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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"
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O anti-semita que abriu caminho para o nazismo bem antes de Hitler

Hermann Ahlwardt elegeu-se para não ser preso, e foi um dos políticos que levaram o antissemitismo ao centro do poder na Alemanha.

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Atualizado em 27 nov 2020, 16h19 - Publicado em 17 out 2018, 17h38
Hermann Ahlwardt
Hermann Ahlwardt: político antisemita é saudado por simpatizantes na saída do Parlamento, em 1893. (ullstein bild Dtl./Getty Images)

 

Hermann Ahlwardt era um diretor de escola alemão de origem simples. Em 1889, desesperado com as dívidas que só aumentavam, cometeu um crime que parecia feito sob encomenda para chocar: afanou o dinheiro do cofrinho reservado para a festa de Natal das crianças da escola. Não deu certo, ele foi descoberto e demitido.

Hermann não parou por aí. Buscou alguém para culpar por tudo de ruim que acontecera a ele e aos seus. Sobrou para os judeus. No fim do século 19 e começo do 20, a comunidade judaica do Império Alemão era uma minoria que se misturava cada vez mais à população, graças à eliminação de leis que suprimiam seus direitos. O casamento civil havia sido introduzido e o número de matrimônios entre judeus e cristãos aumentava ano a ano. Uma grande mudança após séculos de isolamento. “De minoria religiosa em ostracismo, a comunidade judaica lentamente transformava-se em um dentre muitos grupos étnicos de uma sociedade cada vez mais multicultural, ao lado de minorias como poloneses, dinamarqueses, alsacianos, sorábios e outras”, escreveu o historiador britânico Richard J. Evans em A Chegada do Terceiro Reich, primeira parte de sua trilogia sobre o nazismo. “Entretanto, diferente da maioria dos outros grupos, em geral a comunidade judaica era bem-sucedida economicamente”.

Judeus estavam no lado mais progressista da economia, da sociedade e da cultura, o que os tornou um alvo fácil para apontadores de dedos. Pessoas inescrupulosas como Hermann se aproveitavam da situação e dedicavam seu discurso àqueles mais fragilizados pelos novos tempos, desempregados ou pessoas em situação econômica frágil. Eram pessoas que desejavam o retorno a um modo de vida mais regrado, seguro, ordenado e hierarquizado – “como imaginavam ter existido no passado”, frisa Evans. A comunidade judaica representava o oposto disso. Ela simbolizava a modernidade cultural e social, o que ficava ainda mais em evidência em Berlim, cidade que, em 1873, sofreu feio com uma crise econômica mundial, provocada pela falência dos investimentos nas ferrovias americanas. Muitas pequenas empresas foram atingidas e fecharam as portas em Berlim, e pregadores começaram a espalhar o boato de que a culpa era de financistas judeus.

Ao longo da década de 1880, diversos líderes antissemitas saíram do armário. Era o caso de Adolf Stöcker, que fundou o Partido Social Cristão (nada a ver com a contemporânea União Democrata-Cristã, de Angela Merkel), legenda de plataforma explicitamente contra os judeus, e de Ernst Henrici, que tinha um discurso tão virulento que seus seguidores provocaram um incêndio em uma sinagoga na Pomerânia. 

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Com essa laia Hermann começou a se envolver. Ele publicou um livro que dizia que o banqueiro judeu Gerson von Bleichröder comprara o governo alemão. A publicação continha uma série de documentos que comprovariam o envolvimento ilícito. Comprovariam, caso os documentos não tivessem a veracidade de um “É verdade esse bilete”. O próprio Hermann escreveu as supostas provas, foi desmascarado mais uma vez e acabou condenado a quatro meses de prisão.

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Caricatura de Hermann Ahlwardt, em 1892. O texto escrito no instrumento é uma referência aos motins Hep-Hep, em que houve ataques a judeus em muitas cidades, em 1819. (Reprodução/Domínio Público)

Ao sair do xadrez, ele armou mais uma. Criou um arsenal de informações falsas e sensacionalistas que dizia que um fabricante de armas judeu forneceu ao governo rifles deliberadamente danificados, o que ajudaria uma conspiração franco-judaica a derrubar as Forças Armadas alemãs. Mais uma vez, Hermann foi desmascarado e condenado. Agora, a cinco meses. Mas ele nunca cumpriu a pena.

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Em vez disso, virou deputado e ganhou imunidade.

Ao longo do processo, Hermann fez discursos em um distrito rural de Brandemburgo, bastante marcado pela crise. Acabou eleito para o Reischstag graças a uma campanha baseada em mentiras. As dificuldades econômicas pelas quais os camponeses passavam foram causadas por uma queda mundial dos preços de produtos agrícolas, mas ele jogou a culpa toda nos judeus, e a lorota pegou. Era muito mais fácil “explicar” um problema complexo concentrando a culpa em um grupo específico de pessoas do que em conceitos etéreos, intelectualizados e contraintuitivos (o que não mudou muito de lá para cá, convenhamos). Se o grupo apontado fosse uma minoria religiosa distante, que habita os grandes centros financeiros e havia séculos já era alvo de preconceito, mais fácil ainda. Um antissemitismo embalado especialmente para aqueles que se sentiam desamparados pelo governo e se viam como a alma da cultura germânica.

A plataforma racista e mentirosa garantiu o assento a Hermann no Parlamento e, de quebra, a imunidade parlamentar (que ainda existe na Alemanha). A ele se juntaram outros congressistas outsiders que se pautavam pelo antissemitismo. Na década de 1890, essa bancada chacoalhou a estrutura dos partidos tradicionais. A hegemonia do Partido Conservador nas zonas rurais estava ameaçada, e a legenda acabou por aprovar o combate “à influência judaica amplamente desagregadora e importuna em nossa vida popular”. 

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Após a virada do século, os desentendimentos entre os deputados independentes antissemitas e a reação dos partidos tradicionais acabaram por jogá-los de escanteio no jogo político. As legendas nanicas desapareceram, mas sua pauta não. O Partido de Centro, uma das mais influentes agremiações políticas do império, se engajou em uma retórica antissemita parecida. Conforme os judeus se misturavam mais à sociedade, o antissemitismo ganhou nova forma. O preconceito religioso estava fora de moda e dava lugar ao racial. Não é que os judeus, “que deixaram Jesus morrer”, tinham que ser totalmente assimilados pela cultura alemã. Agora eles deveriam ser exterminados.

Hermann seguiu uma vida turbulenta. Brigou com colegas antissemitas, foi viver nos Estados Unidos, voltou para combater a maçonaria. Os constantes problemas financeiros o levavam a tramoias e mais tramoias até que ele morreu em um acidente de trânsito em 1914. Um racista patético que ajudou a levar a semente do mal para o centro do poder na Alemanha. O resultado todos conhecemos. Veio das urnas, em 1933, com a ascensão de outra legenda até então inexpressiva: o Partido Nazista.

Ps.: em tempo, o “socialista” do nome do partido de Hitler era pegadinha para enganar os trabalhadores desatentos e insatisfeitos com tudo que estava ali. Muitos historiadores lembram que seria o mesmo que levar a sério o “democrática” do nome oficial da Coreia do Norte (República Popular Democrática da Coreia). Sites como InfoMoney, BBC, G1 e a nossa MUNDO ESTRANHO trataram o assunto.

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