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Por que nossa política é tão burra

Pode dizer que eles não representam você. Que são todos ladrões. Mas a razão da picaretagem está mais próxima de nós do que do Congresso. E a solução também

Por Maurício Horta
Atualizado em 18 Maio 2017, 11h28 - Publicado em 27 set 2013, 01h00

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=h2GLYl2KRnQ%5D

A raiz do problema

O novato estava tão incomodado com o bate-boca no plenário da Câmara que o veterano foi consolá-lo. “Olha, Tiririca, eu entendo seu nervosismo”, disse Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), descendente do Patriarca da Independência, cuja família está na política nacional desde 1822. “É que você está acostumado com o circo. O circo é um ambiente de paz, harmonia, alegria. E de organização. Aqui é essa baderna, essa gritaria danada”, disse o deputado de 83 anos e nove mandatos. Tiririca concorda. “Nos três primeiros meses, fiquei muito acuado. Mas vi que funcionava assim, e ponto”, diz o segundo deputado mais votado da história, com 1,35 milhão de votos (atrás apenas do falecido Enéas). Mas, mesmo com tanta popularidade, Tiririca vai abandonar a política. Quando o Partido da República o convidou a ser candidato, sua mãe o convenceu a aceitar porque assim ele poderia “ajudar muita gente”. “Só que não é assim. É interesse próprio, é interesse de partido, é interesse do governo.” Na campanha, ele prometeu contar ao eleitor o que fazia um deputado federal. Hoje ele sabe. “É uma pessoa que trabalha muito e produz muito pouco.”

Tiririca virou ícone da descrença na democracia brasileira. Da sua eleição ao anúncio de volta à vida circense, a mensagem é a mesma – “pior que está não fica”. Mas será que as coisas vão tão mal assim? Comparado aos nossos colegas emergentes, somos até uma democracia admirável. Nossas eleições são livres. Nosso sistema de votação eletrônica, embora peque em transparência, é referência mundial. Nossa imprensa é independente, ao menos nas principais capitais. E temos três poderes bem divididos. Ok, o presidente tem grande poder – como administrar um orçamento de R$ 2,3 trilhões e criar medidas provisórias com valor de Lei. Mas, para servir de freio a ela há 513 deputados e 81 senadores que estão lá representando o povo e seus Estados. Sem a aprovação deles, no Congresso, o Executivo não faz nada. No papel, é um modelo lindo. Só que na prática eu, você e a torcida de todos os times da pátria sabemos que a verdade não é bem por aí.

Tudo funcionaria bem, não fosse o fato de, em vez de um mandato, o Congresso receber carta branca de seus eleitores. Sim, deixamos nossos representantes fazerem o que quiserem com seus cargos. Passado um mês desde a eleição de 2010, um em cada cinco eleitores havia se esquecido em que parlamentar tinha votado, segundo pesquisa do Tribunal Superior Eleitoral. Já o Estudo Eleitoral Brasileiro, feito pela Unicamp, mostra que 70% esqueceram em 2010 em que deputado votaram quatro anos antes. Não é que o brasileiro não sinta que seus representantes o representem. Ele sequer sabe quem é o seu representante. E, sem isso, o congressista não tem controle. Faz o que quer.

Vamos às urnas a cada dois anos, mas no resto do tempo não participamos das escolhas feitas no bairro, na igreja, no trabalho e nos outros espaços que fazem parte da nossa vida. “A política virou um departamento à parte, dissociado da sociedade”, diz o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ). “E o povo a vê como uma instância que não lhe diz respeito.” O resultado é que dificilmente a carreira política atrai as pessoas mais capacitadas. Você tem algum amigo talentoso? Pois bem, provavelmente ele não quer ser político. Em geral, pessoas talentosas vão à universidade, escolhem uma profissão e vão brilhar muito em uma empresa ou em qualquer espaço onde lhes deem recompensas mais imediatas e palpáveis. A política é frustrante demais. Para entrar nela, é preciso atravessar a piscina de lama do financiamento eleitoral. Depois, é necessário lutar contra um grupo de pessoas que estão lá por motivos que não são exatamente “a formação de um país melhor”. A quem então interessaria a profissão de suas excelências?

