Javé e El: os dois Deuses da Bíblia
O Deus do monoteísmo não é só grande. Ele é dois. A prova disso está bem no comecinho da Bíblia. O Gênesis deixa claro: o primeiro homem do Bíblia não foi Adão, mas outro sujeito, com outra mulher. Depois de moldar o céu, a terra, as plantas e os animais ao longo da semana, Deus, o […]
O Deus do monoteísmo não é só grande. Ele é dois.
A prova disso está bem no comecinho da Bíblia. O Gênesis deixa claro: o primeiro homem do Bíblia não foi Adão, mas outro sujeito, com outra mulher. Depois de moldar o céu, a terra, as plantas e os animais ao longo da semana, Deus, o Criador, finaliza o Universo na sexta-feira. E deixa dois gerentes a cargo da operação: um homem e uma mulher. Mas não eram Adão nem Eva. Os primeiros humanos da Bíblia são um casal sem nome, sem personalidade. Criado ao mesmo por tempo.
Não é a história clássica, com Adão forjado a partir da terra, e Eva só depois, da costela do marido. E mais importante: o Deus que faz o casal anônimo não é o Deus de Adão. É outro sujeito – ainda que se trate de um Sujeito, com “s” maiúsculo.
O fato é que existem dois deuses com “d” maiúsculo nas páginas do primeiro livro da Bíblia. E cada um cria seu próprio mundo.
O primeiro mundo, do primeiro Deus, é o do comecinho da Bíblia. O Criador ali surge num cenário vazio, pairando sobre um mar negro, no escuro. Mas não por muito tempo.
– Que haja luz – ele diz.
E houve luz.
Foi o primeiro dia da criação (um domingo, se considerarmos que a obra termina seis dias depois, e esse dia é o sábado). Na segunda-feira, vem a parte mais pesada da construção divina. O Criador fatia o mar em duas partes. Uma em cima, outra embaixo. E instala a abóboda celeste no espaço aberto entre as duas massas de água, como se fosse uma redoma de vidro. “A essa divisão Deus pôs o nome de ´céu`”, segue o Gênesis. Depois de deixar metade do oceano primordial lá em cima, amparado pela abóboda, e metade aqui embaixo, com uma novidade chamada “céu” separando uma coisa da outra, Deus encerra os trabalhos do segundo dia. Na manhã do terceiro, quando o mundo ainda é só céu e mar, ele faz brotar terra seca. Então aproveita o espaço recém-inagurado para criar os vegetais. Quarta-feira é dia de instalar o Sol, a Lua e as estrelas na redoma celeste. Exato: na visão do Gênesis, não existe um “espaço sideral”. O mundo, o Universo todo, na verdade, é só uma planície enorme com uma cúpula em cima. Além dessa abóboda, o que existe é aquele mar suspenso. E fim de papo. A própria palavra “firmamento”, que às vezes confundida como uma espécie de de coletivo para estrelas, é só uma tradução para o latim para raqiya, a palavra hebraica que significa “cúpula”, ou “domo”, e que aparece nesse trecho do Gênesis original. Nas Bíblias em Latim, raqiya virou firmamentum, no sentido de “firme” mesmo, já que essa era a palavra romana para “domo de sustentação” – a interpretação mais comum em português, de que “firmamento” vem do fato de que as estrelas parecem “fixas”, “firmes”, no céu, é só um mito liguístico.
Mas vamos voltar para o Gênesis que ainda falta muito mundo para construir. Na quinta-feira, as águas ganham a fauna marinha e o céu recebe as aves. Na sexta é a vez dos animais terrestres.
Semana praticamente encerrada e… nada de humanos. Nós chegamos só no finalzinho mesmo. É quando Deus ordena o surgimento de um homem e de uma mulher, feitos “à imagem e semelhança” dele próprio. E abençoa o casal: “Tenham muitos filhos; espalhem-se por toda a terra e dominem. E tenham poder sobre os peixes, as aves e os animais”. A Bíblia continua: “E Deus viu que tudo o que havia feito era muito bom. Assim terminou a criação do céu, da terra e de tudo o que há neles”.
E pronto. Acabou. Sem Adão, sem Eva, sem Jardim do Éden.
——–
Mas não termina aí, claro. A partir do segundo capítulo do Gênesis, o tempo rebobina. Estamos de novo num vazio. O mundo volta a ser uma folha em branco. O Deus que fez a luz e criou o mundo em sete dias não existe mais. Quem entra no lugar é a outra divindade, com um projeto diferente.
Depois de construir o céu e o chão, esse outro Deus já cria o homem de cara, bem antes de plantar a flora e produzir a fauna. Ele deixa o rapaz solteiro, inclusive, enquanto finaliza o resto do mundo. E só depois decide que não seria mal sua criatura ter uma fêmea como companheira. Aí sim: é a história que todo mundo conhece: Adão, Eva, Éden, Serpente…. O que nem todo mundo sabe é que os dois Deuses envolvidos em cada uma das histórias da criação têm até nomes diferentes.
