A balada da burocracia
Nosso país é um dos poucos que podem se dar ao luxo de ter despachantes milionários. Culpa de um labirinto burocrático que "desagrega valor" da nossa economia - e que nos afasta da área VIP do mundo
Pedro Burgos
O rei do camarote gasta de R$ 5 mil “até o infinito” (R$ 70 mil, pela contabilidade do sujeito) em uma noite, boa parte em garrafas de champanhe com pirotecnia. Bom, esbanjadores exibicionistas sempre existiram, e não são exclusividade dos novos-ricos nacionais. O que realmente intriga aí é outra coisa: de onde vem a fortuna do baladeiro. Alexander de Almeida é despachante. Não que isso seja ilegal ou imoral (ainda que engorde, caso você exagere no champanhe). O problema é termos uma burocracia tão mastodôntica que permite a existência de despachantes milionários. No fundo, é como se alguém ganhasse dinheiro por vender cobertores para os pacientes largados nos corredores dos hospitais públicos: há um problema que poderia ser solucionado caso o Estado fosse mais eficiente no atendimento à população, mas, enquanto isso não acontece, alguém vê uma oportunidade a ser explorada. O Brasil seria um país melhor se eles não fossem tão necessários. Fato. Mas, infelizmente, eles são.
A burocracia brasileira passa pela necessidade de imensas pilhas de papel, filas em repartições públicas e carimbos de cartório até para procedimentos simples. Gasta-se muito tempo com todas essas necessidades artificiais: são em média 119 dias para abrir uma empresa (contra 20 nos países desenvolvidos). Se tempo é dinheiro, empresas e mesmo pessoas comuns preferem economizar quando podem e escolhem contratar as pessoas que sabem quais os formulários, os atalhos e com quem falar. No Detran do Paraná, por exemplo, os 850 despachantes cadastrados são responsáveis por entrar com 70% dos processos. O que é natural: pouca gente tem tempo ou paciência para fazer por conta própria mudanças no cadastro de veículos ou recorrer de uma multa, indo até uma repartição que tem filas desde antes do expediente começar. O excesso de processos também abre brechas para o surgimento de falsos despachantes e fraudadores. Próximo a qualquer Detran, há os chamados “zangões” – como são conhecidos os profissionais que exercem a função sem autorização -, que prometem de vistorias “rápidas” até carteira de habilitação sem a necessidade de exame.
No Rio de Janeiro, este ano, a corregedoria do Detran desmantelou um esquema que gerava R$ 2 milhões por mês a uma quadrilha. Os bandidos cobravam até R$ 1.000 para a aprovação rápida de vistorias. Sem a necessidade de filas, papéis – ou vistorias.
Mas não é preciso estar na ilegalidade para atingir altas cifras. A empresa do rei do camarote encontrou uma mina de ouro ao ligar a burocracia do Detran com a burocracia bancária. A empresa dele recupera automóveis de pessoas inadimplentes com financiamentos bancários, atualiza a documentação e guarda a frota em pátios até um leilão judicial acontecer. Prova de que nem grandes instituições financeiras têm como viver sem despachantes.
Outro mercado lucrativo para os intermediários da burocracia é o de importação. No terminal de cargas do Aeroporto de Guarulhos, onde chega grande parte das encomendas estrangeiras para o País, circulam 500 despachantes aduaneiros que prometem acelerar o processo de liberação do que estiver retido na Receita – e cobram cerca de 3% do valor da carga, que pode custar dezenas de milhares de reais.
É importante dizer que o mercado dos despachantes é só uma das faces da burocracia institucionalizada. Há, por exemplo, quase 15 mil cartórios no Brasil. Os maiores chegam a faturar R$ 5 milhões por mês, justamente porque há muita cópia a ser autenticada, firma a ser reconhecida e títulos a serem transferidos. Coisas que despachantes podem ajudar a fazer com a devida procuração, evidentemente. É fácil colocar a culpa de toda essa burocracia no governo, ou na herança cartorialista portuguesa. Mas de acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria, para 63% dos brasileiros a burocracia é importante para evitar o uso indevido do dinheiro público. “No Brasil, em vez de se colocar o falsário na cadeia, obrigam-se todas as pessoas a provar sistematicamente, com documentos, que não são desonestas”, afirma o economista Hélio Beltrão, que foi “ministro da desburocratização” nos anos 80 – a pasta foi extinta depois de sete anos sem grandes progressos.
Para que haja menos processos, precisamos de uma sociedade não só mais eficiente, mas que tenha mais fé no cidadão e em suas instituições. Se a desconfiança parece estar arraigada na nossa cultura, há indícios de que processos mais eficientes são atingíveis em um curto espaço de tempo. O México, que também tem seus despachantes, começou em 2004 uma grande campanha para transferir os processos que precisavam de papel para a internet. Pelo último relatório do Banco Mundial, a mudança ajudou a fazer com que o país virasse o melhor lugar para fazer negócios na América Latina, e o 35º do mundo. O Brasil está em 127º. Pesado… Por outro lado, o horizonte é promissor. Iniciativas que reúnem várias repartições no mesmo lugar (como o Poupatempo em São Paulo) e a possibilidade de fazer mais processos online, como em alguns Detrans, sugerem que estamos caminhando na direção de processos mais rápidos e racionais. Quem sabe assim, um dia, o Brasil deixe de ser este “Boeing com piloto de teco-teco”.
* Pedro Burgos é editor-chefe do site Oene.