De molho de peixe fermentado a símbolo da globalização, o ketchup passou por várias mudanças até chegar ao seu hambúrguer. Conheça sua história – e o mercado que ele movimenta.
Texto: Rafael Battaglia | Edição: Alexandre Versignassi | Design: Juliana Caro | Foto: Roberto Seba
No dia 11 de outubro de 1924, a Heinz realizou uma ação de marketing de fazer inveja a qualquer empresa de hoje. Sem internet, ela organizou 62 banquetes simultâneos em diferentes cidades dos EUA, Canadá, Inglaterra e Escócia. Foram 10 mil pratos servidos ao mesmo tempo, graças a um sistema de comunicação via rádio e alto-falantes sincronizados. O dia, que ficou conhecido como Golden Day (“Dia Dourado”, em inglês), contou até com a transmissão de um discurso do então presidente americano, John Calvin Coolidge, por telefone.
O jornalista Jean-Baptiste Malet, em seu livro O Império do Ouro Vermelho, sobre a história da indústria do tomate, sintetiza o auê: “O frasco de ketchup, ao lado da garrafa da Coca-Cola, é um dos símbolos mais famosos da americanização do mundo”.
Olhando assim, é difícil imaginar que esse condimento tradicionalmente americano, na verdade, não nasceu nos EUA – nem levava tomate. A história do ketchup tem partes na Ásia, na Europa, no continente americano, e todos esses lugares ajudaram a moldar o molho vermelho que você coloca em cima da batata frita – ou da pizza, para os mais hereges.
A jornada do ketchup começa por volta de 300 a.C., na região onde hoje é o Vietnã. É nessa época que surgem os primeiros registros de um molho fermentado de peixe e soja. Seu nome? Kê-tsiap, que na língua hokkien (dialeto chinês falado também em outras partes do Sudeste Asiático) quer dizer algo como “salmoura de peixe em conserva”.
O kê-tsiap era um condimento popular, e não demorou para que ele se espalhasse Ásia afora. No século 18, os ingleses entraram em contato com ele na região da Indonésia, onde os britânicos possuíam colônias. Eles ficaram fascinados com o produto e com sua capacidade de “turbinar” os pratos com seu sabor marcante. Decidiram, então, levar a ideia para a Europa.
De volta à terra da Rainha, os ingleses se depararam com um problema: não havia soja por lá. A solução foi adaptar o molho testando uma série de outros ingredientes: cogumelos, feijões, anchovas, nozes, ostras… A primeira receita publicada na Inglaterra é de 1727. Para se fazer o “katshop” (olha a grafia mudando), era preciso itens como vinagre e vinho branco, gengibre, pimenta e casca de limão.
O molho foi um sucesso por conta de sua durabilidade – numa época em que a conservação de alimentos era difícil, isso era fundamental. O ketchup possuía várias versões de acordo com seus ingredientes, e era usado para tudo que precisasse de um tempero extra, como carnes, peixes e pães. Conta-se que a escritora Jane Austen (Orgulho e Preconceito) era uma consumidora fiel do katshop de cogumelos.
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Mamma mia
Mas, afinal, como o tomate entrou na jogada? O fruto é originário da América do Sul, tanto que a palavra “tomate” vem do asteca tomatl (fruto suculento). Assim como a batata e outras iguarias, foi levado à Europa pelos colonizadores nos anos 1500, mas ele não foi consumido de imediato. Os europeus acreditavam que o tomate era venenoso. Então o alimento foi, por muito tempo, usado apenas para decorar as mesas de banquetes.
Levou quase 300 anos até que o tomate fosse incorporado na cozinha de alguns países. Os primeiros a criar molho de tomate para incorporar às massas foram a França e a Itália, mas foi no país da bota que o alimento se tornou patrimônio nacional.