Para quem lê a Bíblia em português, ou em qualquer outra língua que não seja o hebraico, é impossível perceber. Mas no idioma original está nítido. Ali, o Deus da primeira narrativa da criação se chama “Elohim”. Na segunda história, a que tem Adão e Eva, o nome dele é outro: “Javé”. O texto número um chama Deus de “Elohim” 35 vezes. O seguinte, de “Javé”. Onze vezes. E sem jamais voltar a usar “Elohim”. Em português Só que as traduções da Bíblia não usam os nomes hebraicos. “Elohim” virou “Deus”. E “Javé” foi traduzido como “Senhor”.
E a mudança de nome não é uma alteração cosmética. A maior parte dos pesquisadores bíblicos concorda: cada história foi escrita por um autor. O que indica isso são duas ciências: a arqueologia e a linguística. Na ponto da arqueologia, está claro hoje que os proto-israelitas, os povos que deram origem aos autores da Bíblia, reverenciavam El, o deus supremo da região onde viviam. E “El”, na Bíblia, virou “Elohim”. Engraçado que “Elohim” é o plural de “El”. Porque plural? Não existe uma explicação. O fato é que a evolução das línguas está cheia de exemplos em que o plural se tornou sinônimo do singular – “calça” e “calças”, por exemplo, são duas formas de ser referir ao singular daquilo que veste as nossas pernas (outro caso, mais célebre, é o da palavra “chopps”, que já foi sinônimo de “chopp”, até cair em desuso). “Elohim, em suma, virou sinônimo de “El”.
A linguística também é útil para dissecar a origem do outro deus, Javé. A leitura do texto original da Bíblia, em hebraico, revela quais são os trechos mais antigos. Natural. O livro foi escrito ao longo de 500 anos. Se fosse hoje, seria como se um livro iniciado quando Cabral aportou na Bahia só ganhasse sua versão final hoje. Os trechos compostos há 5 séculos soariam como Camões. Os do século 19, como Machado de Assis (mais provavelmente como Osório Duque Estrada…). Daria para dizer o quã antiga é cada parte do livro. Com a Bíblia acontece a mesma coisa. E aí que vem o pulo do gato. Os trechos mais antigos ali, feitos por volta de 1.200 a.C., dizem que “Javé” é nome de um deus “que veio de Edom e de Teiman”. Edom ficava onde hoje está o sul da Jordânia. Teiman, mais longe, na atual Arábia Saudita. Diante disso, a conclusão dos especialistas mais citados de hoje, como Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, e Bart Ehrman, da Universidade da Carolina do Norte, é uma só: “Javé” é uma divindade importada pelos proto-israelitas. Algum povo vindo do sul, e que venerava um certo Javé, misturou-se aos ancestrais dos autores da Bíblia. Tudo isso por volta de 1.200 a.C., a transição da Idade do Bronze para a Idade do Ferro, e, como mostra a arquelogia, um período de reviravoltas climáticas que causou secas violentas, fome e, por consequência, gandes migrações humanas. A viagem dos adoradores de Javé até Canaã, onde hoje ficam Israel e Palestina, teria sido uma dessas grandes migrações – outra hipótese é que a história registrada no livro do Êxodo seja uma espécie de romantização desse período histórico de grandes migrações.
Seja como for, o fato é que os editores da Bíblia, os israelitas de 500 a.C., foram respeitosos com os textos antigos que tinham como fonte. Tão respeitosos que El e Javé aparecem no texto com personalidades nem distintas: enquanto Elohim é uma figura onipotente e onipresente, que age dando instruções para o Universo (“Que haja luz!”), Javé é uma divindade mais humana. Ele não fica o tempo todo distante, no céu. É um personagem pé-no-chão, que está mais para um síndico de meia-idade: faz caminhadas pelo Jardim do Eden à tarde, checando se está tudo indo bem no Paraíso (ao cruzar com Adão num desses passeios e ver que ele não está pelado, como deveria, percebe que existe algo de podre no reino da Criação).
O ponto é que El e Javé eram dois deuses tão distintos quanto Ganesh, o elefante hindu da sorte, e Odin, o chefe do panteão escandinavo – são divindades diferentes, cada uma criada por um povo específico. A dupla acabaria fundida numa única figura: justamente aquela que os ocidentais hoje chamam de “Deus”, e os muçulmanos de “Alá”. O nome da divindade única do Islã, vale lembrar, é outra variação de “El”, mas criada em outro tempo e outro espaço – a Arábia tribal onde, no século 7, nasceria Maomé, o homem que reinterpretou o Deus bíblico a seu modo, tal como Jesus de Nazaré havia feito 600 anos antes.
El, Javé, Alá, Deus… Não importa. Todas essas palavras atestam uma coisa só: deuses são como os homens. Deuses se transformam. Se adaptam. Evoluem, enfim. Junto com seus criadores.