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Quando a vida começa?

Aborto é assassinato? Pesquisar células-tronco é brincar com pequenos seres humanos? Manipular embriões é crime?

Por Eliza Muto e Leandro Narloch
Atualizado em 1 dez 2016, 14h18 - Publicado em 31 out 2005, 22h00

Ao lado de “paz” e “amor”, “vida” é uma daquelas poucas palavras capazes de provocar unanimidade. Quem pode ser contra? “Amor” e “paz”, no entanto, são conceitos cuja definição não desperta polêmica. Com “vida” é diferente. Ninguém é capaz sequer de explicar o que é vida. Só no Aurélio há 18 tentativas. Por mais de 2 mil anos, essa indefinição foi motivo de inquietação só para poucos filósofos. Em geral, nos contentamos em falar que vida é vida e pronto. Hoje, porém, a ciência mexe fundo neste conceito. Expressões como “proveta” e “manipulação genética” estão cada vez mais presentes no cotidiano. E a pergunta sobre o que é vida, e quando ela começa, virou uma polêmica que vai guiar boa parte da sociedade em que vamos viver. A resposta sobre a origem de um indivíduo será decisiva para determinar se aborto é crime ou não. E se é ético manipular embriões humanos em busca da cura para doenças como o mal de Alzheimer e deficiências físicas.

“Ter embriões estocados em laboratório é um evento tão novo e diferente para a humanidade que ainda não tivemos tempo de amadurecer essa idéia”, diz José Roberto Goldim, professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Biologicamente, é inegável que a formação de um novo ser, com um novo código genético, começa no momento da união do óvulo com o espermatozóide. Mas há pelo menos 19 formas médicas para decidir quando reconhecer esse embrião como uma pessoa.”

Vida é quando acontece a fecundação? Isso significa dizer que cerca de metade dos seres humanos morre nos primeiros dias, já que é muito comum o embrião não conseguir se fixar na parede do útero, sendo expelido naturalmente pelo corpo. Vida é o oposto de morte – e então ela se inicia quando começam as atividades cerebrais, por volta do 2º mês de gestação? Vida é um coração batendo, um feto com formas humanas, um bebê dando os primeiros gritos na sala de parto? Ou ela começa apenas quando a criança se reconhece como indivíduo, lá pelos 2 anos de idade? Para a Igreja, vida é o encontro de um óvulo e um espermatozóide e, portanto, não há qualquer diferença entre um zigoto de 3 dias, um feto de 9 meses e um homem de 90 anos. Mas então por que não existem velórios com coroas de flores, orações e pessoas de luto para embriões que morrem nos primeiros dias de gravidez? Essa é uma discussão cheia de contradições e respostas diferentes. Um debate em que a medicina fica mais perto de ser uma ciência humana do que biológica e em que frequentemente se encontram cientistas usando argumentos religiosos e religiosos se valendo de argumentos científicos. Por isso, o melhor a fazer é começar pela história de como a idéia de vida apareceu entre nós.

A história da vida

Saber onde começa a vida é uma pergunta antiga. Tão velha quanto a arte de perguntar – a questão despertou o interesse, por exemplo, do grego Platão, um dos pais da filosofia. Em seu livro República, Platão defendeu a interrupção da gestação em todas as mulheres que engravidassem após os 40 anos. Por trás da afirmação estava a idéia de que casais deveriam gerar filhos para o Estado durante um determinado período. Mas quando a mulher chegasse a idade avançada, essa função cessava e a indicação era clara: o aborto. Para Platão, não havia problema ético algum nesse ato. Ele acreditava que a alma entrava no corpo apenas no momento do nascimento.

As idéias do filósofo grego repercutiram durante séculos. Estavam por trás de alguns conceitos que nortearam a ciência na Roma antiga, onde a interrupção da gravidez era considerada legal e moralmente aceitável. Sêneca, um dos filósofos mais importantes da época, contou que era comum mulheres induzirem o aborto com o objetivo de preservar a beleza do corpo. Além disso, quando um habitante de Roma se opunha ao aborto era para obedecer à vontade do pai, que não queria ser privado de um filho a quem ele tinha direito.