PIOR QUE O CONGRESSO, SÓ OS PARTIDOS
Porcentagem de avaliação boa ou ótima por instituição*Igreja Católica – 68,5%

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Rede Globo – 64,8%
Igreja Evangélica – 58,6%
Governo Federal – 49,9%
Grandes empresas – 47,5%
Congresso Nacional – 22,9%

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Partidos Políticos – 19,4%

*Estudo Eleitoral Brasileiro, Centro de Opinião Pública, Unicamp, 2010

Bem-vindo ao zoológico

Poucos quilômetros passados desde o aeroporto Juscelino Kubitschek, chega-se a um trevo no qual uma placa indica: “zoológico”. Parece piada, mas, se você seguir a indicação, chegará a Brasília. Como um zoológico, a capital federal é isolada do hábitat natural da maioria da população (a única região metropolitana a menos de 12 horas de ônibus é a de Goiânia). Ao mesmo tempo, também reúne num pequeno espaço uma fauna muito representativa da diversidade brasileira. Para garantir essa representatividade, os espécimes expostos passam por uma seleção que acontece a cada quatro anos: as eleições para deputado ou senador.

Em alguns países, como nos EUA, a eleição para a Câmara é como uma competição de 100 metros rasos – cada cadeira representa um distrito, disputado por alguns poucos candidatos próximos ao eleitor. Em outros países, como a Espanha, é como uma prova de equipe – vota-se num partido, que apresenta uma proposta política. Já no Brasil, temos uma ultramaratona. São milhares de candidatos disputando as cadeiras de um Estado inteiro, cada um correndo por si. Segundo o cientista político Barry Ames, da Universidade de Pittsburgh, esse nosso sistema dá espaço para quatro tipos de candidatos – e nenhum deles é aquele seu amigo talentoso. Vamos chamá-los de Líderes de Entidade, Burocratas, Caciques e Pastores.

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Em regiões metropolitanas, quem tem mais chance são os Líderes de Entidades: sindicatos, federação de indústrias, associações de comerciantes e conselhos de profissionais. Essas entidades se organizam em torno dos interesses de sua categoria e lançam líderes para defendê-los em Brasília. Já em campanhas espalhadas pelo Estado, ganham uma vantagem tremenda os Burocratas, como os secretários de educação ou saúde. Eles são figuras que, por terem ocupado cargos estratégicos no Executivo, têm uma grande exposição para a população – e acabam lembrados na hora das urnas.

Agora, no eleitorado de municípios menores, quem ganha são os Caciques – geralmente, membros de famílias políticas tradicionais na região. Uma vez no poder, elas conseguem fortalecer sua influência alimentando seu curral eleitoral com verbas federais. E, por fim, há uma última possibilidade: juntar votos de algumas poucas pessoas que tenham algo em comum, mas que estejam espalhados por todo o Estado. A princípio, isso vale para qualquer minoria – vegetarianos, correntes ideológicas radicais, descendentes de imigrantes, LGBTs… Mas para se eleger é preciso mais do que uma identidade. É necessário ter líderes, uma estrutura de campanha e uma rede de seguidores. Hoje, quem tem isso mais bem organizado são os pastores de igrejas evangélicas.

Essa divisão tem um problema sério: o poder se torna um incentivo por si mesmo. Só será eleito quem já tiver poder. Afinal, como competir com um burocrata que tem a máquina pública a seu lado? Ou com um líder religioso que controla as almas de seu rebanho? Diante do moto-perpétuo político, não há espaço para pessoas com talento, nem para os interesses do cidadão comum. Assim, a política deixa de ser um lugar para a discussão de ideias ou para a construção de um país melhor – ela apenas serve para manter as antigas e duvidosas estruturas. Ou seja, melhorar a nossa vida não necessariamente está em debate por lá.

FAMÍLIA, FAMÍLIA
No Congresso, 92 deputados e 30 senadores são parentes de políticos tradicionais. O poder, afinal, circula nas veias.SANGUE AZUL…

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O deputado federal mineiro Bonifácio Andrada é do tempo do Império. Seu tio trisavô, José Bonifácio de Andrada e Silva, é o cara que convenceu o então príncipe regente Pedro a dizer ao povo que ficaria. Desde então a família Andrada contou com 15 deputados e senadores, oito ministros de Estado e dois do Supremo, além de governadores, prefeitos e vereadores. Como ele faz isso? “Semanalmente vou a Barbacena, onde fica minha família. Atendo o povo, faço reuniões políticas”, diz. E a linhagem segue forte com seus filhos Toninho e Martim Francisco (PSDB), prefeitos de Barbacena, e o caçula Lafayette, deputado.

