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Cinquenta tons de rosa

As mulheres estudam mais, trabalham mais e chefiam cada vez mais famílias. Então por que um livro no qual uma jovem apanha de um milionário possessivo vendeu 65 milhões de cópias ao redor do mundo? Entenda em que pé foram parar os relacionamentos modernos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 3 fev 2013, 22h00

Reportagem: Carol Castro Edição: Karin Hueck

Christian Grey e Anastasia Steele vivem em mundos diferentes. Ele tem dinheiro, carros, uma empresa de sucesso, mansões e iates. Ela só tem um fusca e um diploma de literatura. Ainda assim se encantam um pelo outro logo nas primeiras páginas do best-seller mundial Cinquenta Tons de Cinza. Levou poucos dias para o Sr. Grey (como exige ser chamado) tirar a virgindade de Anastasia, em sessões de sexo arrebatador – suficiente para deixá-la “tremendo como vara verde”. E oferecer um contrato de amor. Sim, um contrato. Além da “aparência física impressionante, cabelo revolto acobreado e olhos cinzentos que olham com astúcia”, Christian Grey também tem mania de controle – precisa que sua parceira aceite ser “sua submissa”, comer, vestir e fazer tudo o que ele ordenar. E aprovar sexo sadomasoquista.

Christian Grey é sádico – mistura prazer à dor, romantismo à aspereza. É capaz de levar Anastasia às alturas, literalmente (ele pilota um avião também). Mas basta uma virada de olhos para que ela leve uma surra. Ela pode estar a três mil quilômetros de distância, sem avisar por onde anda, e ainda assim se deparar com ele no mesmo bar. Stalker é pouco. Mas Anastasia não liga para isso. Ela e outras 65 milhões de mulheres em todo o mundo passaram por cima dessas esquisitices e abusos (para nem falar da qualidade literária questionável), e se apaixonaram pelo Sr. Grey – e pela trilogia de E.L. James, Ciquenta Tons de Cinza. Os livros bateram todos os recordes de venda. Por aqui, os três já venderam dois milhões de cópias.

Tanta paixão não se justifica apenas pelas cenas picantes do casal – ou pelas 20 vezes em que Anastasia Steele chega ao orgasmo em pouco mais de 400 páginas. Romance erótico é coisa antiga e os contos do tipo Sabrina existem aos montes nas bancas de jornal. Mas Christian Grey tem algo a mais. Ele soma à figura do macho provedor um ingrediente vital: o amor. “A autora faz essa ligação entre amor e dinheiro. Hoje as mulheres rejeitam essa submissão e buscam parceiros mais igualitários. Mas o livro permite a elas brincar com essas velhas maneiras que um dia foram atraentes”, conta Stephanie Coontz, historiadora social do Evergreen State College, em Washington. Para entender por que essas velharias ainda têm apelo entre as mulheres modernas, é preciso olhar o que aconteceu com os relacionamentos nos últimos anos e entender o novo papel que elas assumiram.

Bloco do eu sozinho
Há mais de meio século, a fase de mulheres submissas, à la Anastasia Steele, ficou para trás. Foi depois da Segunda Guerra, quando a população de homens andava escassa e o hemisfério norte precisava ser reconstruído, que elas foram convocadas para sair do lar e entrar no mercado de trabalho. Já em 1985, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, mais de 50% da força de trabalho na América Latina vinha das mentes e mãos femininas. No Brasil, entre 1976 e 2007, mais de 30 milhões de mulheres entraram no mercado de trabalho.

De lá para cá, o salário delas também cresceu mais do que o deles. Segundo o IBGE, entre 2000 e 2010, o rendimento médio das brasileiras cresceu quase três vezes mais do que o dos homens (apesar de elas ainda ganharem 30% a menos do que eles com o mesmo nível de instrução). Cada vez mais, elas conseguem cuidar da própria vida, sem depender de um marido. “Em 1960, uma mulher com ensino superior recebia menos do que um homem com apenas o ensino médio. Nessas condições, casar se tornava um grande investimento. Hoje isso mudou”, diz Coontz. Com a carteira mais gordinha, casar só se for por amor – um amor saudável e olhe lá. Senão, melhor ficar solteira.