A tolerância ao aborto não queria dizer que as sociedades clássicas estavam livres de polêmicas semelhantes às que enfrentamos hoje. Contemporâneo e pupilo de Platão, Aristóteles afirmava que o feto tinha, sim, vida. E estabelecia até a data do início: o primeiro movimento no útero materno. No feto do sexo masculino, essa manifestação aconteceria no 40º dia de gestação. No feminino, apenas no 90º dia – Aristóteles acreditava que as mulheres eram física e intelectualmente inferiores aos homens e, por isso, se desenvolviam mais lentamente. Como naquela época não era possível determinar o sexo do feto, o pensamento aristotélico defendia que o aborto deveria ser permitido apenas até o 40º dia da gestação.

A teoria do grego Aristóteles sobreviveu cristianismo adentro. Foi encampada por teólogos fundamentais do catolicismo, como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, e acabou alçada a tese oficial da Igreja para o surgimento da vida. E assim foi por um bom tempo – até o ano de 1588, quando o papa Sixto 5º condenou a interrupção da gravidez, sob pena de excomunhão. Nascia aí a condenação do Vaticano ao aborto, você deve estar pensando. Errado. O sucessor de Sixto, Gregório 9º, voltou atrás na lei e determinou que o embrião não formado não poderia ser considerado ser humano e, portanto, abortar era diferente de cometer um homicídio. Essa visão perdurou até 1869, no papado de Pio 9º, quando a Igreja novamente mudou de posição. Foi a solução encontrada para responder à pergunta que até hoje perturba: quando começa a vida? Como cientistas e teólogos não conseguiam concordar sobre o momento exato, Pio 9º decidiu que o correto seria não correr riscos e proteger o ser humano a partir da hipótese mais precoce, ou seja, a da concepção na união do óvulo com o espermatozóide.

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A opinião atual do Vaticano sobre o aborto, no entanto, só seria consolidada com a decisão dos teólogos de que o primeiro instante de vida ocorre no momento da concepção, e que, portanto, o zigoto deveria ser considerado um ser humano independente de seus pais. “A vida, desde o momento de sua concepção no útero materno, possui essencialmente o mesmo valor e merece respeito como em qualquer estágio da existência. É inadmissível a sua interrupção”, afirma dom Rafael Llano Cifuentes, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

O catolicismo é das únicas grandes religiões do planeta a afirmar que a vida começa no momento da fecundação e a equiparar qualquer aborto ao homicídio. O judaísmo e o budismo, por exemplo, admitem a interrupção da gravidez em casos como o de risco de vida para a mãe. Isso mostra que a idéia de vida e a importância que damos a ela varia de acordo com culturas e épocas. Até séculos atrás, eram apenas as crenças religiosas e hábitos culturais que davam as respostas a esse debate cheio de possibilidades. Hoje, a ciência tem muito mais a dizer sobre o início da vida.

A ciência explica

O astrônomo Galileu Galilei (1554-1642) passou a vida fugindo da Igreja por causa de seus estudos de astronomia. Ironicamente, sem uma de suas invenções – o telescópio, fundamental para a criação do microscópio –, a Igreja não teria como fundamentar a tese de que a vida começa já na união do óvulo com o espermatozóide. Foi somente no século 17, após a invenção do aparelho, que os cientistas começaram a entender melhor o segredo da vida. Até então, ninguém sabia que o sêmen carregava espermatozóides. Mais tarde, por volta de 1870, os pesquisadores comprovaram que aqueles espermatozóides corriam até o óvulo, o fecundavam e, 9 meses depois, você sabe. Foi uma descoberta revolucionária. Fez os cientistas e religiosos da época deduzir que a vida começa com a criação de um indivíduo geneticamente único, ou seja, no momento da fertilização. É quando os genes originários de duas fontes se combinam para formar um indivíduo único com um conjunto diferente de genes.

Que bom se fosse tão simples assim. Hoje sabemos que não existe um momento único em que acontece a fecundação. O encontro do óvulo com o espermatozóide não é instantâneo. Em um primeiro momento, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando sua cauda para fora. Horas depois, o espermatozóide já está dentro do óvulo, mas os dois ainda são coisas distintas. “Atualmente, os pesquisadores preferem enxergar a fertilização como um processo que ocorre em um período de 12 a 24 horas”, afirma o biólogo americano Scott Gilbert, no livro Biologia do Desenvolvimento. Além disso, são necessárias outras 24 horas para que os cromossomos contidos no espermatozóide se encontrem com os cromossomos do óvulo.

