Em prol da “família”, Rússia despenaliza violência doméstica
Para o Kremlin, conflitos familiares não são necessariamente violência doméstica. Mesmo assim, uma em cada três russas são violentadas dentro de casa
No Brasil, em briga de marido e mulher não só se pode meter a colher, como se deve. Por aqui, é assegurado na Constituição o direito de uma mulher não ser agredida. Desde 2006, com a Lei Maria da Penha, violência doméstica e familiar tornou-se crime, quem bater em mulher é preso e não tem a possibilidade de sair da cadeia se pagar fiança. E para fazer a denúncia, basta estar a par da agressão – vítimas, familiares, amigos ou até vizinhos podem acionar o 180 (disque-denúncia de violência contra a mulher). Em pouco mais de 10 anos, o serviço já ultrapassou 5 milhões de ligações.
Mas na Rússia, a partir de hoje, o ditado popular brasileiro se aplica. Em uma votação na Duma (Parlamento local), o país aprovou com 380 votos favoráveis e 3 contra uma medida que despenaliza a violência doméstica. Essa foi a terceira e última leitura do projeto – elaborado por Olga Batalina, do partido Rússia Unida (RU), sigla com a maior representatividade na Duma.
A mudança abranda o que pode ser considerado violência doméstica pela legislação russa. A nova lei define que agressões que não causem danos à saúde da vítima, não deixem marcas e que não se repitam mais que uma vez ao ano não vão ser tratadas como crime.
As punições para casos que se encaixem nesses critérios serão: pagamento de uma multa de aproximadamente 500 dólares, passar 15 dias em “prisão administrativa” ou prestar serviços comunitários. Para que alguém seja acusado criminalmente, é preciso que a vítima prove que teve ossos quebrados, pancadas na cabeça ou que as ofensas sejam frequentes.
O assunto está em voga desde o ano passado, quando o governo descriminalizou a agressão física. Na época, a Duma acho melhor isentar abuso doméstico da mudança e puni-lo com, no máximo, dois anos de prisão, para casos motivados por ofensas raciais – mesmo assim, 90% das pessoas que faziam as denúncias acabavam não indo para os tribunais. A violência doméstica continua a ser esquecida pelos tribunais russos, que só condenam 10% dos poucos casos que são denunciados.
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Nesta sexta, o país despenalizou a violência doméstica com o argumento de que interferir em questões familiares é uma forma de “destruir a família russa”. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, anunciou que conflitos dentro de casa “não necessariamente configuram violência doméstica”. O presidente da Duma considera a preocupação do Conselho da Europa inaceitável e o presidente Vladimir Putin apoiou a decisão. Em uma recente coletiva de imprensa, Putin afirmou que “a descarada ingerência na família pela justiça é intolerável”.
De acordo com pesquisas locais, 60% da população aprova essa redução do castigo para conflitos “leves” dentro das famílias. Segundo a revista The Economist, a alta taxa de aprovação pode ser explicada pela falta de confiança no corrupto sistema judiciário do país e no receio de que, assim como aconteceu durante a União Soviética, o estado cerceie a privacidade dos cidadãos ao ter muito poder sobre a vida privada das pessoas.
No entanto, não é como se a Rússia fosse uma nação que tratasse bem suas mulheres: o país tem a quarta maior taxa de homicídios femininos do mundo. Pelas estimativas do Ministério Interior, 600 mil sofrem violência doméstica todos os anos e 40 mulheres por dia morrem vítimas de seus maridos ou companheiros. Enquanto isso, o Anne Centre, centro de prevenção à violência doméstica, afirma que uma em cada três russas apanham dos parceiros e que 40% de todos os assassinatos acontecem dentro de casa.
Com os recentes posicionamentos do governo, as estatísticas tendem a se assemelharem às de quando a Rússia era governada por Ivan, O Terrível, no século 16 – para se ter uma ideia, o czar espancou um filho até a morte e mandou matar a esposa ao suspeitar que ela tivesse um amante. Ou seja, a decisão de hoje simboliza um atraso de cinco séculos para as mulheres russas.
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