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Como o atum se tornou o peixe mais cobiçado do mundo

A criação em fazendas aquáticas garante o estoque imediato de atum fresco, mas também deixa o peixe mais cobiçado do mundo em risco de extinção. E agora?

Por Marcos Nogueira
Atualizado em 20 ago 2019, 15h14 - Publicado em 28 set 2015, 17h15

Frango do mar – em inglês, Chicken of the Sea. Este é o nome de uma marca hoje pertencente ao maior fabricante de atum em lata do mundo, o Thai Union Group. A comparação fazia sentido em 1914, quando a Chicken of the Sea foi criada: o atum, até então destinado majoritariamente à alimentação de gatos, começava a ganhar importância na dieta dos humanos dos Estados Unidos. Para convencê-los a comprar a novidade, exaltava-se a qualidade do produto: carne macia, de sabor suave.

Com o devido respeito aos galináceos, a analogia é uma afronta ao atum. Como o mundo viria a aprender ao longo do século 20, esse peixe de sangue quente tem uma das carnes mais saborosas dos mares. Por isso mesmo, o atum tornou-se um favorito global. Sua carne gorda e suculenta está presente em uma gama enorme de pratos, que vão da larica improvisada à alta gastronomia.

Até porque o preço do atum varia imensamente, de acordo com a espécie. As mais valorizadas são a Thunnus maccoyii, a Thunnus orientalis e a Thunnus thynnus, todas conhecidas pelo nome genérico bluefin − “barbatana azul”. São animais enormes – o maior bluefin já capturado pesava 780 quilos, tanto quanto um Fusca. Eles são, portanto, vendidos aos pedaços. A parte mais apreciada e mais cara encontra-se na barriga do peixe. A ventrecha do bluefin, mais conhecida por seu nome em japonês (o-toro), é uma carne gorda, rosada. Deliciosa. Um único sushi desse corte chega a custar R$ 100 nos restaurantes de São Paulo. Como um sushi leva entre 10 gramas e 15 gramas de peixe, o quilo do o-toro pode chegar a R$ 10 mil para o consumidor final.

O lucro insano que um único atum pode proporcionar fez com que a bióloga marinha americana Barbara Block, da Universidade Stanford, apelidasse o bluefin de cocaína do mar. Mais poética, a pesquisadora inglesa Lucy Hawkes, da Universidade de Exeter, chama o atum de Ferrari do oceano. Os cardumes, com algumas dezenas de indivíduos, fazem viagens transoceânicas a 90 quilômetros por hora. “Para os biólogos, o atum é o epítome da excelência hidrodinâmica; ele é rápido, poderoso e tem o design ideal”, derrama-se Richard Ellis, também biólogo marinho.*

A indústria da pesca, menos reverente, fez do atum uma espécie de boi marítimo. Mas não por se tratar de um peixe grande e de carne vermelha, e sim porque a altíssima demanda pelo bluefin fez surgir um sistema de produção semelhante ao do gado. Os animais são confinados em currais flutuantes, onde não fazem nada além de comer até atingir o peso ideal para o abate. O método mostrou-se ainda mais daninho à espécie do que a pesca indiscriminada, pois presume a captura de animais muito jovens para o confinamento. Como esses peixes são impedidos de procriar, a população de bluefin está caindo num ritmo preocupante.

Sommeliers de atum

Em dezembro de 2004, o jornal japonês Yomiuri Shimbun estampou uma notícia curiosa. O cliente de um sushi bar de Nagoya acusou o dono do estabelecimento de mentir sobre a procedência do atum. O peixe era vendido como se houvesse sido pescado no Estreito de Tsugaru, entre as ilhas de Honshu e Hokkaido. Ao provar seu sashimi, o homem achou a carne gordurosa demais para um animal capturado na natureza. Ele tinha razão a respeito da fraude: uma investigação provou que a origem do pescado era uma fazenda de atum na Turquia.

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Não surpreende tamanha sensibilidade. O Japão consome 80% de todo o atum bluefin pescado ou criado no mundo. No Brasil, ele é pouco servido. Mas lá a obsessão chega a ponto de existirem especialistas análogos aos sommeliers de vinho − gente capaz de identificar, pelo sabor, o terroir do peixe, no caso, o hábitat de onde ele veio. A exibição mais gritante da “atumania” japonesa é o mercado de Tsukiji, em Tóquio, onde todas as manhãs são leiloados centenas de peixes para varejistas e donos de restaurantes. Uma vez ao ano, no primeiro sábado de janeiro, há um leilão cerimonial em que um exemplar de bluefin é arrematado por um preço exorbitante – por uma questão de marketing, já que o restaurante vencedor ganha fama nacional instantaneamente. O recorde foi estabelecido em 2013: US$ 1,76 milhão por um peixe que depois renderia US$ 80 mil com a venda da carne, mais um valor intangivelmente alto para a imagem do estabelecimento vendedor da carne.