Quando a fecundação termina, temos um novo ser, certo? Também não é bem assim. A teoria da fecundação como início de vida sofre um abalo quando se leva em consideração que o embrião pode dar origem a dois ou mais embriões até 14 ou 15 dias após a fertilização. Como uma pessoa pode surgir na fecundação se depois ela se transforma em 2 ou 3 indivíduos? E tem mais complicação. É bem provável que o embrião nunca passe de um amontoado de células. Depois de fecundado numa das trompas, ele precisa percorrer um longo caminho até se fixar na parede do útero. Estima-se que mais de 50% dos óvulos fertilizados não tenham sucesso nessa missão e sejam abortados espontaneamente, expelidos com a menstruação.

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Além dessa visão conhecida como “genética”, há pelo menos outras 4 grandes correntes científicas que apontam uma linha divisória para o início da vida. Uma delas estabelece que a vida humana se origina na gastrulação – estágio que ocorre no início da 3ª semana de gravidez, depois que o embrião, formado por 3 camadas distintas de células, chega ao útero da mãe. Nesse ponto, o embrião, que é menor que uma cabeça de alfinete, é um indivíduo único que não pode mais dar origem a duas ou mais pessoas. Ou seja, a partir desse momento, ele seria um ser humano.

Com base nessa visão, muitos médicos e ativistas defendem o uso da pílula do dia seguinte, medicação que dificulta o encontro do espermatozóide com o óvulo ou, caso a fecundação tenha ocorrido, provoca descamações no útero que impedem a fixação do zigoto. Para os que brigam pelo o direito do embrião à vida, a pílula do dia seguinte equivale a uma arma carregada.

Para complicar ainda mais, há uma terceira corrente científica defendendo que para saber o que é vida, basta entender o que é morte. E países como o Brasil e os EUA definem a morte como a ausência de ondas cerebrais. A vida começaria, portanto, com o aparecimento dos primeiros sinais de atividade cerebral. E quando eles surgem? Bem, isso é outra polêmica. Existem duas hipóteses para a resposta. A primeira diz que já na 8ª semana de gravidez o embrião – do tamanho de uma jabuticaba – possui versões primitivas de todos os sistemas de órgãos básicos do corpo humano, incluindo o sistema nervoso. Na 5ª semana, os primeiros neurônios começam a aparecer; na 6ª semana, as primeiras sinapses podem ser reconhecidas; e com 7,5 semanas o embrião apresenta os primeiros reflexos em resposta a estímulos. Assim, na 8ª semana, o feto – que já tem as feições faciais mais ou menos definidas, com mãos, pés e dedinhos – tem um circuito básico de 3 neurônios, a base de um sistema nervoso necessário para o pensamento racional.

A segunda hipótese aponta para a 20ª semana, quando a mulher consegue sentir os primeiros movimentos do feto, capaz de se sentar de pernas cruzadas, chutar, dar cotoveladas e até fazer caretas. É nessa fase que o tálamo, a central de distribuição de sinais sensoriais dentro do cérebro, está pronto. Se a menor dessas previsões, a de 8 semanas, for a correta, mais da metade dos abortos feitos nos EUA não interrompem vidas. Segundo o instituto americano Allan Guttmacher, ONG especializada em estudos sobre o aborto, 59% dos abortos legais acontecem antes da 9ª semana.

Apesar da discordância em relação ao momento exato do início da vida humana, os defensores da visão neurológica querem dizer a mesma coisa: somente quando as primeiras conexões neurais são estabelecidas no córtex cerebral do feto ele se torna um ser humano. Depois, a formação dessas vias neurais resultará na aquisição da “humanidade”. E essa opinião também é partilhada por alguns teólogos cristãos, como Joseph Fletcher, um dos pioneiros no campo da bioética nos EUA. “Fletcher acreditava que, para se falar em ser humano, é preciso se falar em critérios de humanidade, como autoconsciência, comunicação, expressão da subjetividade e racionalidade”, diz o filósofo e teólogo João Batistiolle, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Para o filósofo Peter Singer, da Universidade de Princeton, nos EUA, levado às últimas consequências o critério da autoconsciência pode ser usado para considerar o infanticídio moralmente aceitável em algumas situações. Segundo ele, é lícito exterminar a vida de um embrião, feto, feto sem cérebro ou até de um recém-nascido extremamente debilitado se levarmos em conta que o bebê não têm consciência de si, sentido de futuro ou capacidade de se relacionar com os demais. “Se o feto não tem o mesmo direito à vida que a pessoa, é possível que o bebê recém-nascido também não tenha”, afirma o filósofo australiano, que atraiu a ira de grupos pró-vida que o acusam de ser nazista, embora 3 de seus avós tenham morrido no holocausto. “Pior seria prolongar a vida de um recém-nascido com deficiências graves e condenado a uma vida repleta de sofrimento.”

