Raiva
Ter um dia de fúria é normal - e a culpa é do seu lado mais primitivo, que pode transformar uma pequena faísca em uma enorme explosão
Melissa Becker
A fila era única para quem queria acessar um dos dois terminais bancários em um supermercado movimentado de Porto Alegre. Num dia quente de janeiro, sete pessoas aguardavam sua vez quando surgiu um afobadinho que decidiu ir direto para um dos terminais recém-liberados furando a fila. Nesse dia, o autodeclarado tranquilo jornalista Caue Fonseca, 29 anos, não se conteve – chamou a atenção do folgado. Recebeu um palavrão como resposta. “Quando o cara ainda argumentou que estava certo, fiquei furioso. E, quando ele percebeu que eu fiquei bravo, foi a vez de ele ficar mais raivoso ainda”, comenta. A faísca deu início a uma discussão, que culminou em dois socos no rosto do jornalista.
“É uma escalada muito rápida. A gente acaba não se reconhecendo, e, quando percebe, o resultado: dois murros na cara”, diz. Fonseca, que não costuma se envolver em brigas, reconhece que antes do episódio já não estava em um dia muito bom, perto de seu limite – do contrário, teria tido sangue-frio para deixar o esquentadinho de lado após os primeiros palavrões. Provavelmente, cruzou com outro sujeito que também estava prestes a explodir.
A ira parece irracional – e, de certo modo, é mesmo. No cotidiano, surge quando nossos objetivos são bloqueados ou testemunhamos uma injustiça, diz o psicólogo social Simon Laham, autor de The Science of Sin: The Psychology of the Seven Deadlies – And Why They Are So Good for You (A Ciência do Pecado: A Psicologia dos Sete Pecados Capitais – e Por Que Eles São Tão Bons para Você, sem edição em português). Quanto mais queremos algo, mais raivosos ficamos se impedidos. São as amídalas entrando em ação. Os sentimentos raivosos nascem nessas estruturas que se localizam em uma primitiva parte do cérebro (veja página 22). Suas respostas a uma ameaça são reguladas pelo córtex, no lobo frontal, região de funções mais complexas. É ele quem escolhe se vamos argumentar, xingar ou bater – capacidade que nos diferencia dos animais, incapazes de ponderar. “Nossas áreas cerebrais ativadas são as mesmas de um urso, mas temos maior quantidade de córtex e, por isso, somos mais capazes de modular a raiva”, explica o neurocientista e professor John Fontenele Araujo, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ritmicidade, Sono, Memória e Emoção da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Para garantir a preservação da espécie, a raiva funciona como um mecanismo de auto-defesa que o cérebro dispara ao detectar o que acredita ser um perigo. A agressão é uma das formas de expressar ira, mas não um sinônimo. “Na maioria das vezes, a raiva não leva à violência, e é melhor que seja evitada. Mas, se você parecer ameaçador, seu oponente vai recuar”, diz Michael Ewbank, pesquisador das bases neurais das emoções no Medical Research Council Cognition and Brain Sciences Unit, em Cambridge, na Inglaterra.
O historiador Thomas Dixon, diretor do Centro para a História das Emoções em Queen Mary, na Universidade de Londres, lembra que a ira, mal direcionada e expressa de forma violenta, sempre foi considerada pecaminosa. A raiva moderna toma novas formas, como no trânsito e até no ar – air rage é o termo em inglês para o comportamento violento de passageiros ou da tripulação em um avião, geralmente durante um voo. Fora aquela que surge da frustração e da impotência em frente à impressora que não funciona, à internet que cai, à falta de sinal no celular…
Descontrole total
Se você for do tipo pavio curto, a razão pode estar no cérebro – e na genética. A forma que os genes influenciam a raiva ainda não foi totalmente desvendada, mas a neurocientista Molly Crockett, da Universidade de Zurique, na Suíça, afirma que existem evidências de que variações em um gene (MAOA) influenciem no circuito cerebral da raiva e de seu controle.
