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O que há de errado com Darwin?

A teoria da evolução sempre foi combatida pelos religiosos a permaneceu incólume por quase dois séculos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 jul 2001, 22h00

Rafael Kenski

As teorias que o naturalista inglês Charles Darwin formulou no século XIX nunca foram tão amplamente difundidas. O termo “darwinista” pode ser encontrado em ciências tão distantes quanto a medicina, a psicologia, a sociologia e a economia. A teoria de Darwin da seleção natural é usada para explicar questões tão diversas quanto a origem do universo, a competição entre as empresas de internet ou o tempero das culinárias de cada região. Apesar do sucesso em diversas áreas, suas idéias têm gerado muita controvérsia no próprio campo para o qual elas foram formuladas, o da evolução.

Os ataques mais agressivos ao darwinismo vêm de grupos religiosos radicais. Em países como a Turquia, grupos islâmicos ameaçam de morte alguns biólogos evolucionistas e propõem leis para banir das escolas o conceito de seleção natural. Fundamentalismo? Algo parecido acontece nos Estados Unidos. Em 1999, o Conselho de Educação do Kansas retirou as idéias de Darwin do currículo escolar obrigatório e permitiu que os professores dessem outras explicações para a origem da vida. A decisão, revogada em fevereiro deste ano, foi uma vitória temporária dos adeptos do criacionismo, que acreditam na interferência direta de Deus na origem e na evolução da vida na Terra. Uma das teorias científicas que corroboram o criacionismo é conhecida por “planejamento inteligente” e foi formulada pelo teólogo William Paley em 1802.

Ela considera que existem alguns padrões tão perfeitos na natureza – como o olho ou as reações químicas dentro das células – que só poderiam ser obra de um ser inteligente. O acaso ou uma lei natural que não leve em conta uma intenção superior não poderiam explicá-la.

“O criacionismo é forte apenas em algumas regiões dos Estados Unidos, onde a Bíblia é interpretada de maneira literal, e tem mais relação com a história social americana do que com os debates da teoria da evolução”, afirma o paleontólogo Stephen Jay Gould, da Universidade de Harvard, Estados Unidos. O aspecto curioso dos ataques religiosos a Darwin é que eles acontecem na mesma época em que os católicos fazem as pazes com os biólogos: em novembro de 1996, o papa João Paulo II afirmou que “novas evidências levam ao reconhecimento de que a teoria de Darwin é mais do que uma hipótese”.

Dentro do campo científico, no entanto, o que não faltam são novas evidências tanto para confirmar Darwin quanto para desancá-lo. “Todas as explicações científicas para a evolução hoje consideram o darwinismo”, afirma o biólogo João Morgante, da Universidade de São Paulo. Ou seja, de um lado, a seleção natural foi constatada em diversas espécies. E muitas pesquisas aprofundam ainda mais as idéias de Darwin. De outro lado, um número também grande de pesquisas questionam vários aspectos da sua teoria.

A seleção natural, da forma como é vista hoje, estabelece que todos os seres vivos produzem descendentes que são parecidos com eles, mas que não lhes são idênticos. Durante a reprodução, o cruzamento de genes ou mutações aleatórias fazem com que o filho adquira novos traços. Na luta pela sobrevivência, algumas dessas características fazem com que uns tenham mais descendentes que outros. Ao longo de milhares de anos, esses traços tendem a se espalhar pela população e eliminam outros menos favoráveis, que não auxiliam na disputa pelos recursos disponíveis. Quando o grupo tiver acumulado um número tão grande de mudanças a ponto de não conseguir mais se reproduzir com outros da mesma espécie, ele dará origem a uma nova linhagem. Dessa forma, pequenas mudanças em indivíduos levariam, de forma lenta e gradual, à criação de uma nova espécie.

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Um estudo divulgado em janeiro constatou esse modelo de evolução em populações do pássaro asiático felosa troquilóide. À medida que essa espécie se espalha ao redor do planalto tibetano, alguns de seus traços mudam, como a música que os machos cantam para atrair as fêmeas. Na Sibéria, no norte do continente, duas variações dessa espécie desenvolveram cantos tão distintos que as fêmeas de uma não reconhecem os machos da outra. A descoberta significa que esses dois grupos, apesar de serem muito semelhantes, não podem se reproduzir entre si, o que indica que se separaram em duas espécies. “Darwin acreditava que a evolução ocorria sem grandes saltos. Nós observamos essa evolução gradual na felosa troquilóide”, diz o autor do estudo, o ecólogo Darren Irwin, da Universidade de Lund, Suécia.