Em 1856, o italiano Francesco Cirio inaugurou na cidade de Turim a primeira fábrica de conservas industriais do país (a título de curiosidade, a primeira usina de conservas do mundo foi criada em 1794, na França). Com apenas 20 anos, Cirio, com uma pequena ajuda da guerra, logo transformou a conserva de tomates em um símbolo comercial da Itália.
“A guerra civil americana (1861-1865) provocou uma aceleração brusca das exportações de conservas europeias para a América do Norte”, escreve Malet. O conflito é um dos responsáveis por difundir o uso de enlatados, e em 1871, após a unificação da Itália, Cirio instala várias fábricas no sul do país, uma região 100% rural. É o tomate, então, o responsável pela industrialização dali.
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A popularidade do pomodoro (“maçã de ouro”, em italiano) aumentou graças aos italianos que saíram do país na virada do século 20. Em 1910, Nova York contava com 545 mil imigrantes vindos da Itália. Nos anos 1930, eles já representavam 17% da população da cidade. As latas importadas de tomate eram tão presentes nas mercearias locais que, naquela época, foi a forma que o governo italiano encontrou para transmitir mensagens de propaganda do regime fascista aos imigrantes que viviam nos EUA.
Mas não se engane: o ketchup como o conhecemos (feito de tomate) já existia quando tudo isso aconteceu. E ele tinha nascido de uma receita fracassada.
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Era Uma Vez na América
O ketchup à base de tomate foi inventado em 1812, na Filadélfia, pelo cientista e horticultor James Mease. Sua receita levava polpa de tomate, conhaque e algumas especiarias. Mas havia um problema. Como a polpa era um produto perecível, o novo ketchup ia na contramão dos seus parentes europeus, que se popularizaram justamente pela sua durabilidade nas despensas.
A solução para quem fabricava foi encher o produto de conservantes. Os primeiros estudos sobre o ketchup identificaram níveis preocupantes de alcatrão de hulha (para realçar a cor avermelhada) e benzoato de sódio (para prolongar a data de validade). Acontece que, no final do século 19, já se sabia que esses produtos faziam mal à saúde. Um dos maiores críticos a esses aditivos era o químico Harvey Washington Wiley.
Wiley defendia que conservantes do tipo não eram necessários se os fabricantes usassem ingredientes de alta qualidade. Um fabricante de ketchup decidiu encampar a briga de Wiley: Henry John Heinz.
Henry nasceu em 1844 e começou no negócio de alimentos ainda criança, quando ajudava sua mãe a vender conservas de raiz-forte. A Heinz Company, como as embalagens da marca dizem, foi fundada em 1869, mas os rótulos escondem um pequeno tropeço: a empresa faliu em 1873, durante uma grave crise bancária nos EUA. A companhia voltou em 1876.
Heinz ia na contramão dos outros empresários da época e, assim como Wiley, também acreditava na regulação alimentícia. Em vez de aditivos, sua receita de ketchup levava tomates mais maduros para dar cor ao molho, além de uma quantidade de vinagre bem mais alta que o normal – o que conservaria o condimento.
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Deu certo: naquele ano, o ketchup da Heinz foi uma das sensações da famosa Exposição Universal, que rolou na Filadélfia. E chamou mais atenção que outras invenções que estavam ali, como um certo telefone. Em 1897, as indústrias da Heinz em Pittsburgh possuíam linhas de produção, com tarefas divididas e que começavam a ser automatizadas. Tudo isso 11 anos antes das linhas de montagem do Ford Modelo T – o ketchup foi fordista antes de Henry Ford.
Em 1903, a criação da primeira máquina capaz de automatizar a manufatura de frascos de vidro fez o custo de produção do ketchup cair mais de 90%. Antes, a Heinz comprava frascos de produção artesanal – e eles eram de longe a parte mais cara do produto. Dois anos depois, a Heinz já vendia mais de 12 milhões de unidades do molho pelo mundo.
