Mania de foto de comida não surgiu no Instagram, mas na Renascença
O exagero e a ostentação das imagens de comida são uma tradição propagada na era de ouro da arte holandesa.
Procure #foodporn no Instagram e você verá uma avalanche de fotos de comida (123.648.136 posts quando fiz a busca, para ser mais exato). É tanta imagem que, junto com as selfies, fotos de comida são um dos fenômenos culturais contemporâneos que formam a essência dessa rede social de 700 milhões de usuários. E tome imagens de tartares, gim tônicas, guacamoles, negronis, iogurtes gregos, hambúrgueres gourmet, IPAs, kebabs, espuminhas desenhadas no café, noodles etc. etc. etc…
Sim, comida bonita, apetitosa, bem feita, aquela carinha de fim de semana rico e bem aproveitado. Justamente por isso merecem ser fotografadas e eternizadas na sua arroba. Afinal, quem vai enquadrar, fotografar, editar, escolher filtros e hashtags para o registrar o diário bandejão da firma ou o PF da esquina? Poucos, ainda mais se excluirmos os irônicos de plantão. Postamos o aspiracional, os pontos fora da curva da rotina, aquilo que queremos mostrar e guardar – tal qual os álbuns de família e porta-retratos na casa dos nossos pais e avós. Mudam as mídias, não mudam os hábitos.
Não mudam mesmo. Tanto que a #foodporn (provavelmente sem “joguinho de velha” e não em inglês) já era uma moda forte 500 anos atrás. É o que diz um levantamento da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, sobre 140 pinturas europeias e americanas, feitas entre 1500 e 2000. O título do estudo é matador: Food Art Does Not Reflect Reality (em tradução livre, “comida na arte não reflete a realidade”).
Os pesquisadores concluíram que 76% de todas as refeições retratadas continham frutas, especialmente limões. Por outro lado, só 19% tinham vegetais (alcachofra era a mais comum). Pouco mais da metade (54%) exibiam pães e doces e 39% mostravam carnes ou frutos do mar, em geral lagostas. Entre laticínios, o mais popular era o queijo.
Percebe, Evair, a petulância do artista? Alcachofras, lagostas, queijos… Ostentação pura. Um dos autores do estudo declarou que comidas aspiracionais, aquelas caras, difíceis de encontrar ou exóticas, eram retratadas para mostrar status ou bom gosto. Por mais que a arte flamenga e holandesa tenha revolucionado a pintura ao mostrar pessoas comuns e cenas cotidianas bem antes da literatura, a maioria das pinturas analisadas idealizava a mesa em suas naturezas mortas, em vez de retratar o dia a dia. Uma exposição em cartaz no Museu do Louvre explora justamente isso: o realismo holandês é menos realista do que pensamos, mais idealizado do que verdadeiro. Segundo os curadores, eram pinturas feitas para os ricos se exibirem, muitas, por exemplo, com lustres que sequer existiam nas casas das pessoas da época.
Da mesma forma que eu prefiro postar no Instagram o moscow mule que faço para minha namorada em vez da standard american lager (a pilsenzona da massa) que bebo em dias de preguiça para ver mais um 1 a 0 do Corinthians, os holandeses que tinham condições de encomendar uma pintura piravam com o limão e todo seu exotismo tropical. Mais da metade das telas da Holanda pesquisadas tinham limões. Algo semelhante aconteceu na Alemanha: a gastronomia do país pode não ser muito famosa por seus frutos do mar, mas os pintores alemães não ligavam para isso, então lagostas (como do quadro no começo do post, do alemão Jacob Marrel) eram arroz com feijão.
Quanto às alcachofras, os autores acreditam que ela era bastante popular também por questões estéticas. Por isso não há tantas galinhas, ovos e comidas mais triviais nos quadros analisados. “Essas obras mostram mais o que as pessoas queriam comer, e não o que elas de fato comiam no dia a dia”, concluíram.
Praticamente um Instagram a óleo, mas com uma “timeline” que não cansa nunca. Mesmo depois de cinco séculos.