A água é a substância mais estranha da face da Terra. Entenda por quê.
Ela é menos densa no estado sólido que no líquido, desafia a gravidade e congela mais rápido se está fervendo. Essas são algumas das mais de 70 anomalias da água: um conjunto de características que nenhum outro líquido do Universo tem. Entenda por que os superpoderes do H2O são a chave para a vida na Terra.
Texto: Bruno Vaiano e Maria Clara Rossini | Design: Juliana Krauss
E
ra um líquido muito engraçado. Não tinha gosto, não tinha nada. Ninguém podia colocar uma garrafa com esse líquido no freezer, porque o recipiente estoura. Estoura graças a uma propriedade incomum: trata-se de uma das únicas substâncias na face da Terra que aumenta de tamanho na fase sólida. As outras passam a ocupar menos espaço, e não mais.
Essa substância, claro, é a água. Além do hábito exótico de explodir no congelador, ela exibe outras 70 anomalias – ou seja, desobedece às previsões dos físicos e químicos de mais de 70 jeitos diferentes. Essa lista de insubordinações, atualizada com zelo desde 2000 pelo químico britânico Martin Chaplin, cresce quase todo ano.
Em geral, estamos tão familiarizados com a água que não percebemos o quanto o comportamento das moléculas de H2O desafia a intuição (e as equações) dos cientistas. Os líquidos do nosso cotidiano – suco, refrigerante, café, leite – são todos essencialmente água. Um tomate é 95% água; um ser humano, no mínimo 60%.
Se você é um saco de água com um cérebro e livre-arbítrio, cercado de água por todos os lados, é difícil pensar em si próprio como exceção, e não regra. Mas veremos a seguir que uma cena corriqueira em nosso cotidiano – cubos de gelo translúcidos boiando no suco – é algo incomum no Universo e encerra o segredo da vida no nosso planeta. O que, afinal, torna a água tão especial?
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Juntos e shallow now
A explicação começa em escala atômica. Átomos são inimaginavelmente pequenos: se uma maçã fosse do tamanho do nosso planeta, os átomos seriam do tamanho da maçã. Uma molécula de H2O, como a própria fórmula indica, consiste em um átomo de oxigênio (O) ladeado por dois pequenos átomos de hidrogênio (H2).
Todo átomo é rodeado por um certo número de partículas, os elétrons. E esses elétrons se organizam em um pavê quântico, distribuindo-se em camadas que comportam uma quantidade fixa dessas partículas. Na primeira camada, cabem dois elétrons. Na segunda, oito. Na terceira, 18.
60% do corpo humano é composto de água. Um tomate é 95% água. Uma água-viva não poderia ter um nome mais adequado: 98% água.
Como o oxigênio tem oito elétrons, ele coloca dois na primeira camada e sobram seis para a segunda – que precisa ter oito. E agora, José? Acabou a bolacha. E não dá para fechar o pavê com algumas bolachas faltando na última camada. O átomo precisa encontrar mais dois elétrons.
A única saída é negociar com outros átomos que também sofrem com a escassez. Por exemplo: o hidrogênio é um pavê de uma bolacha só, com apenas um elétron. Não preenche nem a primeira camada, que precisa de duas bolachas.
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Para o oxigênio, é uma boa alternativa se unir a dois hidrogênios. Cada um deles tem um elétron para oferecer. Da parte dos hidrogênios, tudo certo: eles também precisam de um elétron para cada um. Desse compartilhamento mútuo de elétrons – que os químicos chamam de ligação covalente –, nasce a molécula de H2O.
Errata: Na edição impressa, escrevemos que cabem 16 elétrons na terceira camada. O correto é 18.
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Corpo de baile
O H2O tem a forma de uma letra “v”, com o oxigênio no vértice e os hidrogênios nas pontas simétricas. O oxigênio fica com todos os elétrons negativos perto de si, o que torna a carga elétrica na base do “v” ligeiramente negativa. Já os hidrogênios, nas extremidades, ficam um pouco positivos. Isso torna o H2O uma molécula polar. Com polos – como uma pilha.
