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O mais impossível dos amores

Ódio, intolerância e um final trágico - que Shakespeare adaptou de uma história que circulava desde a Antiguidade

Por Alexandre de Santi (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 27 out 2020, 10h57 - Publicado em 25 nov 2015, 16h30

Livro: Romeu e Julieta
Autor: William Shakespeare
Ano: 1597
Por que ler? Porque até o maior amor do mundo sofre com a intolerância.

Romeu e Julieta

Romeu e Julieta conta a história de um amor entre dois jovens de famílias rivais. Eles fazem de tudo para ficar juntos, mas o ódio dos pais não deixa esse amor se concretizar. Desesperados, eles bolam um plano, mas dá tudo errado. O final você provavelmente já conhece: dois suicídios motivados por uma falha de comunicação. Só que Shakespeare não criou nada disso (ou quase nada): a história circulava desde a Antiguidade. Na verdade, o maior dramaturgo de todos os tempos raramente criava um roteiro 100% original. O inglês era um ótimo reciclador de histórias. O que tornou o bardo um clássico não foi seu talento para criar enredos e personagens, mas sua capacidade de envolver leitores ou espectadores. Em Romeu e Julieta, o público, mesmo conhecendo o final, torce desesperadamente para que a carta do frei Lourenço chegue a tempo às mãos de Romeu contando que, na verdade, Julieta não estava morta. Por essas e por outras, o texto é considerado a maior peça de amor de todos os tempos e a mais interpretada obra do bardo até hoje. Foram mais de 150 adaptações para TV e o cinema baseadas no casal. Sem contar as inúmeras obras inspiradas nesse amor frustrado pela intolerância, como o filme Titanic.

O drama pertence à primeira fase do escritor, quando Shakespeare e sua trupe não eram mais do que um bando de desconhecidos. Na Inglaterra do século 16, o teatro era mero entretenimento e disputava a atenção do público com coisas bem menos nobres, como execuções em praça pública ou ataques de cães a touros. Não havia qualquer pretensão artística ou de crítica social. Nessa época, o grupo de Shakespeare se apresentava em estalagens em beira de estrada, as quais tinham um pátio interno onde os hóspedes se reuniam para as refeições. “Encenar uma peça para esse tipo de público não era diferente do que seria hoje fazer uma apresentação na praça de alimentação de algum shopping”, compara Sandra Sirangelo de Maggio, professora de Literatura Inglesa da UFRGS. O desafio era fazer os potenciais espectadores largararem o garfo e prestarem atenção. As peças começavam, invariavelmente, com algo inesperado – no caso de Romeu e Julieta, com uma boa briga. Depois que a plateia vidrava, o enredo começava de fato. O personagem de Romeu era sempre interpretado pelo ator mais bonito do grupo – qualquer semelhança com Hollywood não é mera coincidência. E Julieta, por um rapaz de voz fina – mulheres não tinham vez na cena teatral da época.

A peça foi um grande sucesso de público e abriu caminho para a trupe no meio teatral de Londres. Shakespeare se tornou o queridinho da Rainha Elizabeth I, apesar de críticos terem considerado a apresentação apelativa, porque misturava amor, brigas e vingança. A paixão de Romeu por Julieta tinha um arrebatamento juvenil em uma época em que não havia adolescência e juventude como as conhecemos hoje (não havia tempo para ser inconsequente e sofrer de amor no século 16). Isso mostra como o bardo era certeiro em revelar sentimentos genuinamente humanos, acima de convenções. “Enquanto a natureza humana continuar a existir, a obra de Shakespeare permanecerá atual”, diz Sandra.

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A intolerância entre as famílias que impediu o final feliz é outro trunfo da obra. Shakespeare não tinha pretensão de fazer uma crítica social, mas fez uma retumbante: o ódio e as convenções sociais matam. Nem o maior amor de todos os tempos resistiu à intolerância, que quatro séculos depois continua matando judeus, palestinos, negros e homossexuais. Em Romeu e Julieta, a trágica morte dos jovens apaixonados serviu para pôr fim no ódio entre as famílias Montecchio e Capuleto. Na vida real, as mortes trágicas continuam engordando as estatísticas.

Nas suas obras, os personagens de classes sociais diferentes usam linguagens próprias. Membros da elite falam em um tipo de verso, chamado de pentâmetro jâmbico, que usa tônicas em sílabas pares. Criaturas como fadas, duendes, fantasmas ou bruxas usam o tetrâmetro, versos de quatro-pés geralmente aproveitados em cantigas. Sujeitos mais simples, como artesãos e coveiros, falam em prosa. No pentâmetro jâmbico, que predomina nas peças de Shakespeare, a diretora de voz da Royal Shakespeare Company, Cicely Berry, diz que, ao serem proferidas pelos atores em cena, as frases criam uma cadência (tatá, tatá, tatá, tatá, tatá) capaz de levar os ouvintes a um estado alterado de consciência, como nos mantras orientais.

Mas a linguagem shakespeariana vai ainda mais fundo. Nobres como Romeu e Julieta também falam em prosa para se adaptar ao sentimento que está sendo expresso. Preste atenção quando Romeu pede que Julieta fale o que sente por ele (Ato 2, cena 6). Ela responde, em prosa, que nessa circunstância apenas um mendigo contaria as palavras. Quando Mercúcio, prestes a morrer, amaldiçoa as duas famílias (Ato 3, cena 1), faz isso em prosa também. O ponto mais bonito desse jogo de linguagem é o momento em que eles conversam pela primeira vez (Ato 1, cena 5). Juntando as partes faladas por cada um, forma-se um soneto, a forma poética de expressão do amor romântico. “Nada mais apropriado para a primeira troca de palavras do casal mais lembrado na história da literatura romântica”, diz a professora.

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