Trapistas, os monges cervejeiros que viraram o novo sistema solar
Ordem famosa pela cerveja também faz queijos e até caixões
Arnold de Soissons era um abade em Oudenburg, em Flandres, no século 11. Como muitos homens da Igreja na Idade Média, ele produzia cerveja e estimulava seu consumo como alimento. Quando uma epidemia de peste devastou a região, Arnold convenceu a comunidade a beber apenas sua cerveja e abrir mão de água. Como o álcool é resistente aos microrganismos letais que matavam pessoas às baciadas em nosso insalubre passado, as taxas de mortes em Oudenburg foram muito mais baixas que em outras cidades. Ou seja, aquilo era nada mais, nada menos do que um milagre, e Arnold foi devidamente canonizado, tornando-se santo padroeiro dos produtores de cerveja. Uma história moralizadora como poucas.
O tempo passou, o culto à cerveja só fez crescer por ali e Flandres se tornou uma das regiões daquilo que hoje conhecemos como reino da Bélgica, pequeno país que nos últimos três meses conquistou um reconhecimento cultural e um feito científico. No fim de novembro de 2016, a Unesco decretou a cerveja belga como patrimônio imaterial da humanidade.
Agora, a cerveja belga também está a 39 anos-luz de Oudenburg. Em 2015, um time liderado por cientistas belgas anunciou a descoberta de três planetas orbitando uma estrela-anã, batizada de Trappist-1, pois Trappist é o nome abreviado do telescópio no Chile usado na descoberta: Transiting Planets and Planetesimals Small Telescope–South. Na última semana, mais quatro planetas entraram na lista do sistema solar, e as chances de se encontrar vida fora da Terra aumentaram. Se um dia encontrarmos extraterrestres, chamaremos eles de trapistas. Um belo jeito de homenagear uma ordem religiosa criada no século 17 que ficou famosa, justamente, pela cerveja.
A Ordem Cisterciense da Estrita Observância surgiu como um movimento reformista na abadia La Trappe (daí seu nome), na Normandia. Seus monges e freiras seguem as regras estabelecidas por São Bento de Núrsia, o fundador da ordem dos beneditinos. Vivem em comunidades agrícolas, fazem votos de pobreza, permanecem no mesmo mosteiro a vida toda e sobrevivem com o trabalho manual.
Foi nisso que muitos mosteiros se especializaram e ganharam fama mundial. Os trapistas vendem queijos, pães, vinhos, cogumelos, geleias, cosméticos, produtos de limpeza e objetos litúrgicos, entre outros produtos, que seguem normas rígidas de produção. Para ganhar o selo de autenticidade trapista, eles devem ser feitos dentro das muralhas ou nas cercanias do mosteiro e o dinheiro das vendas deve ser revertido à subsistência local e a obras sociais.
Atualmente, 11 mosteiros vendem cervejas com a grife trapista, e algumas estão entre as melhores do mundo. O trapista não é um estilo em si, mas a forma de produção e venda (ou seja, a cerveja trapista pode ser de estilos diferentes). Desses mosteiros, um está na Itália, um na Áustria, um nos Estados Unidos, dois na Holanda e seis na Bélgica, que é onde estão as trapistas mais conhecidas: Orval, Rochefort, Chimay e Westmalle. Mas há mosteiros trapistas em todos os continentes, inclusive no Brasil. Aqui, a ordem está representada em Campo do Tenente (PR) e Rio Negrinho (SC). Mas sem cerveja.
O líder do time que descobriu Trappist-1 já anunciou que está em busca de um outro sistema solar. O nome da missão é Search for Habitable Planets Eclipsing Ultracool Stars, ou Speculoos. Speculoos (ou speculaas) é um típico biscoitinho de Natal. Só que, creio eu, vai ser mais difícil batizar todos os corpos celestes a serem descobertos com a temática biscoiteira. Diferentemente da cerveja belga, cujos cerca de 1500 tipos poderiam, com mais facilidade, nomear toda a família de Trappist-1.
Um sistema solar cervejeiro. Que ótimo começo de Carnaval.