…OU VERMELHO
Alçada à política quando militava com as Comu-nidades Eclesiásticas de Base em comunidades carentes, a família Tatto conquistou sua base eleitoral na Capela do Socorro – uma região periférica de São Paulo cinco vezes mais populosa que Barbacena. Levando serviços para sua base e colhendo votos, a família tem hoje Jilmar Tatto (PT-SP) como secretário municipal de Transporte de São Paulo, Ênio Tatto (PT-SP), deputado estadual e Arselino e Jair como vereadores.

A corrida do ouro

Certo, sabemos o perfil de quem se elege. Mas, antes de começar a eleição do voto, o candidato precisa vencer uma outra: a eleição do dinheiro. Afinal, uma campanha é muito cara. Envolve gravações em estúdio, organização de comícios, aluguel de carros de som e escritórios em várias cidades. Quanto dá em média? Em 2010, cada deputado federal eleito arrecadou em média R$ 1,1 milhão. Isso legalmente. Já ilegalmente não dá para saber, pois a grana rola fora dos bancos, em maletas e cuecas.

Quais as diferenças entre a eleição do voto e a da grana? Bom, na primeira todo cidadão tem o mesmo valor: um único voto em um único candidato. Já a eleição da grana é desigual. Quanto mais rico o doador, mais ele pode doar – para pessoas físicas, até 10% dos seus rendimentos; para empresas, até 2%. Isso significa o óbvio. Por exemplo, em 2010, o ex-governador e um dos maiores produtores de soja do mundo Blairo Maggi (PR-MT) teve direito a votar com muito mais dinheiro do que você, leitor comum: R$ 779,8 mil do próprio bolso e R$ 435,5 mil do grupo empresarial que ele controla. Hoje é senador, integra a bancada ruralista e preside a Comissão de Meio Ambiente (apesar de ter recebido o nada honroso prêmio Motosserra de Ouro, do Greenpeace, concedido a quem mais destrói, justamente, o meio ambiente). Como é permitido doar a quantos candidatos quiser, a maioria dos grandes financiadores diversifica os donativos. Não quer vincular seu nome a um candidato específico? Basta dar a grana para um intermediário – o comitê partidário -, que depois a repassa para o candidato.

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Em 2010, 91,3% do financiamento foi feito por empresas. Mas por que o setor privado doa tanto dinheiro para um político se reeleger? Desejo de fortalecer as instituições democráticas? Uhm, não exatamente. As empresas que mais doam são também as com maiores interesses no governo. Dos R$ 4,2 bilhões totais, R$ 400 milhões vieram de 14 construtoras – sim, aquelas que mais tarde terão contratos para realizar obras públicas. Outros R$ 155 milhões vieram de dez bancos privados, que dependem da política econômica do governo. Ao que tudo indica, as empresas não doam – elas investem.

Qual o impacto disso na política? O primeiro é um golpe na credibilidade. Por que você compra a SUPER? Provavelmente porque você confia nas informações aqui. Sim, os R$ 13 de cada exemplar são salgados, mas é o preço que permite à revista ser independente. Se, para escrever uma matéria, aceitássemos dinheiro de alguma parte interessada, o preço da revista poderia diminuir – só que você deixaria de confiar em nós. É o mesmo com a política. “Eu já recebi uma doação de uma cervejaria. Mas aqui no Senado comprei uma briga para proibir a publicidade de bebida. Os caras vieram falar comigo, me pressionaram. Não mudei de posição”, diz o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). “Mas duvido que voltem na próxima eleição, né?”

CORONÉIS ELETRÔNICOS
As famílias tradicionais podem ir além de seu reduto eleitoral com uma ajudona: a mídia. Ao menos 60 parlamentares são donos de meios de comunicação. Quem recebeu concessões de TV durante a ditadura e o governo Sarney se destaca.Família Magalhães (BA):
* Rede Bahia, afiliada à Rede Globo
* Jornal “Correio”

Família Franco (SE)
* TV Sergipe, afiliada à Rede Globo
* “Jornal da Cidade”

Família Collor de Mello (AL)
* TV Gazeta, afiliada à Rede Globo
* Jornal “Gazeta de Alagoas”

Família Maia (RN)
* Rede Tropical de Comunicação, com emissoras afiliadas à Rede Globo e à Record

Família Sarney (MA)
* Rede Mirante, afiliada à Rede Globo
* Jornal “O Estado do Maranhão”

Família Barbalho (PA)
* Rede Brasil Amazônia de Televisão, afiliada à TV Band
* Jornal “Diário do Pará”

