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Sassaricando: a história por trás do ovo do Colombo

Veja como uma frase de marchinha de Carnaval embala quase cem anos de história, numa trama que envolve conhaque, mocotó, uma novela das sete e Rita Lee.

Por Ricardo Garrido
8 fev 2024, 16h06

Às vésperas do Carnaval, tomando aquele chope entre bloquinhos em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, engajei numa discussão sobre letras de marchinhas clássicas e suas duas características mais marcantes: (1) o duplo sentido sacana, frequentemente com insinuações sexuais mais ou menos escancaradas, e (2) o comentário ou sarcasmo em cima de algum acontecimento da época, do mês, da semana antes do Carnaval daquele ano. 

E ficamos especulando sobre o que teria feito “o velho na porta da Colombo; foi um assombro, sassaricando”. 

“Sassaricando”, claro, era uma deliciosa metáfora para aquilo que todo mundo faz pra exorcizar a vida dura, “levada no arame” – uma atividade tão natural e acessível que, mesmo “quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só, porque sem sassaricar, esta vida é um nó”. 

E o “a porta da Colombo”, claro, é a famosa Confeitaria Colombo no centro do Rio de Janeiro, que era o ponto de encontro dos ricos, poderosos e figurões desde sua fundação, em 1894. 

Em seu imponente salão com cara e cheiro de Belle Époque, gente como Getúlio Vargas, Machado de Assis, Rui Barbosa, Villa-Lobos e Juscelino Kubitscheck tiveram mesa cativa. Mas em 1952, quando a marchinha, composta por Luiz Antônio, Oldemar Magalhães e Zé Mario, explodiu na voz e imagem da vedete Virginia Lane, a Colombo tinha se popularizado. Passou a servir  um animado chá das cinco para a classe média alta que a frequentava – e a paquera de fim de tarde era a moeda corrente. 

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Não encontrei nenhuma notícia sobre algum senhorzinho exibicionista na porta da Colombo, no entanto; a marcha parece se referir a uma situação mais arquetípica – velhos assanhados dando em cima das madames, devidamente aditivados por um drink autoral da confeitaria (e isso é importantíssimo para a nossa história): um conhaque enriquecido com a geleia de mocotó (ou seja, feito a partir da pata do boi) que a confeitaria tinha inventado. Virou o produto mais famoso de lá. Dizem que o drink tinha poderes afrodisíacos. Fast forward para os anos 1980 e a infância do autor deste texto.

 

A Geleia de Mocotó realmente devia dar uma energia extra, porque a TV Globo exibia durante todo o dia – incluindo programas infantis –  propagandas da Geleia de Mocotó Inbasa, que concorria com o Biotônico Fontoura como fonte de energia e vivacidade para crianças (que criança precisa de energia extra?, pergunto hoje, sendo pai e observador estupefato de uma criança de seis anos destruindo a casa). O que isso tem a ver com Carnaval? Tudo. 

Porque a Globo lançou uma divertida novela das sete em 1987 chamada Sassaricando, estrelada por Paulo Autran e Tônia Carrero. A música de abertura era a já clássica marchinha, e ninguém menos do que Rita Lee (artista da Som Livre, gravadora da Globo) fora convocada para gravar uma versão atualizada da canção.

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A versão de Rita, como não podia deixar de ser, é ainda mais anárquica do que a original: nela, “sem sassaricar, essa vida é um ó” e não um “nó”; e o verso do velho na porta da Colombo fora substituído por um inacreditável “sentaram no ovo do Colombo”. 

Durante a minha pesquisa arqueológica pela mitologia carioca, eu imaginava que Rita Lee teria feito isso para aumentar a abrangência da da letra da música (afinal, quem fora do Rio saberia que a Colombo era a centenária confeitaria no Centro?). 

Mas fui descobrir um final inesperado e que explica as incessantes propagandas da Geleia de Mocotó Inbasa naquela mesma época: acontece que Roberto Marinho era o dono da fábrica da tal geleia de mocotó, e o principal concorrente do produto era a Geleia de Mocotó Colombo (sim, a criação da Confeitaria Colombo – que, àquela altura, tinha sido vendida para uma empresa que queria mesmo era a geleia para ser comercializada nos supermercados de todo o país). 

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O dono da Inbasa e da Globo tinha proibido qualquer menção à Colombo na emissora, para proteger a sua própria geleia. Logo, a produção da novela teve de mudar a letra da música de abertura. 

Rita Lee, dona do próprio nariz e sacana que só ela – aproveitando-se de tempos mais liberais – meteu logo um “sentaram no ovo do Colombo, foi um arrombo, sassaricando”. Ela teve de ceder e “arrombo” deu lugar ao “assombro” original, mas é isso. 

Ou seja: um verso que você ouve num bloquinho contém cem anos de intrigas palacianas, conspirações corporativas e tensões criativas. 

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A propósito: Roberto Marinho vendeu, em 1995, dez anos depois da novela, a Inbasa para a Arisco. A Colombo também havia sido adquirida pela mesma Arisco em 1992 – de modo que a guerra da geleia de mocotó se encerrou pela mão nem tão invisível do mercado. 

A Arisco, por sua vez, acabou vendida no ano 2000 por US$ 490 milhões para a Unilever, que até hoje produz e comercializa a geleia de mocotó, sob a marca Arisco. Ah! E, em 2002, a Confeitaria Colombo – que fora carregada como penduricalho em todas essas transações corporativas, além de ter sido tombada como Patrimônio Histórico do estado do Rio de Janeiro em meados dos anos 80 – foi vendida pela Unilever para uma família carioca que, desde então, lhe devolveu o charme e a pompa histórica. 

E, ninguém perguntou, mas eu ainda assim prefiro o verso arrombador da Rita Lee ao original – só porque é a Rita).

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