Duas pessoas descobriram a seleção natural antes de Darwin. Sem perceber.
Como ilustres anônimos mudaram a história da biologia – sem mudar a história da biologia.
Duas pessoas perceberam a seleção natural antes de Darwin, que publicou A Origem das Espécies em 1859. Uma delas foi o naturalista escocês Patrick Matthew em 1831, 26 anos antes. Matthew escreveu o trechinho despretenciosamente e o publicou como uma nota secundária na página 364 de um livro monótono intitulado Madeira de construção naval e arboricultura. Ficou tão escondido, é claro, que ninguém percebeu que essa era a sacada mais revolucionária da história da biologia. Dá uma olhada do trecho:
“Há uma lei universal na natureza, que tende a tornar cada ser reprodutivo o mais bem adequado à sua condição (…) que parece destinada a modelar os poderes físicos e mentais ou instintivos à sua máxima perfeição. Essa lei sustenta o leão, em sua força, a lebre, em sua celeridade, e a raposa, em suas artimanhas.”
Até aí, só enrolação. Mas tenha paciência, é um texto do século 19. Agora, o essencial:
“Como a Natureza, em todas as suas modificações da vida, tem o poder de se multiplicar muito além do que é necessário para suprimir a lacuna do que cai pelo desgaste do Tempo, os indivíduos que não possuem a resistência, rapidez, dureza ou astúcia necessárias são abatidos prematuramente sem se reproduzir – seja como presas de seus algozes naturais, seja perecendo a doenças (…) seu lugar sendo ocupado pelos mais perfeitos de sua própria espécie, que estão competindo pelos meios de subsistência.”
Em outras palavras: os que são mais aptos sobrevivem, e suas características se espalham pela população.
Vários anos depois, lendo Darwin, Matthew percebeu a oportunidade perdida. Chegou até a comentar: “a concepção desta lei da Natureza me veio intuitivamente, como um fato auto-evidente, quase que sem esforço de pensamento. Neste ponto, o sr. Darwin parece ter mais mérito na descoberta do que eu – para mim, ela não surgiu como uma descoberta.”
Matthew não foi o único que descobriu a seleção natural sem, de fato, descobri-la. Em 1813, outro escocês, o médico William Charles Wells, consultou uma jovem paciente chamada Hannah West. A pele da garota era majoritariamente branca, mas o ombro, o braço e o antebraço esquerdos, em suas palavras, eram “tão escuros quanto os de qualquer negro”.
Wells não soube diagnosticá-la. Ao dar um parecer sobre o caso, em um artigo científico, se limitou a uma descrição cuidadosa. E aí, para encher linguiça, descreveu uma breve teoria sobre a origem das diferenças de pigmentação em seres humanos.
Ele partiu do pressuposto racista de que, originalmente, a espécie humana inteira consistia em indivíduos brancos. Soa grave hoje, mas na época, acredite, era uma posição moderada: no século 19, boa parte dos cientistas discutia seriamente se as populações negras teriam “intelectos menos evoluídos” que as brancas.
Wells, então, deduziu que indivíduos que nasciam com a pele mais escura se dariam melhor em climas mais quentes por causa da proteção extra conferida pela melanina. E assim, se reproduziriam mais.
O cientista não era bobo. Em sua carreira, fez duas descobertas que estão até hoje no currículo do Ensino Médio: por que se forma o orvalho nas plantas e por que nossos dois olhos formam uma única imagem. Mesmo assim, não conseguiu perceber que o princípio que aplicou à pele dos Homo sapiens valia para todo o resto da história natural também.
Os dois casos ilustram bem o fato de que a seleção natural é um ovo de Colombo: hoje, soa óbvia, mas alguém precisou se dar conta dela. O crédito de Darwin, claro, vai muito além de simplesmente ter a ideia. Ele foi o primeiro a perceber que ela tinha o poder de explicar tudo. E dedicou sua vida a aplicá-la (e perceber que ela se aplicava) a toda a biologia – de orquídeas a seres humanos. Malandro é malandro, mané é mané.