Em Brasília, 19 horas

“A figura do político está mais por baixo do que umbigo de cobra. Você vira um leproso quando é candidato. Chega a machucar”, diz o deputado federal Guilherme Campos (PSD-SP). E depois de eleito? “Aí, todo mundo é seu amigo.” Portanto, aos eleitos, parabéns. Agora, o parlamentar receberá uma bela estrutura do Estado para exercer suas atividades. O salário é bom, mas não é de marajá. É próximo ao de diretores de empresa: R$ 26,7 mil. Depois, será sorteado seu gabinete. Se tiver sorte, ele irá para o anexo IV – um prédio com balcões de companhias aéreas no térreo, elevadores exclusivos parlamentares, gabinetes de 39 m2 e banheiro privativo. Se tiver azar, terá de se contentar com o anexo III – o “favelão”. Então, receberá belos R$ 78 mil mensais para contratar a equipe de até 25 funcionários em seu gabinete. E, para cobrir gastos com combustível, avião, telefone e divulgação de suas atividades, há o “cotão” – uma ajuda de R$ 21 a R$ 44 mil. Somando tudo, temos o segundo parlamentar mais caro do mundo, depois do americano.

Mas o que ele consegue fazer com tudo isso? Se sua função fosse propor projetos de lei, a coisa iria bem: em 2012 foram apresentados 1.841 projetos. Só que, deles, apenas 13 foram aprovados (e desses, quatro foram originados no Congresso. QUATRO, sendo que um era para aumentar o salário dos servidores do Senado). Em parte isso acontece porque uma infinidade dos projetos é irrelevante – datas comemorativas e propostas estapafúrdias, como a penalização da heterofobia e a obrigatoriedade da plantação de uma árvore a cada criança nascida. “O mais frustrante no Congresso é a incapacidade de realizar aquilo que você promete na campanha”, diz Fernando Gabeira (PV-RJ), que, depois de quatro mandatos de deputado federal, abandonou a Câmara para tentar a eleição a governador do Rio de Janeiro em 2010. “Já os grandes temas de porte nacional foram levados ao Tribunal de Justiça, como o aborto de anencéfalos, a união civil e a marcha da maconha”.

AS TENTAÇÕES DO PODER
É tudo ladrão? Não. Mas veja como os parlamentares podem usar a política para tirar proveito próprio.1. O TIRA-GOSTO
Cada parlamentar custa em média R$ 7,4 milhões por ano. Com a verba de gabinete, é comum contratar funcionários domésticos e retribuir cabos eleitorais e doadores de campanha. O senador Fernando Collor (PTB-AL), por exemplo, já chegou a pagar com verba de gabinete o jardineiro da Casa da Dinda e duas arquivistas do “Centro de Memória Fernando Collor”. Já o “cotão” pode ser indevidamente usado para comprar jornalistas, pagar material de campanha e contratar empresas-fantasmas.

2. O LANCHINHO
Para continuar na vida política, os caciques regionais precisam manter seu curral eleitoral. Como? Com as “emendas parlamentares” – o direito de remanejar R$ 15 milhões do Orçamento Geral da União. Com elas, o parlamentar constrói creches, compra ambulâncias e fortalece alianças com prefeitos locais. Se quiser se reeleger ou disputar um cargo executivo, meio caminho andado. Mas tem mais. Essas emendas podem ir para entidades-fantasmas, contratos superfaturados, ONGs de amigos…

3. O PRATO COMERCIAL
Políticos podem propor e votar matérias de acordo com os interesses dos setores que os elegeram. Para isso, eles se organizam em Frentes Parlamen-tares – grandes bancadas suprapar-tidárias que defendem causas específicas, como ambiente e porte de armas. Mas há também os interesses de quem pagou a eleição. E é nesse momento que lobistas e financiadores de campanha recebem o retorno de seus investimentos. “Fiz um projeto para proibir embalar bebidas alcoólicas com garrafa PET”, diz o deputado Alfredo Sirkis (PV-RJ). “Mas o projeto foi destroçado nas várias comissões em função de lobbies.”

4. O BANQUETE
Para que um presidente consiga governar, ele precisa de apoio no Congresso. E o que o Planalto pode oferecer em troca são ministérios. O PMDB ficou com a Previdência, Minas e Energia e outros três. O PDT, com o Trabalho. PCdoB, com os Esportes. O PP, de Maluf, com as Cidades. E por aí vai. Para o governo, isso dói bastante, porque significa comprometer parte do programa de governo. Mas, se não quiser abrir mão, vai precisar utilizar mecanismos menos ortodoxos, como mensalidades em troca de votos. Como no Brasil temos 24 partidos na Câmara, sendo que o maior tem apenas 17% das cadeiras, há muito o que se negociar.

