Donald Glover: um renascentista em Hollywood
Diretor, roteirista, cantor, comediante. Vencedor do Globo de Ouro. Ganhador do Grammy. Nova estrela de Star Wars. Ele faz de tudo. Aqui, sua história
Em um raro dia de chuva em Los Angeles, Donald Glover se prepara para divulgar a maior franquia da história do cinema. Ele sabe que está no auge da carreira. Diferente de seus personagens inseguros ou abestalhados, entra na sala improvisada dentro de um quarto de hotel a passos largos, camisa de seda, cordão de ouro, calça de alfaiataria e barba bem cuidada. Parece pronto para um editorial de moda, mas está com o ator Alden Ehrenreich para falar sobre Han Solo: Uma História Star Wars, no qual interpreta o contrabandista Lando Calrissian. Por mais que Alden seja o protagonista do filme, é Glover quem responde às perguntas que quer com entusiasmo e às que não quer com ironias que arrancam gargalhadas dos entrevistadores. É ele quem dá as frases de efeito que provavelmente virarão manchete. Diz que não se vê como um representante negro em Star Wars: “Não sou pôster de nada. Minha responsabilidade é apenas ser ótimo”. No caso de Donald Glover, “ótimo” não é exagero.
Ele já ganhou um Globo de Ouro por sua atuação em Atlanta, seriado criado, escrito, produzido, dirigido e (ufa) estrelado por ele. A série – que conta a vida de Earn, um rapaz pobre que largou uma prestigiosa universidade e agora tenta gerenciar a carreira do primo aspirante a rapper – também lhe rendeu dois Emmy, além de outro Globo de Ouro para melhor produção de comédia. Sua carreira musical é outro destaque. A canção Redbone, trilha do premiado Corra!, thriller de realismo fantástico que critica as relações raciais nos EUA, foi vencedora do último Grammy. Redbone, na verdade, é cria de Childish Gambino, o alterego musical de Donald – uma licença que ele usa para cutucar o racismo e a violência da sociedade americana. Seu último álbum vendeu mais de meio milhão de cópias. No ano passado, ele anunciou que vai deixar o codinome para trás (o que não impediu os fãs de Star Wars de apelidá-lo de “Childish Landino”).
A versatilidade de Donald não é comum. Hollywood está cheia de artistas que tentaram se aventurar em outras áreas – e escorregaram feio. Madonna, por exemplo, é a cantora mais bem-sucedida de todos os tempos – mas recebeu o título de pior atriz do século pelo prêmio-piada Framboesa de Ouro. Ou Ryan Gosling, que ganhou um Globo de Ouro pela atuação em La La Land e que estudou canto desde criança, mas que tem uma banda falida e vive enfrentando críticas por sua cantoria. Glover não. Tudo que ele toca faz sucesso.
Eremita pop
Vê-lo como o faz-tudo de Hollywood é irônico – principalmente porque ele começou a vida como um eremita cultural. Nascido em 1983 em uma base aérea na Califórnia, Glover mudou-se ainda criança para os arredores de Atlanta, onde não é raro encontrar bandeiras dos Estados Confederados, a parte sulista dos EUA durante a Guerra da Secessão, que viraram símbolo conservador e de apoio à escravidão. Lá, o artista cresceu como Testemunha de Jeová, sem televisão, filmes e festas de aniversário, e ouvindo dos pais que o mundo era um “lugar perigoso”. “Quando algo chegava até nós, era muito incrível. Pequenas coisas completamente normais para os outros eram fascinantes para a gente”, contou em um programa de entrevistas em março. Para Glover, o humor e a crueza do seu trabalho são resultado das tragédias que viu acontecer ao redor. Sua mãe trabalhava em uma creche e costumava ajudar as crianças mais necessitadas que via por lá – o que fez com que Glover crescesse cercado de irmãos adotivos, além dos dois biológicos.
Como poucas opções de diversão entravam na casa dos Glovers, Donald e o irmão Stephen – que hoje é rapper e também escreve roteiros de Atlanta – inventavam comerciais, programas de TV e dublagens falsas. A parceria dos irmãos chegou, inclusive, ao universo Marvel. A dupla estava produzindo uma série animada sobre o anti-herói Deadpool, prevista para estrear este mês, mas a FX cancelou a empreitada devido a “divergências criativas” na obra. Em resposta às especulações de que não estivesse dando conta do recado, Glover divulgou o roteiro completo do último episódio em seu Twitter. No material, já deletado da rede social, um personagem questiona: “Você acha que cancelariam a série por causa de racismo? Todos os autores são negros. E as referências são bastante negras também. Talvez nós estejamos alienando a nossa audiência branca?”.
O enrosco com a emissora é recente, mas o tom provocativo já estava lá desde quando compunha raps na Universidade de Nova York. Em 2006, Glover e mais dois colegas já desbravavam o recém-lançado YouTube com o canal Derrick Comedy, no qual temas controversos viravam piadas de gosto duvidoso. Em uma das esquetes do trio, Glover é o mestre de cerimônia de um campeonato de soletração e pede para os participantes – brancos – soletrarem “nigger faggot”, uma ofensa racista e homofóbica. No vídeo Bro Rape, que atingiu 10 milhões de visualizações, ele encena uma relação não consensual com um amigo para satirizar a frequente proximidade entre estuprador e vítima nesse tipo de crime.
Ainda na faculdade, Glover chamou a atenção da humorista Tina Fey, que o convidou para escrever roteiros para o canal NBC. Assim, ele se jogou na indústria do entretenimento. Fez os seriados 30 Rock, Atlanta e Community; criou shows de stand-up comedy; lançou três álbuns; inventou uma campanha online para que fosse escolhido como o novo Homem-Aranha, apoiada até por Stan Lee (ele acabaria com o papel do vilão Aaron Davis); palpitou no roteiro de Pantera Negra e, no ano que vem, será Simba no live-action de Rei Leão. Na frente ou atrás das câmeras, seu trabalho é reconhecido. Não à toa, seus fãs dizem que ele é o único Donald em quem votariam.
À minha frente, Glover agora enche a boca de mirtilos no quarto de hotel. Seu celular não para de piscar com novas mensagens, mas ele segue firme no raciocínio de que a arte é uma maneira de questionar o mundo. Reclama que a realidade em que vive não é mais a pela qual ele se interessa – a das pessoas comuns. Jantares caros, sorrisos no elevador e desconhecidos elogiando suas produções: nada disso interessa a ele (segundo ele mesmo). Por alguns instantes, até me convence de que bom mesmo é ser anônimo.
A fama não é a garantia para Glover realizar o que deseja, mas é um dos meios. Digo que confrontar a opinião dominante, como ele faz, não é fácil, e conto que uma vereadora ativista brasileira acaba de ser assassinada. Ele descruza as pernas, se ajeita no sofá. “É preciso ser corajoso. E tem que ser muito corajoso para fazer o que ela fazia. Não estou na mesma situação, mas tento fazer justiça com a arte. Ter coragem vem de acreditar em algo, e é difícil manter essa fé depois de adulto. A maioria das pessoas apenas está levando a vida”. Nesse quesito, ele é coerente. Basta vê-lo, como Glover, Gambino ou Earn, para ter certeza de que ele acredita em um mundo mais justo. E de que está disposto a usar todos os holofotes – música, cinema, televisão, o que mais conseguir inventar – para criá-lo.