Esse modelo de evolução proposto por Darwin, no entanto, enfrentou um problema já em sua época: ao coletar fósseis, nunca se observou a lenta modificação dos traços prevista pela teoria. No registro conservado em pedra, muitas espécies pré-históricas apareciam como que de repente. Para Darwin, esse pretenso erro acontecia porque poucas espécies deixavam fósseis e, naquela época, um número muito pequeno havia sido encontrado pelos cientistas. No entanto, mais de cem anos depois, os paleontólogos ainda não constatam o gradualismo em suas descobertas. Para alguns cientistas, o problema pode estar na própria teoria.

Em 1972, Stephen Jay Gould e o paleontólogo Niles Eldredge, do Museu Americano de História Natural, em Nova York, Estados Unidos, propuseram a hipótese do “equilíbrio pontuado” para resolver esse problema. Para eles, a evolução acontece em saltos relativamente rápidos, de cerca de 10 000 anos. Uma vez desenvolvidas, as espécies tendem a se manter constantes por até milhões de anos. Esses saltos acontecem quando populações pequenas desenvolvem rapidamente novas características para se adaptar a um determinado ambiente. É ponto pacífico que um grupo reduzido de indivíduos tende a evoluir em menor tempo, uma vez que qualquer nova característica é facilmente espalhada para todos. Quando o grupo se modifica, ele pode migrar ou cruzar com outras populações e transmitir rapidamente os novos traços para o resto da espécie. Os rastros que um modelo desses deixa no registro fóssil dão a idéia de que a evolução tirou férias durante milênios e trabalhou freneticamente por pouco tempo.

A novidade dessa teoria em relação ao darwinismo ortodoxo é que, em vez da evolução lenta e gradual que age a princípio sobre indivíduos, há uma evolução rápida que é causada por grupos inteiros.

Pesquisas recentes mostram que, em alguns casos, as espécies podem evoluir ainda mais rápido do que Gould e Eldredge imaginaram. Um estudo divulgado em outubro do ano passado apresentou evidências de que uma espécie de salmão chegou quase ao isolamento reprodutivo em cerca de 60 anos. Durante a década de 1930, esse peixe foi introduzido em um hábitat no noroeste dos Estados Unidos composto de um rio e uma praia fluvial. Alguns animais se especializaram em viver na correnteza e desenvolveram características distintas daqueles que habitavam as águas calmas da praia. Hoje em dia, os peixes de uma população dificilmente se reproduzem com os da outra e, caso isso ocorra, os descendentes têm poucas chances de sobreviver. “Ainda não se pode dizer que são duas espécies diferentes, mas esse caso é um modelo de como surgem novas linhagens”, afirma Andrew Hendry, da Universidade de Massachusetts, Estados Unidos, o autor do estudo.

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“Conseguimos mostrar que essa espécie se modifica de forma muito rápida e, pela primeira vez, constatou-se que essa modificação leva de fato ao isolamento reprodutivo.”

Desde que foram formuladas, as idéias de Gould e Eldredge dividiram os evolucionistas. Até hoje, os darwinistas mais ortodoxos as consideram apenas um detalhe na teoria da evolução. Por outro lado, alguns cientistas acreditam que o modelo do equilíbrio pontuado explica a maioria dos processos evolutivos. Existe, no entanto, um meio-termo. “O gradualismo e o equilíbrio pontuado são casos extremos. A evolução acontece normalmente no meio do caminho entre os dois”, diz João Morgante. A polêmica, porém, não se limita à velocidade com que a evolução acontece. Os pesquisadores também discutem até que ponto a seleção natural, gradual ou em saltos, tem de fato condições de explicar o surgimento de novas espécies.

Para muitos pesquisadores, diversos outros fatores tendem a interferir na evolução. Muitas das características dos seres vivos podem surgir como conseqüências de outras modificações. Algumas vezes, eles são apenas frutos do acaso. Além disso, teorias indicam que alguns sistemas podem se auto-organizar sem sofrer interferência da seleção natural.

