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Boato: Sabe da última?

A mais antiga modalidade de comunicação social continua a fazer parte da vida de todos. Afinal, quem já não ouviu ou ajudou a passar adiante um boato? Nisso há uma lição sobre a natureza humana

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 dez 1988, 22h00

Luiz Weis e Maria Inês Zanchetta

É sempre tudo muito parecido: uma história que ninguém sabe exatamente de onde saiu passa de boca em boca e, em questão de horas, se tanto, com os devidos acréscimos e bordados, vira verdade verdadeira. É o boato, um dos mais assíduos freqüentadores de conversas, em toda parte e de todo tipo de gente. Costuma crescer feito bola de neve em situações de tensão e ansiedade. E pode murchar como um balão furado assim que alguém se dá ao trabalho de conferir o rumor antes de passá-lo adiante, o que porém raramente acontece. Às vezes, sobrevive a todas as checagens – e aí vira lenda.

Um exemplo clássico que correu mundo por se referir a uma celebridade foi o da morte do beatle Paul McCartney, que chegou a ser notícia de primeira página nos Estados Unidos em 1967, nos anos de glória do conjunto. Paul, naturalmente, estava vivo da silva – mas nem isso iria convencer os partidários da teoria do passamento do senhor McCartney, como o americano que telefonou para uma estação de rádio de Detroit munido da seguinte prova: na música “Strawberry Fields Forever” do disco Magical Mistery Tour, gravado naquele ano de 1967, era possível ouvir, depois de uma filtragem de sons, uma voz que dizia “I buried Paul” (“eu enterrei Paul). Outras evidências do gênero foram arranjadas para demonstrar que o boato era fato. Na capa do disco Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band, por exemplo, podia-se ler numa guitarra a inscrição “Paul is dead”.

E assim a história foi sendo enriquecida com detalhes do arco-da-velha: ele teria morrido em um acidente automobilístico em novembro de 1966 e fora substituído por um dublê. A lenda se alimentaria ainda das imagens da capa do último disco do conjunto, Abbey Road, gravado em 1970, onde Paul aparece descalço, como são enterradas algumas pessoas na Inglaterra; a foto também mostra um carro placa LMW 28 IF. Era só o que faltava: os boateiros entenderam que, se (“if”) Paul estivesse vivo, teria 28 anos. Por aí se vê como fecunda, por assim dizer, a imaginação dos que não abrem mão de um bom rumor, apesar de todas as evidências da vida real.

Mas o boateiro não é uma pessoa diferente das demais ou coisa que o valha. Não há quem, com maior ou menor convicção, não tenha sido cúmplice da difusão de uma história, geralmente envolvendo gente famosa, sem ter a menor idéia se era verdadeira ou não. Ou, o que ainda é mais comum, sem se perguntar se o boato não teria sido plantado de propósito por alguém interessado em beneficiar-se da circulação da notícia falsa. Passar adiante um boato, em suma, parece parte da condição humana. Muitos boatos nascem de um mal-entendido. Alguém tira uma conclusão errada do que vê, lê ou escuta, confunde um gesto ou uma frase, e pronto – faz brotar uma inverdade que, levada às últimas conseqüências, pode envenenar a reputação de pessoas inocentes antes mesmo que fiquem sabendo dos rumores em que caíram.

Pois nem sempre o reino da verdade se restabelece com igual rapidez. Como no episódio do beatle Paul, há boatos que resistem, impávidos, aos mais contundentes golpes da realidade. Mas uma coisa todos eles têm em comum: sua fonte primária é sempre anônima. Rastrear a origem de um boato é tarefa tanto mais difícil quanto maior e mais complexo for o ambiente social onde ele surgiu, reflete o antropólogo José Guilherme Cantor Magnani, da USP. Para ele, “só numa pequena cidade do interior, onde a rede de relações é quase transparente, um boato pode ser rapidamente checado: é possível saber sua fonte e restabelecer sua cadeia de transmissão, pois todos se conhecem”.

Mas, do mesmo modo que uma nota falsa só é aceita se a falsificação for de boa qualidade (a menos que a pessoa seja muito desatenta ou desinformada), o boato, para circular com rapidez e desenvoltura, precisa ser verossímil, seja quanto ao contéudo seja quanto à fonte. Quem conta a história deve estar em condições de responder de boca cheia à pergunta “Como você soube?” ou “Quem foi que contou?” Boato ideal, portanto, é aquele que tem cara, cor e cheiro de verdade — e ainda por cima tem o aval de alguém tido como uma pessoa que sabe das coisas. Esses são ingredientes indispensáveis para quem pretenda cozinhar uma história com a intenção de ganhar algo ao servi-la a determinado público.

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O Brasil, como se sabe, tem sido uma terra pródiga em boatos. Tanto assim que no ano passado até um certo dia — sempre às quintas-feiras — passaram a ter as histórias destinadas a provocar sobressaltos nos mercados financeiros, com o efeito de erguer ou derrubar as cotações de ações ou da dupla verde-amarela (dólar e ouro). No final de outubro, por exemplo, os avanços olímpicos da inflação deram credibilidade a uma porção de lendas sobre pacotes econômicos recheados de crueldades, como o bloqueio de depósitos em cadernetas de poupança. No embalo da boataria, chegou a circular até em lugares por onde anda gente séria a notícia de que os militares haviam voltado a tomar o poder no país. O fôlego dessa asneira durou pouco (esse é o típico boato fácil de checar), mas o suficiente, com certeza, para alguém ganhar e alguém perder dinheiro.

