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Da planta ao copo: a história da tequila

Bebida tem raízes milenares e é feita com a planta-símbolo do México. Entenda como ela ultrapassou a fronteira e virou um dos destilados mais populares nos EUA.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 20 out 2025, 09h10 - Publicado em 15 out 2025, 12h03

Texto Rafael Battaglia | Design e colagens Cristielle Luise

A

uma hora e meia de carro da Cidade do México fica Tepoztlán, um simpático município cercado por montanhas. Tem apenas 14 mil habitantes – mas, aos finais de semana, as ruas de pedra-sabão se enchem de turistas atrás de roupas, comidas típicas e todo tipo de quinquilharia.

Um dos estabelecimentos mais conhecidos é a loja de bebidas de Don Alex, um senhor bigodudo de camisa desabotoada. Lá, só existe uma coisa à venda: pulque, um fermentado milenar feito a partir do sumo do agave, um tipo de planta suculenta.

Alex faz parte da terceira geração de produtores de pulque. Em sua loja, de teto rachado e paredes verde-limão, há fotos do seu avô em plantações de agave. Completam a decoração um chapéu de palha pendurado, um calendário de 2022 (em pleno 2025), um quadro de Mayahuel, deusa asteca do agave e da fertilidade, e um cartaz dos “Pulquémon”, com Pikachu e cia. tomando umas.

O pulque é viscoso: sua consistência fica entre o leite e o iogurte. O teor alcoólico costuma ser o de uma cerveja pilsen (de 4% a 5%). Tem um gostinho azedo e dá para criar versões saborizadas – a que experimentei era de morango, uma delícia.

Há registros do consumo de pulque desde 2000 a.C. De início, era reservado aos sacerdotes e a celebrações – a embriaguez era sinal de contato com o divino. Quando os colonizadores espanhóis chegaram à região, no século 15, o pulque perdeu a aura sagrada e passou a ser consumido por todo mundo, o tempo todo.

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No século 20, contudo, o pulque não tinha uma boa reputação. A maioria das pessoas o via como um drinque da “classe baixa”. Empresas estrangeiras de cerveja, na tentativa de conquistar o mercado, diziam que o produto (que costuma ser feito de modo artesanal e consumido fresco) era anti-higiênico. Foi só nos últimos anos que os mexicanos ressignificaram a bebida e voltaram a consumi-la.

O pulque tem um legado indiscutível. Mas a sua fama não chega aos pés da sua prima mais nova: a tequila. Destilada a partir de uma única espécie de agave, ela é, hoje, um elemento-chave da economia mexicana, com rígidos protocolos de produção e versões cada vez mais sofisticadas.

Graças à tequila, o México é o terceiro maior exportador de destilados do mundo, só atrás de Reino Unido e França. Em 2023, as vendas somaram US$ 5,85 bi, o que representa 1% de tudo o que o México manda para fora.

O México exporta dois terços da tequila que produz. O maior cliente são os EUA – 83% das exportações vão para lá. Desde 2003, o consumo de tequila (e do seu irmão, o mezcal) cresceu 273% na terra do Tio Sam, rivalizando com a vodca e o uísque.

A alta demanda, porém, trouxe consigo alguns problemas. É o que veremos mais para a frente. Antes, é preciso voltar à raiz dessa história – literalmente.

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Em se plantando, tudo dá

O agave existe há 10 milhões de anos. São mais de 200 espécies, e 75% delas estão no México. É uma planta que cresce devagar e aguenta o clima seco.

Há pelo menos 11 mil anos, os humanos passaram a comer agave, tostado ou cru. A planta era importante para a dieta dos nativos da Mesoamérica (que abrange o sul do México, Guatemala e áreas vizinhas), e suas folhas e fibras também eram usadas para fazer roupas, cestas e telhados.

O pulque nasceu da mesma forma que outras civilizações ao redor do mundo descobriram a fermentação alcoólica: certo dia, percebeu-se que plantas muito maduras eram mais doces e que, quando passavam do ponto, poderiam deixar as pessoas alegrinhas.

Levaria milênios até que os humanos entendessem os responsáveis por isso – microrganismos (as leveduras, um tipo de fungo) se alimentam do açúcar e “defecam” álcool e gás carbônico. Mesmo assim, nossos antepassados aprenderam desde cedo que era possível controlar o apodrecimento de frutas e grãos (e, por que não, agave) para fazer birita.

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A palavra “pulque”, aliás, vem de uma expressão do idioma asteca para “aquilo que estragou”.

No século 16, os espanhóis viram no pulque a chance de fazer dinheiro. Incentivaram o consumo e estabeleceram uma taxa para os comerciantes. A produção em larga escala ficou a cargo dos jesuítas. A bebedeira, porém, saiu do controle, e a Coroa teve de limitar a quantidade de pulquerias para amenizar a embriaguez generalizada.

Apesar de assumirem as rédeas sobre o pulque, os espanhóis nunca foram grandes fãs do fermentado. Preferiam os produtos da Europa, como o conhaque e o uísque – bebidas destiladas que aguentavam melhor a viagem do que o vinho e entregavam muito mais álcool por volume.