Chega de tanta burrice

Sim, algo deu errado. O que fazer, então? Sonhar com uma bomba no meio do Planalto Central, como pedem certas campanhas de Facebook? Derrubar tudo e começar de novo? Bom, a Rússia fez isso na Revolução de 1917, e a Alemanha também, em 1933. E, se você se lembrar da aula de História, nenhuma das duas tentativas terminou bem. Como disse Winston Churchill ao Parlamento inglês em 1947, “a democracia é a pior forma de governo – exceto todas as outras”. Algumas reformas poderiam melhorar bastante a dinâmica da nossa democracia – ainda que não resolvam a raiz do problema. Há quase duas décadas, o Congresso tem prometido isso por meio de uma reforma política. Na prática, só entregaram duas mudanças: a emenda da reeleição, obtida sob denúncias de compra de votos, e a Lei da Ficha Limpa, votada sob a pressão de 1,3 milhão de assinaturas. “Muita gente fala que o sistema não funciona e que é preciso uma reforma. Mas essa reforma não é feita justamente porque deputados e senadores precisam votar nela. Por isso, ela acaba fracassada”, diz Gabeira. O principal ponto dessa reforma política é a mudança do sistema eleitoral – aquele sistema maluco que transformou as eleições do Legislativo numa caríssima maratona.

Mas isso seria apenas o primeiro problema a ser resolvido na nossa política. O segundo, tão importante quanto, é a questão da grana. Como já vimos, as empresas têm imenso poder no nosso jogo político. Uma alternativa seria botar o Estado para financiar todo o processo. No financiamento público, pessoas físicas ou empresas não podem doar para nenhum candidato – apenas para um fundo público, que também receberia o dinheiro de impostos. Isso, em parte, já acontece. Em 2012, o horário eleitoral gratuito custou aos cofres públicos R$ 606 milhões em renúncia fiscal e R$ 286 milhões do fundo partidário (uma ajuda de custo a que partidos políticos têm direito). Mas o financiamento público traz alguns pontos importantes. Quanto será dinheiro suficiente e quanto será dinheiro demais? Por que um cidadão seria obrigado a dar o dinheiro de seus impostos para um partido com cujas ideias não concorda?

Foi pensando nessas questões que Lawrence Lessig, professor de direito em Harvard e cofundador do Creative Commons, teve uma ideia. Para ele, a grana do fundo público de campanha deveria virar um “vale-democracia”. Digamos que cada eleitor tenha direito a um vale-democracia fixo de R$ 50, deduzido do imposto de renda. É um dinheiro que você iria gastar de qualquer jeito, mas que vai para as eleições, para o candidato da sua preferência. Se você quiser apoiar a campanha de alguém, é só dividir o vale-democracia entre quantos candidatos quiser. Se você não quiser fazer isso, o voucher vai direto ao partido ao qual você é afiliado. E, se você não for afiliado a nenhum partido, ele vai para financiar a Justiça Eleitoral.

O sistema não impede as doações privadas, desde que haja um limite do quanto se pode doar. Se você quiser dar uma ajuda extra a alguém, poderá contribuir com, no máximo, R$ 100 – seja você um estivador, seja você o Eike Batista. O resultado é que vai se dar bem na campanha quem tiver capacidade de mobilizar mais microdoadores (as pessoas), e não quem tiver relações com os grupos econômicos mais interessados em influenciar os rumos da política. Quem vai decidir isso serão muitos cidadãos – e não só algumas empresas. Ou seja, o interesse do povo pode entrar na pauta. Claro que essa ideia também tem seus problemas. Por exemplo, ela democratizaria apenas a superfície do financiamento eleitoral – o mundo das doações não-contabilizadas, os famosos caixa 2, seguiria existindo. E poderia até crescer.

A terceira reforma necessária já começou a valer. É a transparência. Desde maio de 2012, todos os órgãos públicos e privados que recebem dinheiro público são obrigados a fornecer quaisquer dados a qualquer pessoa que pedir – sem que ela precise explicar seus motivos (só não vale informação pessoal ou sigilosa.) Também precisam publicar na internet dados como o uso de recursos, editais de licitações, contratos e tantos outros documentos que revelem o andamento da administração. Assim, o Brasil colocou em prática o que já prometeu 23 anos antes em sua Constituição, e se tornou o 90º país a abrir seus dados públicos. Com uma vantagem – fez isso já numa era de democratização da internet e redes sociais.