É o caso de bebês com anencefalia, que não têm o cérebro completamente formado. Dos fetos anencéfalos que nascem vivos, 98% morrem na 1ª semana. Os outros, nas semanas ou meses seguintes. Nesse caso, é melhor prolongar a existência do bebê ou abortar para evitar o sofrimento da criança? “Provavelmente, a vida de um chimpanzé normal vale mais a pena que a de uma pessoa nessa condição. Assim, poderia dizer que há circunstâncias em que seria mais grave tirar a vida de um não-humano que de um humano”, alega Singer. A tese é recebida com desprezo no campo adversário. “Há testemunhos entre pais de pacientes desenganados pela medicina de que é possível viver uma positividade mesmo dentro da situação de sofrimento”, afirma Dalton Luiz de Paula Ramos, professor da USP e coordenador do Projeto Ciências da Vida, da PUC-SP. Em julho de 2004, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu liminar liberando o aborto de fetos anencéfalos no país. A decisão final da Justiça, que legalizou definitivamente o aborto de anencéfalos no Brasil, saiu em abril de 2012.

A cura dentro de nós

Perto da deficiência física, porém, o nascimento de fetos anencéfalos é um problema pequeno. Segundo o IBGE, existem 937 mil brasileiros paraplégicos, tetraplégicos ou com um lado do corpo paralisado. Sem conseguir se mexer, muitos acabam morrendo por causa das escaras, feridas na pele criadas pela falta de circulação do sangue. Foram elas que mataram, em outubro de ano passado, o ator americano Christopher Reeve, célebre no papel do Super-Homem e ativista em prol dos estudos com células-tronco. Desde a década de 1980, esse tipo de células vem dando esperança a quem antes pensava que nunca voltaria a andar. Mas o futuro dessas pesquisas também está ligado à polêmica sobre onde começa a vida humana.

Do mesmo modo que as primeiras células que formam o embrião humano, as células-tronco são como curingas: ainda não foram diferenciadas para formar os tecidos que compõem o organismo. Podem se transformar em células ósseas, renais, neurônios, dependendo da necessidade e do poder de regeneração de cada órgão. Mesmo depois do nascimento, o corpo conserva essas células, sobretudo no cordão umbilical e na medula óssea. Injetando ou incentivando a migração de células-tronco adultas da medula para o coração, por exemplo, os cientistas estão conseguindo fazer o principal órgão humano se regenerar. Em pouco mais de um mês, pacientes com insuficiência cardíaca provocada por infartos ganham vida nova. A idéia é que a técnica das células-tronco, eleita pela revista Science como a mais importante pesquisa biológica do milênio, possa curar problemas renais, hepáticos, lesões da medula espinhal, mal de Alzheimer e até possibilitem a criação de órgãos em laboratório.

Até aí, nenhum conflito ético. Em 1998, porém, descobriu-se que as células-tronco mais potentes, capazes de se transformar em qualquer um dos 216 tecidos humanos e se replicar com grande velocidade, são as originais, o resultado da fecundação do óvulo com o espermatozóide. Os cientistas utilizam embriões com 3 a 4 dias de desenvolvimento (e entre 16 e 32 células), que sobram do processo de fertilização in vitro em clínicas especializadas. No laboratório, as células-tronco são retiradas num processo que provoca a destruição do embrião. Mas, se a vida começa na fecundação, os cientistas estariam lidando, em seus tubos de ensaio, com seres humanos vivos. O mesmo problema ético acontece com a inseminação artificial, que cria diversos embriões em laboratório e depois os descarta ou os congela. Não só os religiosos consideram essas técnicas um absurdo.