São também os genes que desempenham papel importante nos níveis de certos neurotransmissores, como a serotonina e a dopamina – ambos envolvidos na agressividade. A serotonina pode influenciar naquela conversinha entre as amídalas e o córtex pré-frontal que controlaria a raiva, diz a cientista.
Por isso, ficamos irritados quando estamos com fome ou cansados – nessas situações, ocorre uma flutuação dos níveis de serotonina. Em um estudo da Universidade de Cambridge em que a pesquisadora tomou parte, descobriu-se que quem tem uma tendência natural a se comportar agressivamente tem a comunicação ainda mais fraca entre as duas partes do cérebro após a redução do neurotransmissor – ou seja, fica mais difícil para o córtex segurar a raiva primitiva gerada pelas amídalas. Essa comunicação deficiente faz com que, em vez de respirar, ponderar e contar até 10, o sujeito se deixe dominar pela fúria (veja página 22).
Acha que a briga entre aqueles dois marmanjos começou por ter “muita testosterona junta”? Partes do cérebro envolvidas na raiva são realmente sensíveis a hormônios como esse, e, em geral, homens têm níveis mais elevados de testosterona do que mulheres, principalmente na fase reprodutiva. No entanto, John Medina, autor do livro The Genetic Inferno – Inside the Seven Deadly Sins (O Inferno Genético – Por Dentro dos Sete Pecados Capitais, sem edição em português), afirma que a testosterona pode ser capaz de agravar uma tendência agressiva já em andamento, mas não é a origem de um comportamento agressivo.
Cérebros e corpos femininos e masculinos respondem basicamente da mesma maneira quando as amídalas decidem virar a chave para o modo raiva. Homens tendem a ter atitudes mais violentas do que mulheres, mas circunstâncias diferentes podem levar a diferentes tipos de agressão, afirma o pesquisador Michael Ewbank. Elas têm o equilíbrio mental desafiado todo mês pela tensão pré-menstrual (TPM). De novo, a serotonina tem seu papel. “Fatores hormonais provocam alteração da concentração da serotonina e, por isso, o humor passa a variar de acordo com essa oscilação. Quando o estrogênio está alto, o neurotransmissor permanece mais tempo no organismo. Quando a progesterona está alta, ela destrói a serotonina mais rapidamente, e a sua falta causa os sintomas da TPM – e a fúria feminina que parece vir de lugar nenhum.
Em geral, crianças e adolescentes perdem o controle mais facilmente porque o lobo frontal – responsável pela tomada de decisão de atacar ou recuar – não está completamente desenvolvido até o fim da adolescência, lembra Ewbank. Conforme ficamos mais maduros, a possibilidade de termos ataques de cólera diminui consideravelmente. Ainda bem.
Loucura temporária
Todo mundo pode ter um dia de fúria – como o do personagem William Foster, de Michael Douglas, no filme homônimo -, com uma série de condições que levariam a esse comportamento. “É como se o córtex tivesse ido à falência, ficado incapaz nesse momento”, diz o neurocientista John Araujo. No século 18, a ira era vista como loucura temporária, afirma o historiador Thomas Dixon. Hoje, como algo que precisa ser tratado e gerenciado. No entanto, ela não é uma doença, mas uma emoção. Suas variações, sim, podem ser perigosas”, afirma o psicólogo forense Jason Jones, do Centro de Terapia Racional-Emotiva Comportamental da Universidade de Birmingham, na Inglaterra.
Por anos, especialistas acreditaram que extravasar era o melhor remédio. Hoje, defende-se que essa catarse não funciona. A irritação de Caue Fonseca, lá do começo da reportagem, só lhe rendeu dois olhos roxos, que, a propósito, ficaram impunes: o agressor fez compras tranquilamente no supermercado e, quando a Polícia Militar chegou ao local, ele já estava longe. Jeffrey M. Lohr, do Departamento de Psicologia da Universidade do Arkansas (EUA) e autor de estudos sobre a raiva, afirma: “Expressar raiva provoca mais raiva, em vez de reduzi-la. O melhor é aprender como ser assertivo ou como regular suas emoções para diminuir a fúria”. Ou, como diz o clássico ditado inglês, Keep calm and carry on.