Só que isso por si só não faz revolução. Dados amontoados não significam muita coisa. Para que eles se transformem em informação, é necessário que sejam interpretados. Ou seja, só servem para algo quando os seres humanos entram na jogada. E é nesse ponto que, finalmente, começamos a encontrar a verdadeira resposta para a embananação da democracia no Brasil: a participação popular. Corrupção, hegemonia de grupos econômicos nas decisões políticas, paroquialismo… Todos as burrices que vimos nas páginas anteriores são apenas reflexos de um único problema: a falta de participação popular na política.

A REGRA DO JOGO
Reformar o sistema eleitoral ajuda? Talvez. Mas qualquer alternativa tem seus problemas.LISTA ABERTA
Eleitores votam nos candidatos, não nos partidos.
Prós:
– Qualquer pessoa com base eleitoral tem chance.
– Há grande espaço para minorias.
Contras:
– O excesso de candidaturas aumenta o custo de campanha.
– A campanha se foca no candidato, e partidos perdem importância.

EXEMPLOS: países escandinavos, Brasil.

LISTA FECHADA
Eleitores votam nos partidos, que já têm uma lista de candidatos pré-definida.
Prós:
– O foco da campanha são as ideias, não as personalidades.
– Partidos buscam representar vários grupos sociais.
Contras:
– Os candidatos se distanciam dos eleitores.
– Novas lideranças têm poucas chances.

EXEMPLOS: Portugal, Espanha, África do Sul.

VOTO DISTRITAL
Aqui, os Estados são divididos em distritos eleitorais (muito menores que Estados) e cada um pode eleger um candidato.
Prós:
– Candidato tem mais contato com o eleitor.
– O número de candidatos por distrito é limitado.
Contras:
– Interesses locais se sobrepõem aos nacionais.
– Minorias são enfraquecidas.EXEMPLOS: EUA, Reino Unido, França.

Um sinal retumbante

Em 2013, milhares de manifestantes se reuniram numa série de grandes protestos relacionados às tarifas de ônibus em São Paulo. A partir de 13 de junho, quando a tropa de choque da Polícia Militar atacou manifestantes que gritavam “sem violência”, o movimento ganhou apoio de pessoas que até então o criticavam pelo vandalismo de uma minoria. Manifestações se espalharam pelo Brasil e por algumas cidades europeias e americanas. Em São Paulo, diga-se, a manifestação contra os R$ 0,20 a mais ganhou como mote a frase “”não são só os R$ 0,20”.

É que esse tipo de movimento, organizado em redes, sempre ganha vida própria, sem uma cartilha definida. Os protestos então, acabaram difusos – basicamente “contra tudo”. Mas isso é o de menos. Essas manifestações, no fundo, foram algo muito maior: um sinal retumbante de que os cidadãos querem derrubar o muro entre sociedade e política.

Sinais mais silenciosos têm pipocado também, numa velocidade crescente. Um exemplo surgiu em Maringá, Paraná. Durante os anos 90, mais de R$ 100 milhões foram desviados da prefeitura. Quando a mutreta foi descoberta, em 2000, a revolta foi enorme. Mas, em vez de ficar reclamando, a sociedade civil decidiu reagir. Primeiro, lideranças se reuniram e fundaram a Sociedade Eticamente Responsável (SER), em 2004. No ano seguinte, o novo prefeito, Silvio Barros (PP), abriu os dados da prefeitura num portal de transparência na internet. Então, para escrutinar esses dados, o SER formou em 2006 o Observatório Social de Maringá. Sua função era basicamente dar treinamento para que qualquer cidadão sem filiação a partido político monitorasse voluntariamente o uso de dinheiro público do município. Professores, aposentados, estudantes, advogados. Não importa. Em vez de perder tempo compartilhando posts raivosos ou comentando matérias no Facebook, os voluntários puderam usar sua indignação analisando se editais de licitação não eram viciados, divulgando-os para o maior número de empresas possível, fiscalizando os preços, as quantidades e a qualidade dos produtos e serviços licitados, e acompanhando sua entrega. Deu tão certo que, em 2009, o Observatório Social de Maringá venceu um concurso em Inovação Social da ONU para América Latina e Caribe. E a ideia se espalhou para mais de 60 municípios pelo Brasil.

