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Como a hipnose chegou ao mainstream

A técnica ainda é um assunto nebuloso, mas já deixou de ser atração de circo e programa de auditório

Por Estúdio ABC
Atualizado em 22 jun 2017, 17h35 - Publicado em 20 ago 2015, 16h30

Até uns 20 e poucos anos, quando pensávamos em hipnose a imagem que nos vinha à cabeça era a de um coitado imitando uma galinha, comendo cebola como se fosse maçã ou fazendo confissões constrangedoras para deleite de uma plateia de auditório. O tom bizarro que impregnava o assunto está quase no passado. A técnica agora é oferecida em spas de Los Angeles e usada em salas de cirurgia e delegacias de polícia. Está atingindo um público diversificado, interessado até em auto-hipnose na sala de casa.

Essa mudança é recente: foi a partir do fim dos anos 1990 que exames de tomografia computadorizada comprovaram que o processo não se trata de truque de circo. Gente comum passou a descobrir a utilidade e a acessibilidade da técnica, que nada tem de assustadora ou engraçada. Parte da culpa dessa fama de pouca seriedade vem desde que a prática surgiu, pelas mãos do alemão Franz Mesmer, um sujeito esquisito que se vestia de roxo e dizia ter inventado uma varinha de condão de verdade.

Para começo de conversa: hipnose é um estado da mente que se instala de forma natural. Sempre que deixamos de prestar atenção aos muitos estímulos ao redor e focamos em um único ponto, estamos hipnotizados, em algum grau. Se não fosse assim, ninguém se assustaria com filmes de terror. O que os médicos fazem é estimular estados mais profundos e controlados, com objetivos claros. “Não é hipnotizável quem não consegue fixar a atenção: maníacos, deprimidos graves, pessoas com retardo mental moderado ou sob o efeito de drogas psicoestimulantes”, resume o psiquiatra Fernando Portela Câmara, professor da Universidade Federal Fluminense.

A técnica ainda é cercada de mitos enganosos. Se você continua com a cebola na cabeça, é hora de se atualizar.

Contra o crime

A polícia de Ponta Grossa, interior do Paraná, tinha ótimas testemunhas para um atropelamento com vítimas fatais. Dois adolescentes que tinham sido atingidos sobreviveram, mas não se lembravam bem do que havia acontecido. Com base em depoimentos de gente que viu o caso de longe, a polícia acreditava que o veículo do criminoso era um Ômega bordô. Mas ninguém tinha notícia de um carro desse modelo e dessa cor. Até que os dois adolescentes aceitaram se submeter à hipnose. Com a ajuda do terapeuta, resgataram memórias do caso e garantiram: o Ômega era azul. A informação foi crucial para que os policiais encontrassem o carro, abandonado em um barracão, e chegassem ao motorista culpado.

Desde que foi fundado, em 1983, o Laboratório de Hipnose Forense do Instituto de Criminalística do Estado do Paraná resolveu mais de 800 casos desse gênero. Normalmente, a técnica serve para que as vítimas se lembrem de detalhes cruciais, que servem de ponto de partida para os agentes fazerem seu trabalho. Pode ser o rosto do criminoso, a cor da roupa que ele usava, uma placa de carro, uma placa de rua ou o logotipo de uma empresa dos arredores.

Mas o relato de uma pessoa hipnotizada, sozinho, não tem valor judicial. Acontece que o processo de resgate da memória não é totalmente preciso e um terapeuta pode implantar lembranças que não existem – é exatamente o que ele faz, por exemplo, para induzir uma aversão a cigarro ou lidar com uma pessoa que tem fobia de falar em público. Ainda assim, muitas vezes a cor exata de um carro é o suficiente para desvendar um atropelamento, desde que os investigadores confirmem a pista.

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“Utilizo a hipnose somente em vítimas ou testemunhas de crimes, em especial assalto, sequestro, homicídios, estupros e acidentes de trânsito, com a condição de a pessoa estar com um bloqueio de memória”, diz o psiquiatra Rui Fernando Cruz Sampaio, fundador e chefe do laboratório. Um garoto de 22 anos, por exemplo, conseguiu encontrar sua família depois que foi sequestrado quando tinha 8 anos. Ele era conhecido como Michael porque era fã de Michael Jackson, vivia no Paraná e não fazia a menor ideia de quem era ou de onde vinha. Hipnotizado, citou a cidade de Esplanada, na Bahia. Com base nessas informações, a polícia chegou à família que tinha perdido o garoto 14 anos antes.

Em um caso específico, um crime acabou sendo solucionado. É porque uma vítima acabou se mostrando a criminosa – era uma mãe, que aceitou ser hipnotizada para investigar no caso de um bebê de 40 dias encontrado morto na região metropolitana da capital paranaense. Confirmou-se depois que ela é que havia assassinado a própria filha.