Não muito diferente são os boatos criados para fazer mal a candidatos a cargos públicos. Esse tipo de rumor apela freqüentemente para questões de ordem moral: propaga-se contra o candidato histórias de corrupção ou de escândalos na vida familiar, das quais ou ele não conseguirá se livrar ou só se livrará tarde demais — quando tiver já perdido a eleição. Como não há quem não goste de falar mal de políticos, essas histórias percorrem o eleitorado a jato. No entanto, para serem realmente eficazes, devem machucar a vítima ali onde dói mais: o boato deve acusá-lo de algo que seja um grave pecado naquela sociedade, naquele momento.

Do contrário, o eleitor pode até acreditar no rumor (e ajudar a espantá-lo) e nem por isso deixa de votar no candidato. Os psicólogos americanos Gordon Allport e Leo Postman registraram casos dessa natureza em seu clássico livro The Psychology of Rumor, de 1953. Eles contam que Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, de 1801 a 1809, foi acusado quando candidato de ser ateu. Difícil imaginar algo mais devastador na América daquele tempo. Um gênero de boato de fácil aceitação e largo trânsito é o que anuncia a morte de alguém muito famoso — como já se viu no caso de Paul McCartney.

Em setembro do ano passado, dias antes da promulgação da Constituição, correu no Brasil o boato de que o deputado Ulysses Guimarães, 72 anos, presidente da assembléia Nacional Constituinte, havia morrido. A notícia foi transmitida de Brasília ainda de madrugada pelo repórter de uma rádio paulista, que aparentemente se confundiu com uma nebulosa informação obtida na redação de um jornal local. A família do doutor Ulysses, que dormia placidamente, teve o dissabor de ser despertada por um colar de telefonemas — alguns, mais afoitos, até de pêsames. Esse foi o maior dano causado pelo boato ao vivíssimo político, virtual candidato presidencial.

A imprensa, que vive de apurar e transmitir informações presumidamente confiáveis, tem sua parte de culpa na geração e difusão de boatos. Também no ano passado o sisudo jornal parisiense Le Monde tropeçou num telefonema recebido de Roma e decretou o falecimento da atriz italiana Monica Vitti. Constatado o erro, com o jornal já nas bancas, só restou ao Le Monde mandar à atriz uma corbeille de rosas, “vermelhas de vergonha”. A falta de informações suficientes sobre um assunto ou uma celebridade às vezes é o que basta para instalar a boataria. De acordo com o antropólogo Cantor Magnani, “o boato é sempre uma fonte alternativa que se contrapõe a uma verdade oficial e seu efeito é o de substituir a notícia oficial ou colocá-la em xeque”.

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O caso do assassínio do presidente dos Estados Unidos John Kennedy, em 1963, é um exemplo disso. Até hoje, bom número de americanos — para não falar da opinião pública de outros países — duvida da versão oficial de que ele foi morto por um solitário chamado Lee Oswald. Acreditam, isto sim, que Oswald fazia parte de uma conspiração envolvendo organizações de grosso calibre e figurões jamais identificados. Há poucos meses, uma TV inglesa afirmou ter provas de que Kennedy pretendia desfechar uma dura ofensiva. Tenham ou não razão os jornalistas ingleses, sua versão representa mais lenha na fogueira dos duradouros boatos sobre a tragédia de Dallas.

O Brasil tem sua própria coleção de boatos em volta de uma das maiores tragédias de sua história recente — a agonia e morte de presidente eleito Tancredo Neves em 1985. De 14 de março, véspera da posse, quando ele foi internado às pressas no Hospital de Base de Brasília, até sua morte, a 21 de abril, o país mergulhou numa boataria nunca antes vista. De início, os meios de comunicação apresentaram ao público uma versão suavizada dos problemas de saúde de Tancredo, e depois veicularam o fogo cruzado entre as equipes médicas que o assistiram, enquanto ele era submetido a cirurgia após cirurgia. Só restou então ao povo desinformado acreditar no boato de que a verdade sobre o caso era toda outra e estava sendo escondida de propósito: Tancredo tinha sido vítima de um atentado a tiros.

Tais boatos ricochetearam na repórter da TV Globo Glória Maria que, por coincidência — e nada como uma boa coincidência para fermentar um rumor –, não estava aparecendo no vídeo. Nada mais lógico do que concluir que ela também tinha sido ferida no atentado a Tancredo. Em situações de insegurança, o povo desconfia das versões oficiais dos acontecimentos e os boatos políticos e econômicos proliferam feito cogumelos após a chuva. “Quando a população se sente perdida, aterrorizada, o boato se propaga rapidamente, pois qualquer informação que chega é bem-vinda”, constata o psicanalista e sociólogo Manoel Tosta Berlinck, da Unicamp.