Teste: Que tipo de político representa você?

Open bar da democracia

Outro exemplo vem da Índia. Na maior democracia do mundo, a corrupção generalizada impede que dinheiro do governo chegue à também maior população de miseráveis do mundo. O que a organização MKSS começou a fazer em 1994 no paupérrimo e semidesértico Estado do Rajastão? Pegou cópias dos orçamentos dos panchayats (as assembleias de aldeia, base do sistema político indiano) e começou a lê-los em público para a população – assim todo mundo podia ver o quanto de dinheiro público deixava de chegar a eles. Como o governo se recusava a liberar documentos, a MKSS integrou um movimento por uma lei de acesso à informação – que foi aprovada para o território indiano em 2005, sete anos antes do Brasil.

Esse tipo de auditoria participativa serve de controle do uso do dinheiro público. É bastante, mas a população engajada pode ir além, se quiser. Não só controlar, mas decidir com o que o dinheiro público vai ser usado. Os primórdios dessa ideia surgiram ainda em 1989 em Porto Alegre. Era o Orçamento Participativo. Nele, a população ia a assembleias para definir as prioridades dos gastos do município. Desde então, a ideia se espalhou pelo mundo. Isso, claro, surgiu numa época em que pessoas precisavam ir à prefeitura até para pegar uma segunda via do IPTU.

Hoje, as redes sociais ampliam drasticamente o nível de participação. O passo mais tímido é botar em votação na internet quais obras pré-selecionadas devem ser realizadas – caso do Orçamento Participativo Digital de Belo Horizonte, iniciado em 2007. Mas ferramentas de crowdsourcing podem levar isso muito mais adiante – e bem mais próximo de você.

Quer que a prefeitura resolva a tampa de bueiro aberta? A lâmpada queimada? Revitalize o canto ermo onde você foi assaltado? Ferramentas como o FixMyStreet, do Reino Unido, e o SeeClickFix, dos EUA, permitem que qualquer cidadão identifique num mapa problemas nos serviços públicos. É o crowdmapping (mapa colaborativo). A prefeitura pode então pegar esses relatos, encaminhá-los para os órgãos certos e, quando resolvidos, mudar o status do post para “fechado”. A curto prazo, o cidadão ajuda a administração a saber onde agir pontualmente. A longo prazo, é possível constatar padrões em que os problemas aparecem – e, uma vez conhecendo o padrão, dá para traçar planos para resolver o problema antes mesmo que ele aconteça.

Isso abre espaço para o passo seguinte: usar ferramentas de redes sociais para a democracia direta. Algo parecido com isso aconteceu na Islândia. Em 2008, a economia do país desabou – e a descrença na política se tornou tamanha que levou algum engraçadinho a colocar o país à venda no eBay. Dos escombros, os islandeses decidiram criar uma nova Constituição – escrita não por políticos profissionais, mas pelo próprio povo.

Primeiro, reuniram mil cidadãos estatisticamente representativos da diversidade regional e demográfica do país para fazer um brainstorming sobre o que o país queria ser (pausa para imaginar as ideias esdrúxulas que saíram). Então, elegeram 25 cidadãos para redigir um rascunho da Constituição. As conclusões foram publicadas online para que qualquer cidadão pudesse comentar o texto – foram 3,6 mil comentários e 370 sugestões. Depois de referendado, o texto acabou aprovado por 2/3 dos eleitores.

Isso, claro, só é possível porque a Islândia tem um alto nível de escolaridade, uma pequena população (menos da metade do Acre) e uma enorme vontade de mudar o país. E, infelizmente, a democracia direta apenas funciona em casos isolados. Caso contrário, corre-se o risco de tomar decisões baseadas no calor do momento e contra a vontade de minorias. “Tenho 328 mil seguidores no Twitter, mas não posso escrever `digam as leis que vocês querem¿. Cada um desses 328 mil só vai pensar em si mesmo”, diz Cristovam Buarque.