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E é bem isso que tem acontecido. Elas (e eles) têm passado muito mais tempo solteiras (a exceção está nas famílias de baixa renda – com pouco estudo, fica mais complicado conseguir um salário que pague todas as contas; nesses casos, casar ainda funciona como suplemento financeiro). Segundo o IBGE, homens se casam, em média, aos 29 anos, enquanto mulheres dizem “sim” pela primeira vez aos 26 anos. Há apenas 12 anos, essa média era dois anos mais baixa. Se antes era uma aberração, hoje as pessoas aceitam numa boa a escolha de ficar sozinho. Numa pesquisa americana realizada em 1957, 80% das pessoas classificavam como “doentes” ou “esquisitões” os solteiros convictos. Em 1975, só 25% deles ainda pensavam assim. “As pessoas não querem mais se frustrar e entrar num relacionamento que talvez não funcione. Agora isso é aceito. Antes os solteiros, principalmente as mulheres, sofriam preconceito”, diz Isabel Gomes, especialista em psicologia social da USP. Por aqui, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, nos últimos dois anos, o número de pessoas que foram morar sozinhas aumentou em 800 mil.

Com essa mudança demográfica, surgiram até os ativistas da causa solteira. É o caso da americana Bella de Paulo, psicóloga e professora da Universidade da Califórnia, e uma das principais defensoras do direito de ser solteiro. Ela se intitula “solteira de coração” – o tipo de pessoa que escolhe estar sozinha. A luta dela é estender os direitos dos casados (por exemplo, ganhar descontos no plano de saúde) aos solteiros. “Existem mais de mil benefícios federais nos EUA que só incluem pessoas casadas”, explica. Outra coisa que ela gostaria de mudar é a previdência social. Assim como no Brasil, se uma pessoa morre, o dinheiro da aposentadoria pode, temporariamente, ser transferido para os dependentes (cônjuge, filhos ou pais). Se a pessoa for solteira e sem filhos ou pais, fim da história – o dinheiro volta para os cofres do governo. Ela gostaria de um final diferente. “Quando eu morrer, meu dinheiro vai ficar com o sistema, enquanto alguém casado pode passar para o marido. Por que não posso passar para um amigo próximo?”

Xô, traste
Com mais dinheiro no bolso e menos vontade de se casar, as mulheres ficaram também mais seletivas na hora de buscar um parceiro. “Como se tornaram capazes de se sustentar, mesmo fora de um casamento, elas aumentaram o padrão de qualidade nas relações”, justifica Stephanie Coontz. “Se for para casar, melhor ter certeza de que o marido vai manter o emprego e dividir as contas. Caso contrário, é melhor ficar sozinha”. A lógica deixou de ser “procuro marido que possa me sustentar” e passou para “procuro marido que eu não tenha de sustentar”. A escolha criteriosa elevou também a expectativa da beleza física, assunto que antes preocupava mais aos homens. Pesquisadores da Universidade York, no Canadá, perguntaram a 12 mil pessoas quais eram os atributos mais importantes em um parceiro. O resultado foi conclusivo: pela primeira vez,elas afirmaram que se preocupam mais com a beleza do que eles.

Bonitos, interessantes, com uma vida financeira estável – e educados. A lista de atributos desejáveis não para de crescer. E com motivos: pela primeira vez, elas também estudam mais do que eles, em todos os níveis. Segundo o Ministério da Educação, mais de 55% das novas matrículas em cursos superiores são preenchidas por mulheres – e 60% dos diplomas são entregues a elas. Além disso, elas passam mais tempo nas escolas. Os dados do IBGE mostram que homens estudam em média por 9,6 anos enquanto que mulheres com a mesma faixa etária passam 10,2 anos dentro das salas de aula. A consequência dos anos de estudo a mais é imediata: elas já estão levando a melhor na hora de concorrer aos empregos. Nos EUA, as americanas já superaram os americanos em cargos gerenciais. E mais: em quase 40% dos casamentos, as esposas ganham mais do que os maridos. Os homens estão tendo de rebolar para ficar à altura das mulheres – ou pelo menos para atender as expectativas altas delas. Nesse contexto, um rapaz bem-apessoado, abastado e com disposição para um relacionamento sério, como o Sr. Grey, passa a ficar mais interessante (muito mais do que ele de fato é).

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Onde está Wally?
Mas, ironia da vida, com tantas mulheres “boas” disponíveis (educadas, bem-empregadas, autossuficientes etc. etc.), os homens, em vez de amarrar seus burros na sombra, resolveram cair na farra. Para assumir um relacionamento sério, só se valer muito a pena – senão é melhor aproveitar a oferta abundante de mulheres de qualidade. E há de fato uma oferta em excesso por aí: no Brasil, existem 1,2 milhão de mulheres a mais do que homens entre os 20 e 45 anos. Essa desigualdade reflete no comportamento masculino. A origem biológica você já conhece: no reino animal, o objetivo dos machos é se reproduzir com o maior número de fêmeas possível para garantir que seus genes sejam transmitidos. Já às fêmeas cabe o papel de escolher o par mais forte ou interessante socialmente para a procriação. Monogamia é invenção rara na natureza, serve para ajudar na criação e sobrevivência dos filhos.

