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Voto obrigatório

9429 caracteres de literatura

Por Bruno Crispim
Atualizado em 23 out 2020, 15h19 - Publicado em 24 ago 2017, 16h34

Sete ligações não atendidas da Soraia.

Doze mensagens não lidas. Todas dela.

Três relatórios atrasados.

Seis e-mails cobrando os relatórios. Todos do meu chefe.

Outro e-mail com ameaças. Demissão,
se os relatórios não ficarem prontos.

E mais vinte e cinco projetos de lei que tenho que votar. Até meia-noite.

***

Minha mãe dizia que as coisas eram bem diferentes no tempo dos meus avós. Eles tinham pessoal só para decidir quais eram as leis boas e quais não serviam. Políticos. Acho que era assim que chamavam eles. As pessoas escolhiam esses caras e eles resolviam as leis para a gente.
Simples assim. Eles eram especialistas em saber o que o povo precisava. Como um conjunto. Nunca individualmente. O povo estava tão satisfeito com o trabalho deles que os pagava.

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E pagava bem!

E o melhor de tudo? Com um punhado de votos a cada dois anos, ninguém precisava se preocupar com novas leis. Nem com as antigas. As pessoas podiam aproveitar as suas vidas. Felizes. Satisfeitas. O destino do país estava bem guardado nas mãos dos políticos.

Isso mudou. Hoje, não temos mais políticos. Sobrou apenas o secretário-geral, que organiza as propostas das pessoas por prioridade e apresenta as votações para o resto dos quatrocentos milhões de eleitores. Temos alguns dias para ponderar antes de escolher. E, então, decidimos sobre tudo e qualquer coisa. Se devemos aumentar o imposto do papel higiênico. Se devemos construir pontes ou hospitais. Se devemos ir para a guerra. Se um assunto for muito complexo, temos até um mês para opinar. Quando é banal, dois dias. Quem vota todas as propostas em tempo real recebe uma bela isenção de imposto. Quem não opina paga impostos astronômicos.

Graças a essas isenções, as abstenções foram virtualmente extintas. Só otários como eu que ainda ficam sem opinar.

Assim, a população foi dividida em quatro níveis. O nível A foi para os cidadãos que respondem tão rapidamente a todas as votações que penso ser impossível que leiam mais do que o cabeçalho das leis. Eles não pagam quase nada de impostos.

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No outro extremo, está o nível D, para quem perde o prazo (ou prefere se abster) de muitos projetos. O imposto que eles pagam é tão alto que não sobra quase nada do salário deles. É um terror estar no nível D.

Eu sou C. Mais cinco abstenções e caio para D.

É por isso que eu não atendi Soraia. Ela está passando uns dias numa amiga, mas vai insistir para eu votar em qualquer coisa. E rápido. Se eu fizer isso por dois meses seguidos, volto para o nível B. Só assim conseguiremos pagar o apartamento que ela insistiu tanto em comprar.

Todos os nossos amigos, além da família dela, são A. Ela se envergonha desse meu descaso com as nossas finanças. E mais ainda com esse meu interesse obsessivo por leis.

Eu só decido depois de ler e ponderar qual é a melhor opção. É comum que eu precise ler muito sobre o assunto, pesquisar com especialistas. Outras vezes, eu reconheço imediatamente que, mesmo com meses de estudo, eu não teria competência para decidir. Então me abstenho. E perco pontos. Caio de nível.

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Meus amigos cansaram de tentar me convencer a agir como uma pessoa normal. Toda vez que saíamos para um chope, eles sequestravam o meu celular e zeravam as minhas pendências. O Jorge até baixou um programa ilegal que era usado para selecionar a opção que estava ganhando assim que as propostas aparecem.

E eu vou dizer isto: aquelas semanas foram agradáveis. Faltou pouco para eu virar A. Nunca havia projeto de lei pendente.

Mas eu descobri a gambiarra, e apaguei o aplicativo. Contra a vontade de todos, mas apaguei. Infelizmente, eu sempre faço o que é certo. Mas eu prometi, para mim e para Soraia, que não ia deixar as leis acumularem outra vez.

Não funcionou. Virei C em duas semanas. Soraia não quer olhar na minha cara.

***

Minha mão escorrega do queixo. Acordo achando que estou caindo.

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Olho o relógio. Uma da manhã.

Uma da manhã!

Procuro as vinte e cinco propostas que faltavam. Preciso votá-las imediatamente.

Não dá. Todas elas desapareceram. Venceram. Meu Deus! Vinte e cinco abstenções seguidas.

Para não sobrar dúvidas, um D gigante aparece ao lado do meu nome.

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E quando o seu parceiro vira D, automaticamente, você vira C. Não vai ter jeito, vamos ter que adiar a viagem que ela tanto queria. Ásia, só no ano que vem.

Soraia vai me matar.

Não.

Ela vai me torturar. Depois vai me matar.

Eu prometi para ela que não me tornaria um D. Ontem mesmo, eu prometi. E ela me deu mais uma chance. E eu me abstive de vinte e cinco leis. Vinte e cinco! Como eu sou idiota!

Ligo para ela. Ela só atende na terceira ligação. Entre rugidos e grunhidos, parece bêbada.

Desgraça. Ela já sabe.

Peço desculpas, mas ela não me deixa falar. Sou xingado. Irresponsável. Egoísta. Burro. Trouxa.

Burro?

Realidade Alternativa: Voto obrigatório
(Marcelo Delamanha/Superinteressante)

Ela resmunga que sim. Diz que eu só posso ser um grande imbecil para me preocupar tanto com leis, mas não saber quais delas foram aprovadas.