Até meados do século passado, nem o Japão nem lugar algum no mundo dava valor ao atum bluefin. Enquanto espécies menores, como a albacora e o atum-bonito, já alimentavam a gigantesca indústria de enlatados (que corresponde a 99% do mercado de atum), a carne do grandão de barbatanas azuis era vendida para alimentar gatos. “Ninguém apreciava a carne sanguínea, de sabor intenso”, diz a chef Telma Shiraishi, do restaurante paulistano Aizomê, pesquisadora dos hábitos alimentares japoneses.

A mudança veio na esteira de dois marcos históricos: o barateamento dos equipamentos de refrigeração e a vitória aliada na Segunda Guerra. Freezers deixaram mais acessível o peixe cru, o que proporcionou a explosão do consumo de sashimi e sushi no Japão. Já a tara por atum bluefin é cortesia dos EUA.

Depois de Hiroshima e Nagasaki, o Japão foi bombardeado outra vez – agora pela cultura americana, e mudou seus hábitos alimentares. “Foi por influência ocidental que começaram a apreciar as carnes mais gordas, como a do bluefin.” Para saciar esse novo apetite, a pesca evoluiu para métodos cada vez mais eficazes (e destrutivos): barcos com múltiplas varas de pescar, redes flutuantes com quilômetros de extensão e o espinhel, uma traquitana flutuante com muitas linhas e anzóis. A voracidade dos pescadores e de seus clientes fez com que os cardumes minguassem, o que quase aniquilou o mercado de atum nos anos 1990. Os animais capturados eram pequenos demais para ter valor comercial.

Foi quando começou, na Austrália, a criação de atum em cativeiro – ou quase isso. Não existe maricultura legítima de atum porque até hoje ninguém conseguiu dominar o processo inteiro, a partir da eclosão dos ovos. As fazendas – ou ranchos − de bluefin são povoadas com peixes jovens, capturados nos oceanos. Eles não se reproduzem em cativeiro. Ao encarcerar um atum, então, você elimina a chance de que ele se reproduza.

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Um helicóptero localiza o cardume de atuns adolescentes e avisa o barco pesqueiro. A embarcação envolve os peixinhos com uma rede, que é arrastada dentro d’água até o curral fixo. Trata-se de uma estrutura circular e flutuante, no meio do mar, em que os atuns vão morar até morrer. Nesse intervalo, que pode durar vários meses ou até um ano, eles são alimentados intensivamente com peixes menores − sardinhas, principalmente. Quando está gordo o bastante para o leilão de Tsukiji, dois “caubóis de atum” cuidam do abate como boiadeiros encarregados de capturar uma rês desgarrada. Um deles entra no curral usando equipamento de mergulho e escolhe a vítima, que é forçada a nadar até uma plataforma acoplada a um barco. Lá o peixe é agarrado a partir das guelras pelo segundo caubói, que desfere o golpe mortal no cérebro, com um arpão. Hoje, aliás, as fazendas de bluefin estão espalhadas pelo mundo, de Cabo Verde às Filipinas, mas não existem no Brasil – as frotas japonesas aniquilaram os cardumes, antes abundantes no Nordeste, já nos anos 1970. A produção é maior no Golfo da Califórnia (México) e no Mar Mediterrâneo, zonas naturais de reprodução do peixe.

Embora seja impossível fazer recenseamento de peixes, a variação no número de indivíduos pode ser verificada pela disponibilidade da pesca. A população de bluefin selvagem está em evidente declínio. Para interromper esse processo, entidades ambientais tentam estabelecer cotas, mas encontram uma série de obstáculos.

O mais óbvio é a resistência das partes economicamente interessadas: sempre que a restrição é posta em discussão, surge o argumento do desemprego que ela geraria na indústria da pesca.

Mas existe uma boa notícia. Os consumidores japoneses parecem ter percebido que algo precisa ser feito para o sushi não sumir do mapa. Nos últimos dois anos, o lance vencedor do leilão de janeiro em Tsukiji despencou de quase US$ 2 milhões para US$ 37,5 mil – sinal de que o marketing ligado à pesca irresponsável de atum não funciona mais.

E a notícia mais promissora dos últimos tempos para os fãs do peixe também vem do Japão: em abril deste ano, um time da Universidade Kinki, em Wakayama, anunciou que conseguiu procriar o bluefin em cativeiro. Se vai dar certo em escala industrial, não se sabe ainda. Mas caso esse tipo de iniciativa fracasse, não tem outra saída: os melhores restaurantes de sushi vão perder seu grande e gordo protagonista.

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