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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"
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Como a pior guerra religiosa da Europa abriu caminho para o mundo moderno

Há 400 anos, a Defenestração de Praga foi o estopim da Guerra dos Trinta Anos, conflito que fez a Europa perceber que guerra religiosa é um péssimo negócio

Por Felipe van Deursen Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 23 Maio 2018, 13h28 - Publicado em 23 Maio 2018, 12h07
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A Segunda Defenestração de Praga, numa ilustração feita em meados do século XVII (Reprodução/Domínio Público)

O Sacro Império Romano-Germânico foi um império que se desenvolveu no fim da Idade Média europeia e era formado por uma vasta rede de principados, ducados, condados e afins com grande independência em relação ao poder central. Era uma instituição de nome estranho, convenhamos. “Romano” porque os imperadores se qualificavam como herdeiros dos césares de Roma e eram coroados pelo próprio papa. Com isso, eles se colocavam em pé de igualdade (pelo menos na intenção) com a Igreja de Roma como os reais descendentes da antiga superpotência.  Então, era uma continuação do Império Romano só nas aparências e pretensões institucionais. “Germânico” porque a Alemanha era o principal reino durante a maior parte da sua existência. Logo, ele era germânico, mas também era italiano, holandês, francês, esloveno…  De “Império” não tinha muito, pois era mais uma colcha de retalhos de povos distintos. E, de sacro, bem, não tinha nada. 

A Boêmia, que hoje é uma das regiões históricas da República Tcheca, era um dos principais reinos do Sacro Império etc. Ela se converteu numa região de maioria protestante desde os tempos de Jan Hus, reformador religioso que queimou na fogueira em 1415, 68 anos antes de Lutero nascer.  A partir do século XVI, a Boêmia passou a ser governada pelos Habsburgo, a família real católica que mandou e desmandou na Europa Central por séculos. Esses governantes não se meteram em questões religiosas, então tudo até que caminhava bem.

Em 1617, o imperador Matias elegeu seu primo Ferdinando II rei da Boêmia. Ferdinando era um devoto da Contra-Reforma, o movimento de reação da Igreja romana contra a Reforma Protestante, portanto ele não via com seus bons olhos católicos aquela curva ascendente de direitos que os pecadores boêmios hussistas (sim, o nome deriva de Hus) vinham ganhando. Em 1618, Ferdinando impediu a construção de capelas protestantes no reino, revoltando os líderes da Boêmia. No dia 23 de maio, quatro lordes católicos foram à capital do reino, Praga, para discutir a questão. Os hussitas queriam saber qual era o envolvimento do imperador no caso. Os representantes pediram um tempo para buscar uma resposta oficial, mas não o tiveram. Foram atirados pela janela ali mesmo, uma sala do terceiro andar do Castelo de Praga. Sobreviveram à queda de 21 metros. Para os católicos, foram salvos por anjos por intercessão da Virgem Maria. Para protestantes, só não morreram porque caíram sobre um monte de esterco.

O episódio seria uma anedota divertida, se não fosse um prenúncio trágico (se fosse só uma anedota nem compensaria relembrá-la exatos 400 anos depois aqui no blog, eu poderia postar qualquer dia). Mas não. Ele entrou para a história como a Segunda Defenestração de Praga (mais sobre o “segunda” depois) e funcionou, para o século XVII, mais ou menos como o atentado de Sarajevo para o século XX: o estopim para uma guerra internacional devastadora.

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Havia interesses maiores envolvidos naquela reunião na Chancelaria da Boêmia. O imperador Matias estava velho e não tinha herdeiros, e a Boêmia queria um protestante no trono do império, em Viena. Mas a coroa caiu justamente sobre a cabeça de Ferdinando, em 1619. Ao mesmo tempo, ele foi removido do poder na Boêmia e substituído por um rei calvinista. O cenário estava armado para a guerra.  

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Castelo de Praga: a janela do terceiro andar, de onde os representantes do imperador foram atirados (Divulgação/Domínio Público)

Sem apoio internacional, a Boêmia não teve muitas chances. Dois anos depois, na Batalha da Montanha Branca, os católicos devastaram o país. Camponeses morriam de fome ou fugiam, o que reduziu um bocado a população local. Nobres foram torturados e executados na Staroměstské Náměstí, a Praça da Cidade Velha, que hoje tanto encanta milhões de turistas em Praga. Outros foram empalados na torre da ponte sobre o rio Vltava, também um ponto turístico disputado e fotografado por seu visual gótico encantador. A derrota significou o início de uma nova era para a Boêmia. A cultura tcheca perdeu força para a germânica, e protestantes deram lugar a católicos, que passaram a ser maioria no país nos séculos seguintes.