Um método muito utilizado para explicar a origem das características dos seres vivos é o adaptacionismo. Ele parte do princípio darwinista de que as modificações entre uma geração e outra são aleatórias e é em contato com o ambiente que algumas se tornam dominantes e outras são eliminadas. Assim, é possível traçar o caminho pelo qual as espécies evoluíram analisando a forma como cada novo traço facilitou a adaptação ao ambiente. Algumas das demonstrações mais interessantes desses processos são dadas em casos de evolução convergente, em que animais com um parentesco distante desenvolvem traços semelhantes para se adaptar ao meio em que vivem. Por exemplo, os morcegos, que são mamíferos, desenvolveram asas como as aves, o que indica que voar é uma boa solução para superar dificuldades evolutivas e se adaptar ao ambiente em que vivem.

Muitos biólogos, no entanto, acreditam que o adaptacionismo também tem seus limites. Algumas características dos seres vivos podem surgir por simples acaso. É o que mostra a pesquisa realizada por Richard Lenski, da Michigan State University, com a Escherichia coli, uma bactéria encontrada em enorme quantidade no intestino dos animais. Em 1988, ele separou 12 culturas idênticas dessa espécie e as cultivou por mais de 11 anos, o que representou cerca de 24 000 gerações (em termos humanos, esse número equivaleria a cerca de 500 000 anos). Durante todo esse tempo, enfrentaram um ambiente com baixa quantidade de glicose, uma substância da qual se alimentam. A princípio, as populações evoluíram de forma semelhante e todas aumentaram quase duas vezes o tamanho do seu corpo. No entanto, após os primeiros milhares de gerações observou-se que o material genético dos grupos não era mais igual.

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As diferenças se comprovaram quando algumas bactérias foram transferidas para um ambiente diferente, em que o alimento era outro tipo de açúcar, a maltose: algumas populações conseguiram se desenvolver normalmente, enquanto outras apresentaram dificuldades. Ou seja, as bactérias, que eram idênticas e sofreram as mesmas pressões, evoluíram de forma diferente, o que mostra a importância que o acaso pode ter na evolução.

Para Stephen Jay Gould uma evidência importante que contesta o adaptacionismo é a descoberta de que algumas espécies que se diferenciaram há mais de 500 milhões de anos conservam até hoje algumas partes do material genético primevo. Um exemplo são os genes homeóticos, que indicam o desenho geral do organismo, como os lugares em que a cabeça e os membros se posicionam. Pesquisas feitas nos últimos anos mostram que animais tão diferentes quanto uma mosca de fruta e o ser humano mantiveram até hoje a mesma seqüência desse tipo de genes. “Para o adaptacionismo radical, a seleção natural monitoraria as espécies de forma tão eficiente que esses genes não poderiam se manter constantes por tanto tempo”, diz Gould. A seleção, nessa linha de raciocínio, talvez seja mais importante para restringir a evolução a determinadas opções, e menos para gerar novas características.

É possível também que a evolução combine a seleção natural com outras leis da natureza. É o que indicam novos estudos das ciências da complexidade. Essa linha de pesquisa parte do princípio de que alguns sistemas possuem tendências que não podem ser explicadas pelas características de suas partes. Por exemplo, não é possível prever a direção de uma avalanche se conhecermos apenas as características dos flocos de neve, assim como não se pode partir apenas da psicologia de cada torcedor para entender o comportamento de uma torcida de futebol. É o sistema como um todo, em sua complexidade, que deve ser analisado.

Para o americano Stuart Kauffman, esse princípio pode explicar a origem da vida. O mundo, antes dos seres vivos, era basicamente um amontoado de moléculas de diferentes tipos. Cada uma delas possuía a capacidade de acelerar quimicamente a formação de outras partículas. Em um certo momento, o conjunto adquiriu uma quantidade razoável dessas moléculas, que começaram a interagir e acelerar o desenvolvimento do conjunto todo. Formou-se assim um sistema estável e auto-suficiente, semelhante a um ser vivo. A idéia de que substâncias mortas se organizem de uma hora para outra para criar a vida pode parecer estranha, mas foi observada por Kauffman em simulações por computador. Portanto, aquelas formas primitivas de vida, criadas quimicamente, estariam depois sujeitas à seleção natural, mas não foram criadas por ela.