A polaridade é o motivo da água dissolver tantas coisas tão facilmente – algo essencial para o funcionamento do seu corpo, que dilui tudo em água: sangue, xixi, suor. Pegue, por exemplo, o sal de cozinha, feito de átomos de cloro e sódio. O sódio é positivo, então curte a ponta negativa. Já o cloro é negativo, então curte a ponta positiva. A água é democrática.
Também é promíscua: os hidrogênios positivos de uma molécula de H2O passam o tempo se sentindo atraídos pelos oxigênios negativos de outra H2O. As duas moléculas dão as mãos rapidamente – um tipo de ligação efêmera chamada ligação de hidrogênio – e depois soltam. Em escala microscópica, um copo d’água é um salão de baile caótico. As moléculas fazem e desfazem as ligações de hidrogênio entre si rapidamente, como parceiros de dança indecisos.
Essa tapeçaria de ligações microscópicas confere à água uma tensão superficial incomum, que todos nós presenciamos ao encher um copo até a boca: o líquido avança dois ou três milímetros acima da borda do recipiente, como se estivesse preso por uma película arredondada. Essa película é o que faz uma barrigada na piscina doer tanto – e permite que insetos caminhem na superfície de um lago. Também é ela que está por trás da formação de gotículas de orvalho redondas em pétalas de flores.
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Essa mania de fazer ligações o tempo todo está por trás de diversos comportamentos anômalos da água – e é o que a torna tão adequada para as necessidades dos seres vivos. Por exemplo: uma árvore tão grande quanto a sequoia, com 90 metros de altura, é capaz de bombear o líquido da raiz até a copa graças à maneira como as moléculas de H2O fazem ligações de hidrogênio entre si e com paredes dos vasos condutores – resistindo à gravidade e puxando umas às outras para cima.
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Gelo e fogo
O baile microscópio também gera anomalias térmicas. Um líquido qualquer esquenta quando você injeta energia nele e as moléculas ficam agitadas – até se soltarem em forma de vapor. Esquentar água significa quebrar as ligações de hidrogênio para cada H2O se sacudir mais livremente. Mas as ligações insistem. Sempre se refazem. (Se não fossem elas, a água seria um gás em temperatura ambiente. De fato, toda molécula parecida com a água é um gás a 20 °C.)
Assim, a água demora muito para esquentar. E, uma vez quente, demora para esfriar, porque absorveu muita energia. 1g de água precisa de nove vezes mais energia que 1 g de ferro para que sua temperatura aumente 1 °C.
É por isso que uma panela no fogo queima sua mão muito antes da água dentro dela começar a ferver. Também é o motivo pelo qual o recheio da tortinha do McDonald‘s – que contém muito mais água do que a massa – permanece traiçoeiramente quente um tempão após sair do óleo. Os físicos chamam essa propriedade de calor específico, e o da água é um dos mais altos do cosmos.
Graças a essa propriedade, os oceanos agem como esponjas de calor, que evitam variações bruscas de temperatura nos litorais. Pela manhã, mesmo que já faça uns 35 °C na faixa de areia, a água do mar permanece relativamente fria. Isso impede a praia de virar um Saara. No final da tarde, quando o mar finalmente aqueceu, o Sol se põe e os papéis se invertem: a água passa a noite toda liberando um ligeiro calorzinho na atmosfera, o que evita uma friaca repentina.
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Conforme a água esfria, a energia contida no líquido se torna cada vez menor. Menos energia significa menos agitação, e aí as moléculas se aproximam. Moléculas próximas tornam a substância densa. É por isso que a fase sólidada maior parte dos compostos químicos afunda na líquida.
A água obedece a essa regra apenas até os 4°C. Quando atinge essa temperatura crítica, sua densidade começa a aumentar em vez de diminuir. Eis uma anomalia e tanto. As moléculas se afastam porque estão manobrando para congelar encaixadas em um padrão geométrico hexagonal, como uma colmeia. Esse padrão hexagonal deixa buracos – que não existem na água líquida, em que as moléculas são livres para se acomodar umas nas outras de maneira mais compacta.
É por isso que o gelo flutua no copo e as garrafas estouram no freezer. Agradeça ao cosmos por essa bizarrice. Se o gelo fosse mais denso que a água, lagos, rios e o próprio oceano congelariam de baixo para cima. E, com o leito congelado, a vida subaquática (que, por boa parte da história da Terra, foi a única vida que houve) teria sido aniquilada nas eras glaciais.