Mas a democracia direta pode também ser usada a favor da democracia representativa, que pouco mudou desde o século 19. Ferramentas em rede podem servir de meio de diálogo e pressão contínuo entre a população e seus representantes. Os primeiros passos já foram dados. Um deles são as petições online. Neste ano, por exemplo, o Congresso brasileiro recebeu mais de 1,6 milhão de assinaturas eletrônicas por meio do Avaaz contra a posse de Renan Calheiros na presidência do Senado. Como o regimento da Casa não reconhece esse tipo de documento, nada foi feito. Mas a pressão chegou lá. Se esse tipo de ação continuar a ser ignorado, a legitimidade desses parlamentares será (ainda mais) deteriorada. Outro passo é o surgimento em vários países de partidos que fazem crowdsourcing de suas plataformas políticas – como o Partido Pirata, presente em 28 países, inclusive com dois assentos no Parlamento Europeu e mais de 40 em assembleias estaduais da Alemanha.

As ações feitas com as novas ferramentas tecnológicas podem ser desdenhadas, chamadas de “democracia do sofá”. De fato, elas levantam mais bandeiras contra do que a favor de algo. Também são mais influenciadas por comoções do que pelo debate racional. Por fim, tendem a se desmobilizar tão logo o assunto perde o frescor. Mas a tecnologia traz algo que a velha política não permitia: a troca imediata entre o poder público e a população. Se corrupção e crise de representatividade não passam de sintomas de uma doença maior – o distanciamento entre eleitor e eleito -, as redes sociais podem agir direto na raiz do problema. Elas levam a política para a vida das pessoas, em vez de limitar a participação às eleições. E permitem agir em espaços que vão da rua até o Congresso. E se o sofá não bastar? Então, as redes sociais podem mostrar o seu lado explosivo: a mobilização para protestar nas ruas. O mundo árabe descobriu isso. O movimento Occupy Wall Street descobriu isso. A Turquia descobriu isso. E o Brasil também. Bem-vindo ao futuro da democracia.

Cinco iniciativas para renovar a democracia – de baixo para cima

GOVERNO ELETRÔNICO
Para que as ferramentas do governo eletrônico saiam do mundo das ideias e vão para as entranhas do governo, os EUA criaram uma bolsa anual para programadores trabalharem em prefeituras – o “Code for America”. Assim, as pessoas que mais sabem programar podem ajudar a transformar prefeituras em órgãos mais transparentes, eficientes e abertos para a participação de seus cidadãos.

PETIÇÃO ALÉM DA INTERNET
Enquanto o nosso Congresso não faz ideia do que fazer com petições do “Avaaz”, alguns países usam as votações para criar políticas públicas. No “We the People”, da Casa Branca, qualquer cidadão pode abrir uma petição, que terá uma resposta se receber mais de 100 mil assinaturas. Na Finlândia, o Parlamento é obrigado a discutir toda petição que reunir ao menos 50 mil assinaturas.

MAPAS POLÍTICOS
Tudo começou com a eclosão de violência política no Quênia após as eleições fraudulentas de 2007. Um grupo de blogueiros e desenvolvedores criaram o Ushahidi, um site no qual pessoas poderiam apontar casos de violência em um mapa online ou por mensagem de texto. Desde então, a plataforma de cartografia colabo-rativa foi usada para monitorar casos de corrupção e eleições em todo mundo.

PLANEJAMENTO TERCEIRIZADO
Oito anos de poder é pouco para organizar políticas de longo prazo, como o plane-jamento urbano. Por isso, algumas cidades atribuíram esse tipo de discussões a institutos fora da prefeitura. Neles dialogam três grupos que normalmente se odeiam – academia, sociedade civil e iniciativa privada. O primeiro caso no Brasil surgiu em 1973, em Curitiba, o Insti-tuto de Pesquisa e Planejamento Urbano.

OPINIÃO PÚBLICA – E INFORMADA
Uma das ferramentas mais importantes para criar políticas públicas são pesquisas de opinião. Mas essas pesquisas podem mostrar mais a desinformação da sociedade do que sua opinião. Uma alternativa para isso é o “deliberative polling”, modelo desenvolvido por James Fishkin, da Universidade Stanford. Nele, são selecionadas pessoas que representem estatisticamente uma população. Elas recebem relatórios equilibrados sobre um assunto a ser deliberado e, depois, se dividem em pequenos grupos de discussão, que debate sob a ajuda de um mediador profissional. Então, são novamente convocadas para emitir sua opinião em relação ao assunto. A ideia é que isso representaria a opinião de toda a população, se fosse possível deixá-la tão bem informada quanto esse grupo.

Para saber mais

Os Entraves da Democracia no Brasil
Barry Ames, Editora FGV, 2003

Republic, Lost: How Money Corrupts Congress
Lawrence Lessig, Twelve, 2012

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