O problema é que importar essas bebidas era caro, e não demorou para que algumas pessoas tentassem destilar produtos locais. Um dos primeiros escolhidos, claro, foi o agave.

Estudos recentes sugerem que as civilizações pré-colombianas já tinham técnicas rudimentares de destilação, mas a hipótese está longe de ser consenso. Seja como for, o fato é que o processo se difundiu com os espanhóis (a destilação moderna nasceu na Europa no século 14) e com os filipinos. Na época, as Filipinas também eram colônias espanholas (o nome do país vem do rei Filipe II). No México, os imigrantes de lá produziam destilado de coco com técnicas chinesas.

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As destilações em solo americano deram origem ao mezcal, que pode ser feito a partir de várias espécies de agave. O nome vem de mexcalli, que no idioma asteca significa “agave cozido”. Assá-lo libera os açúcares e amacia a planta, o que facilita a extração do mosto e, depois, a fermentação.

O mezcal surgiu no século 17 no atual estado de Jalisco, centro-oeste do México. Na época, a Espanha fechou o cerco à fabricação do destilado de coco e de outros que roubavam o mercado dos produtos da Coroa. Mas o mezcal vingou – o agave era muito mais abundante do que o coco, o que dificultava a fiscalização.

A bebida se espalhou e deu origem a vários destilados de agave. Na prática, é tudo mezcal – mas, com o tempo, eles ganharam outros nomes em função das receitas e preparos distintos. É o caso da raicilla, da bacanora e da tequila, cujo nome vem de uma cidade homônima, também em Jalisco.

Hoje, 90% do mezcal vem de Oaxaca, estado ao sul do México. A sua principal característica é o gosto defumado, cortesia dos dias que o agave passa no forno à lenha. Apesar da fama crescente, a maioria da produção é artesanal – e bem mais modesta que o império que a tequila construiu.

Foto colagem com imagens de agave cortado, uma copo de vidro e uma tigela e um chapéu.
4 mil anos atrás. Foi quando o agave, tipo de suculenta, virou insumo para a produção de bebidas alcoólicas na América. (Cristielle Luise/Montagem sobre reprodução)
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Arriba, abajo

No final do século 16, Filipe II proibiu o plantio de novos vinhedos nas colônias, num esforço para valorizar o vinho da Coroa. Muitos produtores tiveram de diversificar os seus cultivos.

O aristocrata espanhol Luis Sánchez de Tagle decidiu apostar no agave-azul, uma espécie até então desvalorizada, mas que demonstrou crescer bem no solo da região de Jalisco. Devido ao seu alto teor de açúcar, a planta se mostrou uma boa candidata para virar goró.

Tagle abriu a primeira grande destilaria do que mais tarde seria conhecido como mezcal de Tequila, referência à cidade onde a bebida nasceu. O nome “Tequila” tem origem incerta. Pode ter vindo da palavra asteca tequitl (“trabalho”), dos Ticuilas (uma tribo local) e até do espanhol tetilla (“seios”, em alusão ao formato de um vulcão próximo).

Em 1758, a Espanha concedeu terras em Tequila para José Antonio de Cuervo, que ali passou a plantar agave-azul para vender mezcal. Mas eram tempos conturbados. O rei Carlos III proibiu a produção de destilados de agave – mais uma medida protecionista. Foi só em 1795 que o seu sucessor, Carlos IV, liberou a comercialização mediante impostos.

O filho de José Antonio, José Miguel, foi o primeiro a conseguir licença do governo para operar. Era o início da José Cuervo, uma das pioneiras a engarrafar o destilado em vez de colocá-lo em barris. Hoje, ela é uma das maiores fabricantes do mundo.

No século 19, outra família ajudou a disseminar a bebida. Em 1873, Cenobio Sauza fundou a sua destilaria e passou a exportar para os EUA (Sauza foi o primeiro a fazer isso). Foi nessa época que o mezcal de Tequila passou a ser identificado apenas como “tequila”.

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O então chefe da Cuervo, José Cuervo Labastida (sim, há muitos Josés nessa família), embarcou na de Sauza e investiu pesado no mercado americano. Labastida fez lobby para que ferrovias gringas chegassem até Jalisco, e tanto ele quanto Sauza divulgaram a tequila nas Feiras Mundiais que aconteciam nos EUA.

O comércio de tequila se enroscou na Revolução Mexicana (1910–1920), que tirou o ditador Porfírio Diaz do poder e resultou em mais de 1 milhão de mortes. Destilarias e plantações inteiras foram destruídas durante os combates. Além disso, muitos revolucionários eram contra o consumo de álcool. O mercado nacional encolheu.

Vender pra fora também ficou difícil. Os EUA se tornaram inimigos de um dos líderes da Revolução, Pancho Villa. Em meio ao conflito, Villa recebeu apoio da Alemanha – que, por sua vez, era rival dos EUA na Primeira Guerra Mundial. Os americanos cortaram laços com empresas mexicanas que tivessem alguma relação com os alemães. Dentre elas, estava a Cuervo.