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A Boêmia estava derrotada, mas a guerra ainda continuaria por muito tempo, tanto que sua duração acabou batizando-a: Guerra dos Trinta Anos — uma série de conflitos entre vários reinos europeus por motivos dinásticos, territoriais e comerciais em que a religião serviu de gatilho para opor católicos e protestantes. Foi uma guerra de terra arrasada. Os Habsburgo marchavam agora para o norte da Alemanha e a Dinamarca, para ameaçar Gustavo Adolfo, rei da Suécia e um grande estrategista militar. No meio do caminho, a fortaleza protestante de Magdeburgo foi tomada. Dos 30 mil habitantes, 5 mil ficaram de pé. Por três dias, a cidade queimou. Seis mil cadáveres foram jogados no rio a fim de limpar as ruas para a entrada triunfal do general bávaro Johannes Tilly. Os relatos da carnificina são estarrecedores, segundo History of the Thirty Years War, Volume 1, de Friedrich Schiller:

“Os vivos saindo rastejando de baixo dos mortos, crianças perambulando com gritos de cortar o coração, chamando por seus pais, e bebês ainda mamando no peito de suas mães mortas.”

Morreram 350 mil soldados e, para cada homem de batalha perdido, 20 civis iam juntos. Na Segunda Guerra Mundial essa proporção foi de apenas dois para um. A gigantesca destruição da Guerra dos Trinta Anos aconteceu porque os exércitos se alimentavam da terra. Na Europa rural de então, fazendeiros vendiam o excedente da produção em cidades-mercado. A chegada de um batalhão de arruaceiros desempregados (assim eram os exércitos) desequilibrava o cenário. Fossem amigos ou inimigos, os soldados confiscavam a comida e faziam das construções lenha para suas fogueiras. A desolação e a penúria eram as pegadas de qualquer força militar. Cidades abandonadas estavam em todo lugar. Para completar, a caça às bruxas atingiu seu pico na guerra. Afinal, queimá-las na fogueira fazia parte da mesma mentalidade das guerras religiosas. Devia-se combater o mal, fosse uma pessoa que não exercia a religião certa, fosse uma mulher excêntrica que certamente adorava o demônio. Por tudo isso, a Guerra dos Trinta Anos matou mais civis alemães que as duas guerras mundiais somadas. Ao todo, o conflito ceifou 7,5 milhões de vidas e mudou drasticamente o mapa da Europa. Entre as mudanças, a Holanda ganhou independência, a Suécia saiu fortalecida, os Habsburgo, enfraquecidos, a Igreja Católica perdeu influência no norte do continente e o feudalismo entrou em decadência.

Aquela época era o auge da loucura das guerras religiosas. Entre 1559 e 1648, quando chegou ao fim a Guerra dos Trinta Anos, 25 guerras internacionais e 26 guerras civis, pelo menos, foram motivadas por divergências de fé entre reis ou aspirantes a rei. Tanta carnificina, enfim, conduziu a um novo pensamento no continente: lutar por causa de crenças pessoais não é uma boa ideia. Naquele ano, a Paz de Vestfália, que marcou o fim da guerra, marcou também a criação dos Estados modernos. A partir de então, a noção de equilíbrio de poderes, soberania, não intervenção e respeito a territórios e fronteiras começou a se desenvolver. Isso trouxe uma consequência pacificadora ao continente. Os 5 mil baronatos e principados do século XV viraram 500 unidades políticas no século XVII, 200 no XIX e 50 no XX. Acompanhando esse quebra-cabeças com cada vez menos peças, a linha da violência no continente diminuiu. A taxa de homicídios no século XIII era de 70 a cada 100 mil pessoas; no século XV, 50 por 100 mil; em meados do século XVII, 10 por 100 mil, de acordo com Manuel Eisner, da Universidade de Chicago, no artigo “Long-Term Historical Trend in Violent Crime”. 

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Por isso a Segunda Defenestração de Praga é tão importante. Quatrocentos anos atrás, ela marcou o início da grande guerra religiosa que serviria para estancar a sangria das guerras religiosas (certo, elas continuaram existindo depois, mas em escala e frequência cada vez menores).

Mas por que “segunda”, afinal? Porque Praga tem uma relação especial com esse tipo de atentado. Em 1419, os hussitas atiraram membros do conselho da cidade da torre da prefeitura (sim, outro lindo ponto turístico) e os mataram. Por isso o episódio de 1618 foi a segunda defenestração. Houve uma terceira. Em 1948, na então Tchecoslováquia, Jan Masaryk, ministro das relações exteriores, foi encontrado morto de pijama, no pátio abaixo da janela de seu banheiro. Investigações posteriores comprovaram que ele foi atirado pela janela. “Defenestrar”, aliás, é o ato de jogar algo ou alguém pela janela. Se você é do tipo que atira ovos, panelas ou representantes de outro país pela janela, parabéns, você é um defenestrador. O termo vem de “janela” mesmo, que em francês é fenêtre, em italiano é finestra e em alemão é fenster. Nesse aniversário de 400 anos, então, não joguemos o bom senso e a tolerância religiosa pela janela. Nada de bom, produtivo e humano resulta disso.

***

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