Normalmente, seja em Curitiba, Boston, Londres, seja em Moscou, a hipnose só acontece a pedido do delegado, com consentimento da vítima, numa sessão liderada por um terapeuta e acompanhada pelo menor número possível de pessoas, de preferência apenas um especialista em retratos falados, e só quando necessário. Quando a vítima é menor de idade, os responsáveis autorizam a prática e acompanham em uma sala ao lado, mas não no mesmo ambiente para não atrapalhar o procedimento.

“Dispomos de mais de mil técnicas de indução. Dependendo do perfil psicológico da vítima ou testemunha, faço a opção pela que julgo mais adequada”, diz Sampaio. Em geral, as sessões duram uma hora, mas em casos de crimes especialmente violentos podem chegar a três. Em Curitiba, a cidade que lidera no Brasil o uso de hipnose para ajudar nas investigações, o laboratório atende a sete casos por semana. Em quase todos, fornece algum tipo de informação crucial para a polícia.

A favor da saúde

Vítima de um tipo sério de artrite, o inglês Alex Lenkei chegou ao centro cirúrgico para uma operação de retirada da base de seu dedo polegar. Hipnoterapista profissional, Alex ficou em transe ao longo dos 83 minutos do procedimento. Sentiu que estavam cortando sua carne, ouviu o barulho do osso sendo quebrado, mas não se apavorou nem reagiu nenhuma vez sequer. Ele ainda se submeteu a outras cinco cirurgias. Em uma delas, seu tornozelo foi cortado com uma serra. E ele não precisou de anestesia em nenhuma das vezes.

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Esse caso não é tão raro assim nem tão inédito. Desde o século 19, cirurgias e amputações são realizadas usando hipnose no lugar de anestésicos. Durante a Primeira e a Segunda Guerras, na falta de medicamentos, os médicos que conheciam a técnica a usavam com frequência. Bem mais recentemente, a belga Christel Place se submeteu a uma retirada de tireoide enquanto imaginava a si mesma esquiando nos Alpes franceses. O procedimento, que geralmente precisa de anestesia geral com todos os muitos riscos implicados, exigiu somente uma breve sedação no local. (Os belgas, aliás, pesquisaram casos assim e perceberam que mulheres que retiram tumores de mamas usando hipnose no lugar de anestesia têm menos chance de metástases.)

O alcance na medicina passa por casos extremos como esses, mas vai muito além. A técnica é extremamente útil em três linhas diferentes: serve para aliviar dor, para alterar comportamentos indesejáveis e para lidar com doenças psicossomáticas. Vamos continuar tratando do primeiro caso.

Na Inglaterra, um programa piloto com mulheres grávidas está se expandindo rapidamente e já chegou a quase mil mães, que participaram de duas sessões, de 90 minutos cada uma, seis semanas antes do parto. O objetivo é ensiná-las a praticar auto-hipnose, aplicada durante o trabalho de parto. Em geral, as mães que participaram do processo e dão à luz com parto normal pedem a anestesia peridural com menos frequência.

O uso em consultórios odontológicos é bem mais disseminado e já se tornou uma área específica de atua-ção, chamada hipnodontia: o especialista fica dentro do consultório e estimula o estado de transe durante os procedimentos mais dolorosos. O Conselho Federal de Odontologia aceita e recomenda a prática, com a exigência de que cirurgiões-dentistas façam um curso de 180 horas para poder eles mesmos aplicar a terapia.

Mais recente é o apoio para pacientes hipnotizados depois de tratamentos de rádio e quimioterapia. Realizar as sessões sob o efeito do transe diminui a sensação de náusea e a falta de apetite. O Conselho Paulista de Medicina aprova o uso nesses casos e o Hospital das Clínicas de São Paulo usa a técnica em seus pacientes de câncer.

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A hipnose não tira a dor. Em seu estado mais sugestionável, a pessoa é convencida a substituí-la por uma sensação de calor ou de formigamento, algo mais controlável e tolerável. E por isso desde 2010 o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional aceita a terapia como tratamento auxiliar para alguns problemas musculares e de coluna.

Sobre as mudanças de comportamento, essa terapia tem um trunfo gigantesco: ela ajuda a mexer com a memória. Pode atenuar um episódio especialmente traumático do passado ou atuar contra depressão, fobias e insônia. Por isso, vício em jogo, álcool ou cigarros pode ser trabalhado por um hipnoterapeuta que crie ou reforce vínculos negativos relacionados à atividade. O mesmo vale para pessoas que têm anorexia ou bulimia, e mesmo para alguns casos de impotência.

As doenças psicossomáticas são tratáveis assim porque a terapia mexe com o aspecto psicológico delas. Por isso a terapia reduz a incidência de asma, cólon irritável e problemas de pele e ataca a psoríase e o vitiligo.