“Os processos evolutivos combinam a organização espontânea, a seleção natural e os acidentes históricos”, afirma Kauffman em seu livro At Home In The Universe (Em casa no universo, ainda inédito no Brasil).

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A discussão pega fogo quando chega a hora de explicar a evolução humana. Será que o nosso cérebro – e, em conseqüência, o nosso comportamento – pode ser explicado pela seleção natural? Os adeptos da psicologia evolutiva acreditam que sim: algumas das nossas atitudes surgiram da necessidade de nos adaptarmos ao longo da evolução. Essa teoria parte do princípio de que o comportamento humano pode ser separado em módulos mentais, responsáveis por diferentes funções. Alguns são quase óbvios, como a habilidade de reconhecer objetos visualmente ou de calcular distâncias. Outros são mais difíceis de imaginar, como o módulo para detectar trapaças e o que relaciona a simetria facial à beleza. Segundo pesquisas nesse campo, nós consideramos pessoas simétricas mais atraentes porque, há alguns milênios, a beleza estava relacionada com a saúde. Assimetrias poderiam ser um sinal de infecções ou contusões e entraram em nossa programação biológica como traços a serem evitados.

Muitos desses módulos não fazem mais sentido hoje, apesar de terem sido essenciais em nossa evolução. “A compulsão por doces era útil quando a comida era escassa e era preciso ter reservas de energia no organismo. E não é mais uma característica desejada”, afirma Denis Werner, antropólogo da Universidade Federal de Santa Catarina e autor de dois livros sobre psicologia evolutiva. Para ele, “essas teorias podem descobrir a origem das características do comportamento humano”.

As relações entre a seleção natural e o nosso cérebro são tão interessantes quanto controversas. Para muitos cientistas, o cérebro é um órgão complexo demais para ser dividido em módulos e é possível que a maior parte do nosso comportamento seja formada por conseqüências secundárias de outras modificações. A capacidade de ler e escrever seria uma dessas características. A seleção natural fez com que o ser humano ganhasse inteligência porque ela era importante nas savanas africanas, mas não para que o homem redigisse textos. Posteriormente, a escrita tornou-se importante, mas não faz sentido buscar uma justificativa evolutiva para ela. Assim como a leitura, muitas outras atitudes humanas, como pintar quadros ou pular de bungee-jump, não possuiriam nenhuma explicação adaptativa.

A polêmica em torno da evolução está longe de acabar. Para os cientistas, isso não é uma má notícia: discussões são sempre muito úteis para estimular o conhecimento e forçar um maior rigor nas pesquisas. Apesar de tanto quebra-pau, o que não dá para negar é o gênio de Darwin. Depois de tantos ataques e emendas, sua teoria se manteve firme nos calcanhares por mais um século. Resta saber por quanto tempo mais.

As características do pássaro felosa troquilóide mudam gradualmente à medida que ele se espalha pela Ásia. No norte do continente, duas variações da espécie não conseguem se reproduzir e podem ser consideradas membros de espécies diferentes. A forma como essas espécies se diferenciaram reproduz o modelo de evolução gradual previsto por Darwin

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Olhos de coruja são estruturas tão complexas que, para alguns biólogos, só podem ter sido planejadas por um ser inteligente. Mas, para a maioria dos cientistas, a pista para a evolução da visão está em órgãos ópticos ultra-simples, como os da estrela-do-mar

Golfinhos e pingüins possuem um formato bastante parecido, apesar de pertencerem a classes diferentes. Esse fenômeno, chamado de evolução convergente, indica que essa estrutura é importante para se adaptar a alguns fatores do ambiente

A área encontrada no meio da espiral das conchas é utilizada por algumas espécies de lesma para armazenar ovos. Essa finalidade, no entanto, não explica o surgimento desse espaço. Ele é apenas um subproduto da evolução

Salmões introduzidos em um rio nos Estados Unidos há 60 anos estão prestes a se dividir em duas espécies. A descoberta mostra que a evolução nem sempre ocorre de maneira lenta, como Darwin previa

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