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Cientistas usam partículas-fantasma para radiografar núcleo da Terra

Com o auxílio de partículas indetectáveis chamadas neutrinos (e um enorme observatório na Antártica, que você vê na foto), cientistas fizeram primeira imagem direta do centro do planeta.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 12 nov 2018, 20h33 - Publicado em 12 nov 2018, 20h23

O escritor Bill Bryson explica assim o tamanho de um próton: “Não importa o quanto você se esforce, você jamais será capaz de entender o quão pequeno, o quão espacialmente modesto é um próton. Ele é simplesmente pequeno demais. Um próton é uma parte infinitesimal de um átomo. Que, por sua vez, é obviamente uma coisa insubstancial.

O problema é que o assunto deste texto são neutrinos, não prótons. E um próton, perto de um neutrino, é um elefante. Para dar uma ideia: um próton é feito de três partículas menores chamadas quarks. E um neutrino é uma partícula tão ridiculamente minúscula que ele é menor que um quark. Um neutrino é o mais próximo de nada que alguma coisa pode ser. Sua massa é 0,00000000000000000000000000000000000001 kg, e ele não tem carga elétrica. 

Isso torna o neutrino notavelmente bom em se meter onde não é chamado. Alguns posts atrás, eu escrevi neste blog: “Uma parede de chumbo de dez centímetros de espessura é capaz de te proteger dos resíduos radioativos de uma bomba nuclear, mas você precisaria de dois anos-luz de chumbo se quisesse impedir um neutrino de te atingir. Não que você tenha motivo para se proteger, é claro. Há 65 bilhões de neutrinos atravessando cada centímetro quadrado do seu corpo neste exato momento e você não poderia dar menos bola para eles.” 

Uma das únicas pessoas no mundo que se incomodam com os neutrinos é o belga Francis Halzen. Ele é físico, veterano da Universidade de Wisconsin-Madinson e cientista-chefe do observatório IceCube. O IceCube, que emprega 300 pesquisadores de 12 países, é uma daquelas coisas que fazem você gostar da humanidade em vez de odiá-la. Ele consiste em um pedaço de gelo com um quilômetro cúbico de volume, cravado no solo da Antártida, perto do Polo Sul. Dentro do gelo, amarrados ao longo de 86 cabos como pérolas de um colar, distribuem-se 5160 sensores de luz redondinhos. Sua função é detectar o indetectável: neutrinos.

Como fazer isso? É o seguinte: neutrinos, você já sabe, raramente interagem com as coisas. Mas, nas raras ocasiões em que interagem, causam um rebuliço. Se um neutrino tromba com outra partícula dentro da água – ou do gelo, o que dá na mesma –, ele dá origem a uma porção de outras partículas. Essas partículas são jogadas longe pelo impacto, como bolas de sinuca atingidas pela bola branca. Aceleram tanto, de fato, que vão mais rápido do que a velocidade da luz na água (que é um quarto menor que a velocidade da luz no vácuo – só por isso é possível ultrapassá-la).

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Da mesma maneira que um avião gera uma onda de choque quando cruza a barreira do som no ar, uma partícula emana uma luminosidade azulada muito particular quando cruza a barreira da luz na água: a radiação Cherenkov. O que o IceCube é capaz de detectar, portanto, não são os neutrinos em si, e sim a radiação Cherenkov gerada quando eles, por sorte, colidem com alguma coisa. Com os dados dos 5160 sensores de luz é possível calcular com precisão de que direção do céu veio cada neutrino. E aí estabelecer qual foi a estrela (ou até quasar distante) que os produziu. Há uma simulação super esclarecedora desse momento no minuto 3:18 do vídeo abaixo.

Essa é a função número 1 dos neutrinos: complementar os outros dois métodos existentes de observação astronômica (radiação eletromagnética e ondas gravitacionais) para fornecer a foto do céu mais completa a que já tivemos acesso. Neutrinos não têm preferências geográficas: atingem igualmente todas as partes da Terra. O IceCube só foi instalado na Antártica por um motivo: é preciso muita água em uma situação muito controlada para fazer medições confiáveis, e no Polo Sul – olha só, que conveniente – há um lugar pronto há alguns milhões de anos que atende perfeitamente a estas necessidades. 

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A facilidade com que os neutrinos atravessam as coisas permite que eles não só revelem segredinhos do cosmos como façam também, de quebra, uma radiografia da Terra. Da mesma maneira que em um hospital os raios-X atravessam o paciente e formam uma imagem do interior de seu corpo na superfície que está atrás, os neutrinos que chegam do espaço pelo norte atravessam a Terra antes de atingir o IceCube – e formam uma imagem do interior do planeta.

“Alguns dos neutrinos são absorvidos pela Terra ao atravessá-la, apesar da baixa probabilidade de que eles interajam [com a matéria no interior do planeta]”, explicou Halzen a mim em uma entrevista em outubro, durante uma visita ao Brasil. “Quando eles são absorvidos, eles obviamente não passam pelo detector, não são vistos. Então, espera-se um déficit no número de neutrinos que chegam de determinadas direções. Quando eles vêm do Polo Norte, eles precisam atravessar o centro da Terra para chegar ao detector no Polo Sul. Como a chance de que eles sejam absorvidos pelo núcleo é maior, deve haver um déficit mais acentuado ali.”

Halzen previa essa aplicação há algum tempo, e um artigo científico publicado na última semana por três pesquisadores espanhóis que participam do IceCube confirmou suas expectativas: a análise de neutrinos detectados ao longo de um ano permitiu aos pesquisadores tirar conclusões razoavelmente precisas sobre a massa e a densidade do núcleo de ferro da Terra. Os cientistas já sabiamos dessas coisas. Mas não sabiam que podiam confirmar as conclusões de antigamente usando um método novo. Mais do que nos ensinar algo sobre a Terra, a notícia ensina algo sobre o mundo de possibilidades que a detecção de neutrinos abre para a ciência.

 

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