Não é exagero creditar tantos benefícios para a hipnose. A técnica provoca um efeito poderoso sobre o cérebro: com a atenção totalmente focada, a pessoa evita que os estímulos externos alcancem o córtex superior, a região responsável pela percepção da dor.

O tratamento ainda diminui os níveis de serotonina, o transmissor ligado às sensações de bem-estar, e estimula a produção de moléculas chamadas moduladores imunológicos, que se ligam às células de defesa e evitam que elas ataquem tecidos do próprio corpo. Tudo muito mais impressionante do que os shows de mágica dos programas de auditório de TV.

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Faça você mesmo

É totalmente possível fazer hipnose sozinho. Já fazemos isso, sem querer, o tempo todo, mas podemos criar transes com objetivos mais claros. É importante, aliás, estabelecer metas para cada sessão. “Todo mundo quer chegar em casa depois de um dia difícil e relaxar. Com um pouco de dedicação e disciplina, é possível transformar esse momento em uma oportunidade de melhorar a própria saúde física e mental”, diz o psiquiatra David Spiegel, da Universidade Stanford.

Para alcançar o estado de hipnose, é preciso seguir alguns passos simples. Em primeiro lugar, crie um ambiente relaxado. Vista um moletom, desligue o celular, prefira luz baixa e indireta, procure evitar ruídos e estímulos – a não ser que você tenha em mãos alguma música bem new age ou sons da natureza e gravações de mantras. Se morar com alguém, peça para não ser incomodado por pelo menos meia hora. Sente-se em algum lugar agradável e evite cruzar pernas ou braços. Encontre a posição mais confortável possível para ficar assim por bastante tempo sem se incomodar. Procure um ponto na parede e comece a olhar fixamente para ele.

Pode ser um quadro, uma mancha, um interruptor. Se você não consegue ficar muito tempo concentrado num único ponto, mude de estratégia e concentre sua atenção em algo que se mova de forma cíclica – um relógio cuco, um pêndulo, um metrônomo ou até mesmo aqueles gifs hipnóticos da internet. Se usar um relógio, foque a atenção em um dos números. Você vai perceber que os outros vão começar a ficar borrados.

Enquanto fixa o olhar, respire. Devagar. Pense nos movimentos de puxar e expelir o ar. Esqueça-se dos problemas, do trânsito, da briga com a namorada, do preço da picanha. Respire. De novo. E mais uma vez. Com muita calma. Imagine um lugar tranquilo, uma ilha deserta, uma montanha. Deixe sua imaginação fluir. Se algum pensamento negativo aparecer, analise-o com calma e dispense-o devagar, sem mágoas nem ressentimentos.

Balance o corpo, para lá e para cá, como se estivesse num barco ou caminhando lentamente. Se você gosta de conversar sozinho, não se contenha. Mas fale baixo e em tom monótono e repetitivo – os psicólogos estão descobrindo que os estímulos sonoros são tão ou mais importantes do que os visuais.

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Uma boa forma de agilizar o processo é pensar em cada um dos membros do corpo como se eles tivessem vida própria e começassem a adormecer lentamente, por partes. Sinta o braço direito ficar amortecido. Depois o esquerdo. Depois o pé, a panturrilha, a nuca, o rosto, as pálpebras. Sinta a tensão deixando você, até perceber.

Quando você menos perceber, já vai estar hipnotizado. Se pensar demais nisso, vai acabar com o próprio transe. Deixe-se levar, mantendo a respiração sob controle. É a hora de tratar de seus objetivos. Aproveite para mentalizar alguns comandos simples para você mesmo, como “Não vou mais me irritar no trânsito”, “Vou reduzir o número de cigarros que eu fumo por dia”, “Vou comer menos doces”. Tudo muito positivo, relacionando esses comandos com sensações positivas e saudáveis.

Depois de algum tempo, você vai começar a voltar ao estado natural. Induza esse estado repetindo para si mesmo: “Estou relaxado, descansado, calmo, tranquilo. Agora vou retornar às minhas atividades normais, com uma nova disposição”. Imagine-se saindo de uma piscina quente, degrau após degrau. Sinta o vento batendo no rosto.

Ao final do processo, você vai estar se sentindo muito melhor. Talvez com uma leve sonolência nos primeiros minutos, como se tivesse acabado de acordar, mas logo depois vai estar novo em folha. Se transformar esse relaxamento em rotina, vai começar a ver resultados – como o piloto André Borschberg, da companhia Solar Impulse, que fez da técnica uma maneira de não ter sono durante o longo voo que ele está para realizar entre a China e o Havaí no comando de uma aeronave inteiramente movida a energia solar.

“A hipnose não tem relação direta com a meditação aos moldes orientais, mas seus resultados são parecidos”, diz David Spiegel. “Ajuda a pessoa a encontrar o tão falado equilíbrio entre corpo e mente.”

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