Diante desse cenário, Cuervo, Sauza e outros produtores formaram, em segredo, um cartel para proteger o que havia sobrado do mercado. Em 1920, a Revolução acabou, mas os americanos instituíram a Lei Seca, que proibiu o consumo e a venda de álcool. Por anos, a fronteira México–EUA foi palco de um intenso contrabando de tequila.

Quando a Lei Seca caiu, em 1935, a tequila já era bastante presente nos EUA. E, no ano seguinte, um americano que havia visitado o México disseminou um drinque que ficou conhecido como Margarita, talvez o mais famoso com o destilado (vai suco de limão e licor de laranja).

Foto colagem com imagens de uma fatia de limão, garrafas de vidro na linha de produção, uma mão segurando um copo pequeno, garrafas de tequila e um grande tacho.
83% das exportações de tequila vão para os EUA, onde a bebida rivaliza com a vodca. Nos últimos anos, o mercado está mais tímido. (Cristielle Luise/Montagem sobre reprodução)

O mercado

O agave-azul leva sete anos, em média, para amadurecer. Na colheita (a jima), os jimadores separam com cuidado as afiadas folhas da planta do seu núcleo, a piña, que pode pesar até 50 quilos.

As piñas assam por três dias e ficam caramelizadas. Daí, vão para uma prensa para que se extraia o néctar. O líquido entra em barris de madeira junto com leveduras e fermenta por alguns dias.

Em grandes equipamentos de cobre, o fermentado passa por uma dupla destilação – essencial para purificar o álcool e evitar o excesso de substâncias nocivas, como o metanol. À tequila, adiciona-se água para baixar o teor alcoólico de 55% para 40%.

A versão mais fresca é transparente e chamada de blanco. Mas ela também pode passar um tempo em barris de carvalho, como o uísque, e ganhar cor âmbar e sabores mais complexos. A tequila reposado envelhece por dois meses. A añejo, pelo menos um ano.

Os critérios atuais para a produção de tequila tomaram forma nos anos 1950. A bebida precisa ser, no mínimo, 51% feita com agave-azul. O resto pode vir de outras fontes de açúcar, como o milho. São os chamados mixtos – mas há, claro, bebidas 100% agave.

Em 1974, a tequila ganhou o selo de “Denominação de Origem”. Assim como no caso dos espumantes de Champagne, na França, só destilarias de certas partes do México podem estampar “tequila” no rótulo. Quem fiscaliza o mercado é o Conselho Regulador de Tequila, fundado em 1994.

O boom da tequila nos EUA aconteceu no começo dos anos 2000. Havia mais imigrantes mexicanos por lá (9,1 milhões, contra 2,2 milhões em 1980), mas não só. Foi o começo da febre das tequilas premium. Antes disso, as tequilas que chegavam lá costumavam ser de baixa qualidade. Não à toa, enraizou-se o costume de beber tequila com limão e sal para mascarar o gosto meia-boca.

Com a chegada de tequilas de maior qualidade, o padrão de consumo mudou – e aumentou. Até celebridades entraram na onda e criaram rótulos próprios. O ator George Clooney, por exemplo, cofundou a Casamigos – e a vendeu por US$ 1 bilhão.

Mas a alta demanda acende um alerta. A monocultura de agave-azul só aumenta, o que estressa o solo e diminui a variedade genética da espécie – deixando-a mais suscetível a pestes e a doenças.

Além disso, a dependência dos EUA no mercado externo também torna a produção mexicana refém, e não apenas pela ameaça de tarifas de Trump. Depois da pandemia, a procura por destilados no Tio Sam diminuiu. Isso contribuiu para que o México acumulasse em estoque um sexto dos 600 milhões de litros produzidos no ano passado.

Bebida destilada é difícil de estragar, verdade. Mas boa parte desse volume ainda está em barris de carvalho, onde o álcool evapora. Se a tequila ficar lá por muito tempo, há chances de prejuízo.

Diante disso, os produtores têm buscado novos mercados. O Brasil é um deles. Em 2016, o governo nacional assinou um tratado com o México para garantir a qualidade das tequilas e cachaças que circulam pelos dois países. Antes, importar o destilado dos hermanos era mais difícil.

“Foram dois anos e meio de burocracia para enquadrar a tequila na legislação brasileira”, disse Mariana Migliano, cofundadora da Quetzalli Drinks, primeira marca a importar o destilado a granel (a tequila é usada no preparo de algumas das bebidas da marca).

Há um outro componente dessa história tentando se encaixar no Brasil: o agave-azul. A Embrapa importou a planta para testá-la em solo brasileiro para a produção de etanol (algo que já acontece com outra espécie de agave por aqui, o sisal). O México cedeu as mudas, mas sob uma condição: que elas não sejam usadas para fazer tequila.

Tequila Jose Cuervo

Jose Cuervo

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