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“Assim como não dá para dizer que matar um jovem é melhor que matar um adulto, não há diferença de dignidade entre um embrião e um feto de 6 meses”, afirma o professor Dalton, da USP. Um embrião, apesar de ser um amontoado de meia dúzia de células, muito menos complexo que uma mosca, carrega toda a informação genética necessária para a formação de um indivíduo. Nos seus 23 cromossomos paternos e 23 maternos, estão os 30 mil genes que determinarão os traços, a cor dos olhos, da pele, do cabelo, além de doenças como a síndrome de Down. Pensando nisso, países como a França chegaram a proibir pesquisas com células-tronco embrionárias. Hoje, os franceses permitem esses estudos, assim como a maioria dos outros países europeus e do Brasil. Desde março de 2005, a Lei de Biossegurança permite o uso de embriões descartados por clínicas de fertilização e congelados há pelo menos 3 anos – o prazo foi definido para evitar a produção de embriões exclusivamente para estudos. Há no país 20 mil embriões em condições de pesquisa dentro da lei. Mas uma ação de inconstitucionalidade movida pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles coloca o assunto em xeque.

Quer dizer então que o governo brasileiro proíbe o aborto mas permite a manipulação de embriões humanos vivos? Depende do que você considera humanos vivos. “A vida começou há milhões de anos e cada um de nós é fruto contínuo daquele processo”, afirma Fermin Roland Schramm, presidente da Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro (Sbrio). “A pergunta pertinente não é quando começa a vida, mas quando começa uma vida relevante do ponto de vista ético. Um embrião num tubo de ensaio é apenas uma possibilidade de vida, assim como eu sou um morto em potencial, mas ainda não estou morto.” Como logo após a fertilização o zigoto tem grande probabilidade de não se tornar uma gravidez e ainda pode se dividir, alguns cientistas preferem chamar o embrião que ainda não se fixou no útero de “pré-embrião”. “A ética considera relações entre seres, entre um ‘eu’ e um ‘tu’. É difícil considerar um embrião um ‘tu’”, diz Fermin. “Já quando ele começa a estabelecer uma relação com a mãe, a interrupção do processo passa a ser mais problemática do ponto de vista moral.”

Outro ponto a favor dos que estão mexendo com os embriões é que novidades da ciência sempre assustaram. Foi assim com a fertilização artificial, com o transplante de coração e até com a transfusão de sangue. Hoje, esses avanços são essenciais para a saúde pública. “A única certeza que temos em relação às células-tronco adultas, encontradas no cordão umbilical, é que elas podem se diferenciar em células sanguíneas”, afirma a geneticista Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da USP, considerada a principal voz da classe científica na aprovação do dispositivo da Lei de Biossegurança que trata da pesquisa com células-tronco embrionárias. “Nunca vamos descobrir o potencial das células-tronco embrionárias se não pudermos estudá-las.”

Polêmicas à parte, às células-tronco embrionárias mostram que a solução para os males que perturbam o ser humano pode estar em nós mesmos. Ao contrário da discussão sobre o aborto, a polêmica das células-tronco surgiu com o esforço de fazer aleijados levantar e andar, doentes renais ganhar órgãos novos, cardíacos ter o coração reforçado. É um jeito de usar a essência da vida para encarar o maior inimigo da ciência: a morte, que também está no grupo das palavras que provocam unaniminade. É impossível gostar dela. O problema é que também não sabemos exatamente o que é morte. É quando o coração pára? Quando o cérebro deixa de funcionar? Cenas para a próxima reportagem.

FECUNDAÇÃO

Espermatozóides tentam penetrar no óvulo. Quando um deles vence a disputa, ainda são necessárias 24 horas até que as duas estruturas se fundam num único zigoto.

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40 HORAS

Depois da fecundação, o número de células do zigoto dobra a cada 20 horas.

14 DIAS

O embrião chega à parede do útero. A menstruação pára e a mãe começa a suspeitar que está grávida.

4ª SEMANA

Uma versão rudimentar do que um dia será o coração começa a bater. O embrião mede cerca de 4 milímetros, o tamanho de um feijão.

6ª SEMANA

A aparência humana se define com o aparecimento dos primeiros órgãos. Já é possível reconhecer onde estão coração, cérebro, braços e pernas. O tamanho chega a 1 centímetro.

10ª SEMANA

O feto apresenta ondas cerebrais, podendo responder a estímulos, e ganha unhas. O fígado começa a liberar a bílis. Para muitos cientistas, neste estágio ele já é capaz de sentir dor.

17ª SEMANA

A mãe começa a sentir movimentos do feto, que já tem músculos e ossos. Nas próximas 3 semanas ele passará de 8,5 para 15 centímetros de tamanho.

5 MESES

O pulmão está pronto – é a última estrutura vital a se desenvolver. A partir daqui, o feto tem chances de sobreviver fora do útero.