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Desde o início, John Heinz aprendeu uma importante lição dos negócios: fique amigo do governo. Em 1906, a empresa apoiou a criação da Pure Food and Drug Act, primeira lei de proteção ao consumidor para regular alimentos e medicamentos nocivos – fazia todo o sentido; desde 1902, a Heinz propagandeava a “pureza” como o grande diferencial dos seus produtos. Tempos mais tarde, ela deu origem ao Food and Drug Administration (FDA), a Anvisa dos EUA.
Essa proximidade da Heinz com o governo americano perdurou. Durante a 2ª Guerra Mundial, os soldados dos Aliados se alimentavam à base de enlatados da Heinz e de sua maior concorrente, a Campbell Soup. Décadas depois, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado americano, ajudaria a empresa a entrar no mercado chinês.
Em 1897, as indústrias da Heinz possuíam linhas de produção, com tarefas divididas e que começavam a ser automatizadas. O ketchup foi fordista 11 anos antes de Henry Ford.
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Negócio da China
O ketchup é feito com concentrado de tomate, mas não de qualquer tipo: nas fábricas, é utilizado o “tomate industrial”. Nunca ouviu falar nele? A aparência é a mesma do fruto convencional com uma pequena diferença no tamanho, que é menor. A diferença está no seu interior.
As pesquisas para criar variações de tomate existem desde os anos 1930. Os tomates industriais são mais viscosos que os normais – quanto menos água eles tiverem, melhor para as fábricas de concentrado, que vão gastar menos energia para transformá-los. Além disso, seu crescimento é controlado e os pés, mais baixos, para facilitar a colheita.
Outra diferença importante: ele é mais rígido que um tomate normal. “O industrial tem que aguentar os impactos da colheitadeira e do empilhamento para transporte”, explica Leonardo Boiteux, líder do programa de melhoramento genético de tomateiro da Embrapa. Em resumo: você até pode colocá-lo na salada, mas não vai ser a mesma coisa.
Hoje, quem mais exporta tomate é a China – num curioso retorno do kê-tsiap ao Sudeste Asiático. Ela planta tomates industriais para produzir 991 mil toneladas de concentrado –32% do comércio mundial. O país asiático só não é o maior produtor porque a Califórnia, primeiro lugar nesse quesito, destina boa parte dos seus tomates para abastecer o (imenso) mercado interno dos EUA. As plantações se concentram na região oeste da China, bem menos desenvolvida que o leste, onde ficam as maiores cidades. Sob péssimas condições de trabalho, milhões de camponeses colhem diariamente toneladas de tomate industrial, que são transformados em concentrado no próprio país e enviados para o resto do mundo.
O mercado de extrato de tomates é peculiar. Na Itália, uma brecha na legislação permite que o concentrado chinês entre no país e vá para as fábricas de molhos enlatados, onde os produtos serão exportados apenas com um “feito na Itália” na embalagem, sem informar a verdadeira origem do produto-base. Por lá, as maracutaias no setor agroalimentar são tantas que se criou um termo para quem ganha dinheiro com isso: agromáfia.
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O ketchup passou de um molho de peixe fermentado para um condimento presente em quase todas as cozinhas, sendo usado tanto puro como incremento para outras receitas – no Brasil, virou item básico para o estrogonofe, que não leva o derivado de tomate na receita original. Mesmo quem o coloca na pizza (alô, Rio) não está sozinho: isso é costume em alguns países, caso da Polônia e do Líbano.
“Como historiador da comida, eu o vejo como um produto verdadeiramente global, com suas origens moldadas por séculos de comércio”, escreve Ken Albala, da Universidade do Pacífico, em um artigo sobre o tema. “Diferentes culturas adotaram uma ampla variedade de usos surpreendentes para o condimento que hoje conhecemos como ketchup.”
Parece não haver limites mesmo: no Canadá há uma receita típica, o Great Canadian Ketchup Cake – sim, um bolo de ketchup. Faz sentido? Talvez: o bom senso e o prazer, afinal, nem sempre andam juntos.
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