Demônio – Satanás
O hit de verões passados não deixa dúvida: na casa do Senhor não existe Satanás – e, naturalmente, não há ódio, vingança, violência, crueldade e irracionalidade. Satanás, o ilustre demônio que representa o pecado da raiva, aproveita a fagulha de ira para transformá-la numa explosão de fúria – não é à toa que o inferno está em chamas. E aí já viu: o descontrole aparece rapidamente e o pecador quebra tudo, de objetos a narizes.
Uma violenta emoção?
A palavra raiva não consta no Código Penal Brasileiro nem como atenuante, nem como agravante de pena, segundo o advogado criminalista Sergei Cobra Arbex. No entanto, a legislação considera uma “violenta emoção” atenuante de pena, se o crime é cometido após uma injustiça provocada pela vítima – mas não há um consenso. A raiva doentia pode fazer com que uma pessoa, se considerada incapaz por meio de laudo, responda por uma ação penal, mas fique isenta de pena.
Pesquisadores do King¿s College da Universidade de Londres investigaram, por meio de ressonância magnética, o cérebro de psicopatas condenados a crimes como assassinato, estupros seguidos de estrangulamento e cárcere privado. Eles encontraram uma redução significativa na conexão entre as amídalas (sim, aquelas onde a raiva nasce) e o córtex orbitofrontal, a região das tomadas de decisão. O grau de anormalidade estava relacionado ao grau da doença. Para os cientistas, essas diferenças possibilitam uma explicação biológica para a psicopatia.
Um dia de fúria
O ataque de raiva costuma durar não mais de 15 minutos. Mas muitas coisas acontecem no cérebro e no corpo
Narinas
Elas se abrem – o que permite maior entrada de oxigênio, que servirá de “combustível” para órgãos e músculos, caso precisemos lutar.
Sobrancelhas
A testa se franze e os olhos ficam menores – o que faz a fronte parecer maior e protege a visão, se partirmos para a briga. Em momentos de raiva intensa, alguns descrevem perda da visão periférica.
Mandíbula
A região fica cerrada, indicando grandes níveis de testosterona, o que serviria para diferenciar o rosto masculino do feminino ou infantil.
Dentes
Ficam à mostra – pela mesma razão dos macacos: mostrar ao inimigo que somos capazes de morder.
No cérebro
Hipotálamo Responsável pelas respostas fisiológicas: coração disparado, suor, rosto vermelho. O sangue vai mais para as mãos do que para as pernas – nos preparando para lutar, e não para correr.
Amídalas
Avaliam a reação de acordo com o que foi visto ou ouvido e decidem se você vai ficar com medo ou com raiva.
Córtex pré-frontal
Corrige possíveis erros e determina nossa reação. As respostas mais primitivas (socos, gritos) são as primeiras da lista. As mais complexas, influenciadas por questões morais, são as últimas.
Esquentadinho ou em chamas?
A ira é um pecado de diferentes graduações. Veja até que ponto pode chegar a fúria – e quando ela vira um problema
LABAREDAS DESCONTROLADAS
O grau máximo vem com desejo de destruição, e o ponto extremo seria matar alguém como expressão do ódio.
FOGO ALTO
O irado pode não agredir alguém, mas quebra o que estiver ao redor.
ALERTA VERMELHO
A raiva passa a ser excessiva quando episódios ocorrem repetitivamente, como se irritar com várias pessoas diferentes ao longo do dia.
FOGO MÉDIO
Neste estágio, a raiva não leva a piores consequências, mas uma forma negativa é a que motiva o bullying e o preconceito.