Eu não entendo. Digo isso para ela.

Feliz, ela me explica que separações agora podem ser pedidas por qualquer parte do casal, sem a assinatura da outra pessoa. Isso desde o mês passado. Ela mesma propôs o projeto.

Pergunta em qual opção eu votei nesse projeto. Abstenção, claro.

Ela se separou de mim na semana passada. Já tinha jogado minhas coisas fora até. Não quer me ver nunca mais. As ligações eram só para me avisar mesmo.

Ela desliga.

Nem tenho tempo de parar para me recompor. A notícia do meu D chegou longe. Recebo uma mensagem automática do meu trabalho: “Dirija-se ao nosso Núcleo de Pessoas”.

Isso significa demissão. Por causa do meu D. Eu não sou mais uma pessoa confiável.

Desgraçados! O irônico é que eu perdi o prazo de votação de uma lei que aumentava a estabilidade no emprego, pago por um pequeno aumento nos impostos. Eu não consegui acreditar nas estimativas de nenhum dos lados. Achei erros nas contas. Decidi não participar. Se eu soubesse da minha demissão, optava pela estabilidade, claro – quem se importa com a matemática?

Saio do prédio, às duas da manhã. O centro está lotado. Enfim, o fim de semana. Só eu não estou com vontade de comemorar. Mesmo assim, ligo para o Cosme. E para o Adalto. E para o Jorge. Tenho uma tonelada de mágoas para afogar.

Cosme e Adalto inventam desculpas. Jorge é sincero. Todos os meus antigos amigos estão comemorando o fato de que Soraia deu entrada sozinha num apartamento. Ela também está comemorando que se livrou de mim. Ele reforça que eu sou meio chato com as minhas conversas sem fim sobre leis e votações. Ele também desliga.

Eu tento Carlos, Pâmela, Júlio, Antônia, Catarina. Todo mundo. Não consigo ligar para ninguém. Eles optaram pelas festas da Soraia, em vez das minhas discussões sem fim sobre o impacto dos novos projetos. Eu faria o mesmo.

***

No bar. Sozinho na quinta cerveja. Gasto o dinheiro que não tenho. E gasto mal. Tem mais uma lei nova que eu não conhecia. Cada bebida que você compra num bar custa o dobro da anterior. Faz sentido para quem não quer esquecer as besteiras da vida em uma noite. Eu devia ter comprado uma garrafa de cachaça.

“Primeira vez como D?”

Levanto a cabeça. A criatura mais velha que já vi na vida sorri para mim. Ele veste um terno gasto, com um corte do século passado.

Não respondo. Ele senta numa mesa isolada no canto do bar. Pede duas bebidas. Isso mesmo, ele paga a minha sexta cerveja. E me chama. Eu vou.

Bebemos em silêncio. Ele pede mais duas cervejas.

“Eu tenho acompanhado as suas votações. Você tem feito um ótimo trabalho.”

Eu? Como sabe quem eu sou? Quem é você?

“O que importa é que eu vim te trazer uma escolha, a escolha mais importante da sua vida. Eu sou um político. Talvez você não conheça muito sobre nós, mas agimos por baixo dos panos, influenciando as decisões importantes. Notícias falsas. Influenciadores nas redes sociais. Programas automáticos de voto. Tudo o que parece aleatório é, na verdade, a nossa interferência.”

“Isso é ilegal”, sussurro.

Olho para os lados. O bar está calmo. O político está calmo. Só eu que não estou.

“O que vocês querem comigo?”

“Tenho meios para te transformar em um de nós. Essa é a sua escolha. Se você quiser, será um de nós. Alguém que faz a diferença para o país. Alguém que leva esse país para a frente. Você será quem você sempre sonhou.”

“E qual é a opção? Você não vai me deixar ir embora depois de me dizer tudo isso.”

“Nós não somos criminosos. Agimos da melhor forma que podemos para ajudar as pessoas. Você faz a mesma coisa.”

“Eu nunca desobedeci nenhuma lei!”

“E o que isso te ajudou? Você não sabe, mas, às vezes, temos que desrespeitar uma lei para proteger as pessoas.”

“Eu não sei… E se eu não escolher isso?”

“Te daremos um upgrade direto para A, pela sua consideração com os projetos de lei.”

“Sério? Vocês podem fazer isso? Eu posso ter a minha vida de volta? Sendo A, eu vou conseguir um emprego bom. E a Soraia vai me perdoar.”

“Podemos. Só preciso que você me garanta que vai manter o nosso segredo. De qualquer forma, você tem até amanhã para mudar de ideia.”

Eu prometo. Digo que vou pensar. E ele vai embora. Antes, paga uma cerveja para mim. Suspiro aliviado. Mas fico me perguntando se não deveria ter topado a proposta. Penso na minha vida e constato que não tenho nada a perder, afinal.

Dou um gole na última cerveja.

O gosto está estranho. Meio ácido. Muito ácido. Tombo da mesa e caio no chão. Babando. Não consigo me mexer. Só pode ser veneno o que o maldito colocou na minha bebida.

Nos instantes finais, me lembro do que minha avó vivia repetindo. “Nunca confie num político, meu filho.”

 

Bruno Crispim nasceu em Niterói-RJ, em 1984. Seu romance de estreia, O Segundo Caçador, venceu o Prêmio UFES de Literatura. Enquanto finaliza seu próximo romance, Ascensão, dedica-se ao GUIA do Escritor Iniciante, no Wattpad – onde é embaixador.

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