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Cem anos sem Kafka: como sua obra foi publicada contra sua vontade

O último desejo de Kafka era que seus manuscritos inéditos fossem queimados. Seu amigo ignorou sua vontade, transformando-o num ícone da literatura.

Por Eduardo Lima
Atualizado em 7 jun 2024, 15h54 - Publicado em 3 jun 2024, 18h00

Há cem anos morria de tuberculose Franz Kafka, o escritor austro-húngaro (nascido em Praga, hoje seria tcheco) que inaugurou uma nova era da literatura. Sua obra é tão importante que seu nome até virou adjetivo: chamamos de kafkiano aquilo que é inexplicavelmente confuso e frustrante, mas que temos que aceitar. Essa é a típica experiência de um personagem de Kafka: Gregor Samsa, protagonista de A Metamorfose, vira um bicho horrível sem entender o porquê, mas continua preocupado com chegar no trabalho na hora certa.

Morto aos 40 anos, Kafka publicou poucos contos em vida, sem chamar muita atenção do público. A Metamorfose, O Veredito e Na Colônia Penal são as histórias curtas mais conhecidas publicadas com a autorização do autor, mas só foram reconhecidas como geniais após a morte de Kafka.

O resto de sua obra, como os célebres romances O Processo e O Castelo, foram publicados e venerados depois que Kafka morreu, mudando a história da literatura mundial. Mas tudo isso quase não aconteceu, já que o autor queria que seus manuscritos fossem queimados.

O escritor tímido

Com 29 anos, Franz Kafka ainda não tinha publicado nenhum livro, só alguns contos em revistas literárias. Seu amigo da época da universidade, Max Brod, era um ano mais jovem e um autor importante da literatura expressionista, responsável por apresentar a obra de Kafka para seu editor alemão, Kurt Wolff.

O editor lembrou de Kafka, anos depois, como o único autor que lhe disse que ficaria mais grato pela devolução do manuscrito do que pela publicação. O editor não ouviu o jovem autor inseguro com sua literatura, e publicou diversos livros do autor tcheco, até mesmo após sua morte.

Durante a vida, se estima que Kafka queimou cerca de 90% de seus escritos. No leito de morte, ele revisou o livro Um artista da fome, o último livro publicado com a autorização do autor. Depois disso, ele deixou Brod como o responsável pelo seu testamento, e seu pedido foi bem claro: queime tudo que esteja inédito e incompleto.

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Quem tem um amigo tem tudo?

“Caríssimo Max, meu último pedido”, escreveu Kafka. “Queimar completamente, sem ler, tudo o que se encontrar no meu espólio […] em termos de diários, manuscritos, cartas, de outros ou de meu próprio punho, desenhos etc”.

O último desejo de Kafka não foi respeitado. Se tivesse sido, o mundo nunca teria lido O Processo, América ou O Castelo, obras que foram escritas por Kafka, mas organizadas e editadas por Brod. Ele insistiu na genialidade do amigo e passou o resto de sua vida, até morrer em 1968, divulgando e tornando o companheiro tímido num dos escritores mais importantes do século 20.

O Processo é um romance que não tinha uma ordem definida por Kafka. Os capítulos poderiam ser lidos individualmente, sem seguir uma cronologia muito óbvia. Os episódios mais delimitados temporalmente são o que apresenta a detenção e, portanto, inicia a história, e o capítulo com o título “Fim”. A ordem em que o romance é conhecido foi desenvolvida e pensada por Brod, finalizando o livro do amigo por ele.

Brod não publicou só os romances e contos inéditos de Kafka. Ele foi além e publicou os diários do autor, além de correspondências como a famosa Carta ao Pai, um escrito extremamente pessoal, com cerca de cem páginas, que ele nunca chegou a enviar. 

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O conteúdo da carta foi usado para interpretar de forma psicanalítica as obras de Kafka, que chega a chamar o pai de “tirano”. Pode ser uma obra com alto valor literário, mas a pulga atrás da orelha é persistente: será que deveríamos estar lendo isso?

Quem é o herdeiro do herdeiro?

Brod confiou mais na qualidade da obra literária do amigo do que no desejo expresso de Kafka de ter seus escritos queimados. Será que ele tinha esse direito? E será que Kafka, um dos grandes autores da modernidade, tinha o direito de abandonar sua obra?

Depois da morte de Brod, os arquivos de Kafka ficaram com a secretária do amigo, Esther Hoffe. Ela morreu aos 101 anos, em Tel Aviv, e aí começou uma disputa legal pelo espólio de Kafka entre suas herdeiras, o Estado de Israel e sua Biblioteca Nacional, e a Alemanha, por meio do Arquivo Literário de Marbach.

Kafka era judeu, mas nunca morou em Israel (o Estado foi fundado em 1948, 24 anos depois da morte do escritor), apesar de ter demonstrado vontade de se mudar para a Palestina durante a vida. O autor era tcheco, mas as herdeiras de Hoffe queriam vender o arquivo para a Alemanha, que afirmava ter direito sobre a obra porque seus escritos foram feitos em alemão. No fim, quem ficou com o arquivo de Kafka foi a Biblioteca Nacional de Israel.

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Herdeiros traidores

Franz Kafka não é o único autor a ser desrespeitado por seus herdeiros e testamentários. Roberto Bolaño, escritor chileno influenciado por Kafka e um dos maiores nomes da literatura latino-americana das últimas décadas, morreu aos 50 anos de falência hepática em 2003. No ano seguinte, ele teve um livro publicado contra sua vontade, mas de forma um pouco diferente.

Bolaño deixou guardado seu último romance, 2666, que ele queria desmembrar em cinco partes e publicar uma por ano para garantir o futuro econômico de seus filhos. 

Depois que a obra foi lida por Ignacio Echevarría, o amigo que ele indicou como referência para tratar de assuntos literários, os responsáveis chegaram à conclusão de que publicá-la em um único volume seria uma forma de respeitar o autor, que teria feito isso não fosse sua doença. Hoje, o romance é considerado sua obra-prima.

Gabriel García Márquez, o escritor colombiano que ganhou o Nobel de Literatura, começou a escrever seu primeiro conto um dia depois de ler A Metamorfose. Quem diria que, depois da morte, ele também seguiria um caminho parecido com o de Kafka: em 2024, foi publicado um romance póstumo que García Márquez disse que nunca deveria ser lançado.

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Em agosto nos vemos, publicado dez anos depois da morte do autor, foi escrito quando ele já sofria com demência. Ele não gostou do romance, e mandou destruí-lo. Seus herdeiros decidiram publicar o livro, que disseram que era “muito melhor” do que lembravam, argumentando que talvez o autor tivesse perdido a capacidade de julgar a obra.

Pode ser um exercício interessante pensar no que teria acontecido se a vontade de Kafka tivesse sido respeitada, mas uma coisa é certa: a literatura mundial seria bem diferente. Talvez nem teríamos Bolaño ou García Márquez para contrariar se não fosse o primeiro desrespeito contra Kafka.

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