FOGO BRANDO
A irritação seria um “primeiro grau” da raiva, aquela que surge quando, em uma conversa, você defende com maior ênfase seu ponto de vista.
PODE SER SAUDÁVEL?
A raiva saudável é aquela que nos torna capazes de protestar e nos autoafirmar – sem ela, seríamos ou muito submissos ou muito explosivos.
Manada de raivosos
De zebras a valentões, a fúria coletiva causadora de bullyings virtuais a linchamentos vem da segurança de estar em grupo
O motorista de ônibus Edmilson dos Reis Alves passou mal enquanto dirigia. Perdeu o controle do veículo e bateu em carros e motos. Mas não foi um mal súbito que o matou. Ele morreu ao ser espancado por cerca de 20 pessoas na noite de 27 de novembro do ano passado, na zona leste de São Paulo. Até um extintor de incêndio foi usado na agressão. Esse tipo de fúria coletiva, que leva a linchamentos e confrontos, é um comportamento de causas múltiplas e ainda não totalmente compreendido pela ciência, afirma o professor John Araujo. Mas o especialista indica dois aspectos em especial.
Quando em um grupo ou em uma multidão, ficamos mais valentões, nos percebendo mais seguros para sermos mais agressivos – mesmo na natureza é assim: uma zebra não enfrenta um leão, mas um monte de zebras encararia a fera. A segunda causa envolve o comportamento de imitação: “Quando um indivíduo faz alguma coisa e outros repetem, a tendência é imitar. Você está junto a um grupo, e alguns começam a jogar pedras em um imóvel. Quando menos espera, também poderá estar repetindo o mesmo comportamento”, afirma.
Raiva da polícia foi considerada um dos combustíveis dos distúrbios ocorridos na Inglaterra, em agosto de 2011, por um estudo do jornal britânico The Guardian e da London School of Economics, publicado em dezembro. Os dois principais motivos citados pelos entrevistados que participaram do quebra-quebra pelo país como um dos fatores relevantes que motivaram confrontos e saques foram a força policial (85%) e a pobreza (86%). Os participantes alegaram ser tratados de forma diferente e injusta por policiais na hora de serem submetidos a revistas, por exemplo, e, ao tomar parte da confusão, se sentiram em um distúrbio antipolícia. O psicólogo forense Jason Jones, da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, diz que o comportamento nessa onda de violência pode ter sido uma influência de poucas pessoas realmente iradas, que, em um comportamento típico de manada, levaram um grupo maior a apoiá-las. “Quando sentimos raiva em relação a algum acontecimento ou a um grupo, em vez de uma pessoa especificamente, notamos algo que tenha transgredido nosso objetivo, e nos convencemos de que essas condições, ou a vida, ou o mundo, não devem mais ser assim e não podemos mais aguentar isso”, diz. Assim acontecem as explosões coletivas em relação a um ente.
O efeito manada também se dissemina na internet. As pessoas tendem a se manifestar e a modular sua opinião de acordo com o grupo que as rodeia. “Mas sempre com uma tendência de maior agressividade e pontuação, o que não fariam no offline”, afirma Raquel Recuero, professora da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), que pesquisa redes sociais e comunidades virtuais. Ao mesmo tempo, tendemos a ser menos cuidadosos na rede. Normas de conduta que envolvem a conversação e a imagem de quem interage ficam relegadas a um segundo plano na rede, no qual as pessoas dizem coisas que jamais ousariam em uma situação offline. “Parte disso porque você não vê o efeito de suas palavras no outro. Além disso, há a sensação de anonimato”, diz Raquel. Por trás da tela, ficamos poderosos – sozinhos e apoiados por uma multidão, também anônima. Um prato cheio para a raiva.
Para saber mais
The Science of Sin: The Psychology of the Seven Deadlies (And Why They Are So Good for You)
Simon M. Lahan, Three Rivers Press, 2012