceberam que certas coisas não precisam ser reguladas como OGM [organismo geneticamente modificado], porque poderiam ter acontecido na natureza.”

Pelas normas brasileiras, seres que não possuem o chamado “DNA recombinante” (montado em laboratório) nem trechos oriundos de outras espécies, e só possuem alterações genéticas que já acontecem naturalmente, não são considerados OGMs. Buri, inicialmente, não era.

Ele poderia ter acontecido de forma natural. Poderia ter sido, apenas, mais um dos touros Holstein que já nascem sem chifres. Mas teve outra sorte. Acabou como protagonista de uma história envolvendo bactérias, política e negócios. Foi sacrificado, assim como seus cinco filhos machos. Sobrou apenas a fêmea, batizada de #1. Ela está grávida, e deve dar à luz nos próximos meses. “Assim poderemos coletar seu leite para analisar a composição, conforme solicitado pela FDA”, diz Van Eenennaam. O que acontecerá com #1 depois? “Será sacrificada e incinerada.”

E assim, mais uma vez, caminha a humanidade.

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Como editar o DNA de uma vaca

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O objetivo é criar uma vaca que dê muito leite, como a raça Holstein, mas não tenha chifres – como a raça Angus. Entenda o processo.

1. Extraia algumas células de uma vaca Holstein.

2. Injete nelas uma enzima projetada para cortar um trecho específico do DNA da vaca.

3. Nesse trecho que foi cortado, insira um pedaço de DNA das vacas Angus.

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4. Retire o núcleo da célula e o insira num óvulo. Deixe as células se multiplicarem e formarem embriões.

5. Selecione um embrião macho e implante no útero de uma vaca. Nascerá um bezerro híbrido de Holstein
e Angus.

6. Use o sêmen desse animal para fertilizar outras vacas – que darão à luz um rebanho de bezerras híbridas.   

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O que deu errado

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(Design: Juliana Krauss / Ilustração: Carlo Giovani/Superinteressante)

Tudo parecia ok. Os animais geneticamente modificados eram normais e saudáveis. Mas seu código genético escondia um invasor.

1. Para inserir DNA das vacas Angus nas vacas Holstein, os cientistas utilizaram um plasmídeo: uma molécula de DNA de bactéria.

2. O plasmídeo funciona como um entregador: carrega o fragmento genético (no caso, DNA de vaca Angus) até o local desejado. Depois, é eliminado pelo organismo.

3. Cada gene bovino tem dois alelos, ou variações. Num dos alelos do bezerro Buri (o primeiro a ser geneticamente modificado), o plasmídeo não foi embora. Ele ficou – e se fundiu com o DNA do animal.

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4. Dessa forma, Buri se tornou um animal transgênico: seu código genético contém DNA de boi e de bactéria. Buri transferiu essa característica a seus descendentes.

5. O plasmídeo trouxe consigo genes problemáticos: que conferem imunidade a três tipos de antibiótico. Esses genes estão inseridos no DNA de Buri, e é muito improvável que o animal os transferisse para bactérias. Mas, se isso ocorresse, haveria a criação de uma nova linhagem de microorganismos, mais resistentes a antibióticos.

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