O meio artístico é também um campo fértil para a germinação de boatos, às vezes criados ou amplificados por emissoras ou publicações sensacionalistas. É comum pipocar a notícia de que um ator ou cantor está muito doente. Se um pequeno fato ajudar, então o boato estará com a vida feita. Em junho de 1987, o ator e cantor Fábio Jr. foi internado às pressas no Instituto do Coração, em São Paulo. Logo correu que ele tinha sofrido uma cirurgia delicada, que sua doença era conseqüência do uso excessivo de drogas e que ele estava à morte. O cantor tinha na verdade uma pericardite (inflamação na membrana do coração) que o deixou fora de combate por duas semanas — nada mais.

A irreverente cantora Rita Lee também teve de se haver com o falatório sobre sua saúde. Como ficou bom tempo sem se apresentar, em 1984, isso bastou para que se espalhasse que ela estava com leucemia. Em seguida, uma aparição no “Rock in Rio”, no início de 1985, só serviu para dar força à história. Afinal, Rita estava muito magra, afônica e usava peruca. Se para um boateiro meio sintoma basta, que dizer de três? Na realidade, magra a cantora sempre foi e se usava perucas era porque gostava. Compositora de talento, ela não deixou barato e logo deu o troco, compondo a música “Não, titia”, com o refrão: “Não titia, eu não estou com leucemia”. Mas nem todas as vítimas de boatos reagem como o mesmo bom humor — muito antes pelo contrário.

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Por trás da transmissão de um boato, oculta-se muitas vezes uma questão de prestígio social. Afinal, quem detém informações aparece aos olhos de seus pares como algo que está “por dentro”, sabe logo o que os demais ignoram e, em certo sentido, é mais que os outros — ao menos enquanto suas informações não forem desmentidas. Mesmo quando forem, como a origem do boato é quase sempre anônima, o transmissor tem a seu favor a circunstância atenuante de não ter se comprometido até o fundo da alma com aquilo que transmitiu. “Contar uma história que os demais desconhecem faz com que a pessoa seja mais respeitada pelo grupo”, resume o psiquiatra José Cássio Simões Vieira.

Boato vem do latim boatus, significando “mugido, grito agudo”. Na Antiga Roma, os imperadores, cientes de que a plebe gostava tanto de um rumor quanto de uma luta de gladiadores, nomearam os delatores (do latim delatio, que significa contar, referir), cujo trabalho era circular pelas ruas e levar ao imperador a vox populi. Caso os boatos fossem prejudiciais à imagem do imperador, os delatores, como agentes desse verdadeiro serviço nacional de informações, versados nas artes da guerra psicológica adversa, lançavam boatos em sentido contrário.

Um exemplo é o incêndio de Roma em 64. Não há quem não tenha aprendido que o responsável foi o insano imperador Nero. Mas é possível que essa versão tenha nascido do fato de ser Nero um imperador impopular. No episódio, de nada adiantou o desmentido oficial; para se defender, Nero recorreu então à contra-informação: os responsáveis pelo incêndio foram os cristãos, na época uma minoria hostilizada — e mais que depressa a fúria da plebe voltou-se contra eles. Nem todo boato pode ter um fundo de verdade, ao contrário do que quer o ditado. Mas seguramente todo boato tem alguma verdade a ensinar sobre o comportamento das pessoas e o funcionamento das sociedades em que elas vivem.

Por acreditar nisso, o sociólogo francês Jean-Noël Kapferer criou em Paris, em 1984, uma Fundação para o Estudo e a Informação sobre os Rumores, que em pouco tempo recolheu um formidável acervo de 10 mil boatos — entre eles, o de que o presidente americano Richard Nixon, em visita à China em 1972, furtou uma valiosíssima xícara antiga de porcelana. Com esse farto material, às vezes subversivo, Kapferer escreveu um autêntico tratado sobre o assunto, Rumeurs (“Rumores”). No livro, o caçador de boatos tenta explicar como eles nascem, se desenvolvem e sobrevivem, apesar (ou por causa) da avalanche de informações produzidas diariamente pelos meios de comunicação.

Kapferer lembra que, antes da invenção da escrita, a transmissão de notícias de boca em boca era o único canal de comunicação social — não havia então como distinguir o que hoje se chama boato (a notícia oral) da verdade dos fatos (como se presume sejam as notícias da imprensa). Para o sociólogo, nem todo boato é falso assim como nem toda notícia é verdadeira, embora esta seja a única passível de controle. Segundo Kapferer, todos os homens carregam pela vida afora uma bagagem de idéias, opiniões, imagens e crenças sobre o mundo que o rodeia, a maioria adquiridas simplesmente por ouvir dizer, num processo lento, gradual — e imperceptível. “O boato”, escreve ele, “recria esse processo de forma acelerada, de modo a torná-la perceptível”. Daí a conclusão que o estudo do boato proporciona — não é que o homem acredite naquilo que é verdade provada; mas a prova da verdade de algo é o fato de o homem acreditar nisso.

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Para saber mais:

Tudo mentira

( SUPER número 4, ano 2)

Errros, fraudes e mentiras

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(SUPER número 2, ano 8)

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