Felizmente, não respondemos apenas a genes e impulsos biológicos na hora de escolher nossos parceiros. Infelizmente, no entanto, os impulsos sociais parecem reforçar o comportamento animal. Uma pesquisa feita por psicólogos da Universidade do Texas analisou relacionamentos entre homens e mulheres em um grupo de quase 10 mil pessoas de 36 culturas diferentes. E notaram uma tendência: quando há uma diferença numérica muito grande entre os sexos, o gênero menos populoso começa a ditar as relações. Ou seja, quando a minoria é feminina, as mulheres ganham mais valor e respeito, e usam a desvantagem numérica para criar relacionamentos estáveis e famílias. Elas podem escolher melhor os parceiros – como consequência, nessas sociedades, os divórcios são mais raros. Por outro lado, quando os homens são minoria, eles preferem a gandaia. Ficam mais promíscuos e fogem de relacionamentos sérios, como no mundo animal. Aí pouca gente resolve juntar os trapinhos – e a idade média para o primeiro casamento sobe. Exatamente a tendência que se observa entre pessoas com mais anos de estudo no Brasil.

Outra pesquisa, da Universidade de Minnesota, testou o comportamento na prática em duas cidadezinhas na Geórgia, no interior dos EUA. Separadas por pouco mais de 150 quilômetros, Columbus e Macon dividem os mesmos costumes e cultura – menos em um quesito: as dívidas. Por algum motivo, os homens de Columbus se endividavam muito mais do que os de Macon. Intrigado, o pesquisador Vladis Griskevicius decidiu fazer um teste. Primeiro, descobriu que em Macon as mulheres são maioria – existe 0,78 homem para cada uma delas. Já em Columbus, é o contrário: eles sobram – há 1,18 rapazes para cada moça. Em seguida, ele separou 205 homens das duas cidades em diferentes grupos. Todos deveriam contar o número de mulheres numa foto e depois escolher entre receber US$ 35 na hora ou esperar o mês seguinte e ganhar US$ 45. A proporção entre homens e mulheres variava em cada foto. E, na maior parte das vezes, quando o voluntário observava uma fotografia com mais homens do que mulheres, ele preferia pegar o dinheiro imediatamente e ficar com US$ 35. Segundo Griskevicius, quando há muito macho no pedaço, eles precisam se esforçar mais para superar a concorrência – e preferem garantir logo a parte que lhes cabe (seja em dinheiro, seja em mulheres). Assim, resolvem também gastar mais dinheiro – para bajular suas pretendentes.

Mesmo assim, Stephanie Coontz acredita que as mulheres (e os homens também) estão em busca de relações saudáveis, igualitárias e com amor – além da estabilidade financeira. Os casais que participaram de uma pesquisa de universidades americanas corroboram a hipótese. As mulheres mais felizes eram aquelas que se sentiam compreendidas pelo parceiro (apanhar não apareceu em nenhum momento na pesquisa). Dinheiro não é mais o carro-chefe de um casamento. E não faz ninguém feliz. Mesmo porque se uma mulher, hoje em dia, quiser só carro, dinheiro e joia, ela pode comprar por conta própria. Sem precisar de Christian Grey.

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MÃO DE OBRA FEMININA
– 50% era a força de trabalho feminina na América Latina, já em 1985.

– 60% dos diplomas universitários são entregues a elas.

– 51% das vagas gerenciais nos EUA são ocupadas por mulheres.

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– Entre 2000 e 2010, o salário das mulheres subiu 13,5%, enquanto o deles subiu 4,1%.

CASAMENTO
– De 43 a 46% dos casamentos terminam em divórcio nos EUA.

– 48% é a porcentagem de solteiros no Brasil – maior do que a proporção de casados: 40%.

– 29 anos é a idade média do casamento para homens hoje em dia.

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– 26 anos é a para mulheres.

– Há 12 anos a média era de: 27 anos para homens e 24 para mulheres.

– 50% da população feminina entre 25 e 29 anos está solteira na Espanha.

– 12% das casas no Brasil são compostas por apenas uma pessoa.

Para saber mais
Marriage, a History: How Love Conquered Marriage
Stephanie Coontz, Penguin Books, 2006.

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