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Aos 4ºC, a água começa a se expandir para formar gelo. A água é um dos poucos líquidos que ficam maiores na fase sólida.
O gelo hexagonal é o único que existe na natureza. Mas há quase 20 diferentes configurações geométricas que os cristais de gelo podem assumir em condições exóticas de pressão e temperatura, que vão de gelo cúbico a fractais lindíssimos como os que você vê no gráfico à direita. Essas condições podem ser obtidas artificialmente em laboratório, e algumas delas ocorrem naturalmente em outros planetas e satélites.
Se o gelo em si é um mistério multifacetado, o congelamento não deixa por menos. Em 1963, um menino de 13 anos chamado Erasto Mpemba – que fazia picolés caseiros para vender em um vilarejo da Tanzânia, na África –, percebeu que a água se solidifica mais rápido quando é posta no freezer fervendo. O fenômeno ficou conhecido como efeito Mpemba (antes dele, Aristóteles havia feito essa observação por escrito, mas ninguém deu bola).
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Os químicos ainda não sabem o porquê disso. Em certas circunstâncias, é mais fácil para as moléculas atingirem a configuração geométrica correspondente ao gelo partindo de uma temperatura mais alta.
“Quando você congela rápido, as moléculas precisam se ordenar rápido”, diz Márcia Barbosa, física da UFRGS. “Estar na temperatura mais baixa não quer dizer que elas têm mais chances de cair no lugar certo. É como fazer uma corrida dentro de um labirinto. Uma pessoa que está mais perto da saída não tem garantia de que vai chegar lá primeiro, porque ela pode tomar caminhos errados, que a afastam do objetivo.”
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Salva pela estranheza
Por muito tempo, Márcia Barbosa só pensava em água quando sentia sede: originalmente, seu objeto de estudo eram moléculas grandes, como proteínas e DNA, que têm milhares de átomos. Quando precisava simular o comportamento da água, a física usava um modelo, em suas palavras, “vagabundo”.
O problema é que o modelo vagabundo fazia juz à ofensa e não funcionava: as previsões que ele fazia para o comportamento da água davam errado. Márcia, então, decidiu fazer uma pausa para modelar a água decentemente. A pausa já dura 20 anos.
Um dos problemas que a cientista encarou é que a água se move mais rápido– e não mais devagar – quando está contida num espaço apertado. Esse comportamento é um oferecimento das ligações de hidrogênio: a molécula de H2O age como o passageiro de ônibus que vai apoiando a mão nos ombros de todo mundo para cavucar um caminho e descer do coletivo.
Que tal, então, experimentar água passando por nanotubos – cilindros com espessura 80 mil vezes menor que um fio de cabelo? Nessa situação, as moléculas, que estão em grupos de quatro, mudam de estratégia: passam a se organizar em uma fila, fazendo apenas duas ligações: uma com o grupo de H2O que vai na frente, uma com o que vai atrás.
“Essa fila anda super rápido, como se fosse um corredor polonês no Carnaval”, diz Márcia. “Todo mundo de mão dada.” O fluxo de água em nanotubos é centenas ou até milhares de vezes maior do que o previsto pelas leis da hidrodinâmica.
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Essa pressa toda deu à cientista uma ideia: aplicar os nanotubos na dessalinização de água do mar para consumo humano. O H2O passa e os sais vão ficando para trás. A nanotecnologia poderia reduzir as usinas de dessalinização a um décimo do tamanho atual, e salvar a pele de países em regiões áridas, que vão sofrer com o aquecimento global.
Apenas 2,4% da água do planeta é doce, e 70% dessa água doce está em locais de difícil acesso, como as geleiras. Diversos países já enfrentam escassez hídrica, e a ONU estima que metade da população mundial sofrerá com a falta de água até 2050. A água é tão especial que permitiu a vida. E a vida, tão acostumada à água, não percebe que ela é especial. Agora, buscamos na água uma solução para não ficar sem ela.
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Fontes: Bruno Henrique da Silva e Mendonça, doutorando em Física na UFRGS; José Rafael Bordin, professor do departamento de Física da UFPel
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