Fonte: José Roberto Goldim (Ufrgs)

5 respostas da ciência

1. Visão genética

A vida humana começa na fertilização, quando espematozóide e óvulo se encontram e combinam seus genes para formar um indivíduo com um conjunto genético único. Assim é criado um novo indivíduo, um ser humano com direitos iguais aos de qualquer outro. É também a opinião oficial da Igreja Católica.

2. Visão embriológica

A vida começa na 3ª semana de gravidez, quando é estabelecida a individualidade humana. Isso porque até 12 dias após a fecundação o embrião ainda é capaz de se dividir e dar origem a duas ou mais pessoas. É essa idéia que justifica o uso da pílula do dia seguinte e contraceptivos administrados nas duas primeiras semanas de gravidez.

3. Visão neurológica

O mesmo princípio da morte vale para a vida. Ou seja, se a vida termina quando cessa a atividade elétrica no cérebro, ela começa quando o feto apresenta atividade cerebral igual à de uma pessoa. O problema é que essa data não é consensual . Alguns cientistas dizem haver esses sinais cerebrais já na 8ª semana. Outros, na 20ª .

4. Visão ecológica

A capacidade de sobreviver fora do útero é que faz do feto um ser independente e determina o início da vida. Médicos consideram que um bebê prematuro só se mantém vivo se tiver pulmões prontos, o que acontece entre a 20ª e a 24ª semana de gravidez. Foi o critério adotado pela Suprema Corte dos EUA na decisão que autorizou o direito do aborto.

5. Visão metabólica

Afirma que a discussão sobre o começo da vida humana é irrelevante, uma vez que não existe um momento único no qual a vida tem início. Para essa corrente, espermatozóides e óvulos são tão vivos quanto qualquer pessoa. Além disso, o desenvolvimento de uma criança é um processo contínuo e não deve ter um marco inaugural.

5 respostas da religião

1. Catolicismo

A vida começa na concepção, quando o óvulo é fertilizado formando um ser humano pleno e não é um ser humano em potencial. Por mais de uma vez, o papa Bento 16 reafirmou a posição da Igreja contra o aborto e a manipulação de embriões. Segundo o papa, o ato de “negar o dom da vida, de suprimir ou manipular a vida que nasce é contrário ao amor humano.”

2. Judaísmo

“A vida começa apenas no 40º dia, quando acreditamos que o feto começa a adquirir forma humana”, diz o rabino Shamai, de São Paulo. “Antes disso, a interrupção da gravidez não é considerada homicídio.” Dessa forma, o judaísmo permite a pesquisa com células-tronco e o aborto quando a gravidez envolve risco de vida para a mãe ou resulta de estupro.

3. Islamismo

O início da vida acontece quando a alma é soprada por Alá no feto, cerca de 120 dias após a fecundação. Mas há estudiosos que acreditam que a vida tem início na concepção. Os muçulmanos condenam o aborto, mas muitos aceitam a prática principalmente quando há risco para a vida da mãe. E tendem a apoiar o estudo com células-tronco embrionárias.

4. Budismo

A vida é um processo contínuo e ininterrupto. Não começa na união de óvulo e espermatozóide, mas está presente em tudo o que existe – nossos pais e avós, as plantas, os animais e até a água. No budismo, os seres humanos são apenas uma forma de vida que depende de várias outras. Entre as correntes buditas, não há consenso sobre aborto e pesquisas com embriões.

5. Hinduísmo

Alma e matéria se encontram na fecundação e é aí que começa a vida. E como o embrião possui uma alma, deve ser tratado como humano. Na questão do aborto, hindus escolhem a ação menos prejudicial a todos os envolvidos: a mãe, o pai, o feto e a sociedade. Assim, em geral se opõem à interrupção da gravidez, menos em casos que colocam em risco a vida da mãe.

5 respostas da lei

1. Brasil

Aqui, só há três situações em que o aborto é permitido: em casos de estupro, quando a gravidez implica risco para a gestante, ou em caso de fetos anencéfalos.

2. Eua

O aborto é permitido nos EUA desde 1973, quando a Suprema Corte reconheceu que o aborto é um direito garantido pela Constituição americana. Pode-se interromper a gravidez até a 24ª semana de gestação – na época em que a lei foi promulgada, era esse o estágio mínimo de desenvolvimento que um feto precisava para sobreviver fora do útero.

3. Japão

Foi um dos primeiros países a legalizar o aborto, em 1948. A prática se tornou o método anticoncepcional favorito das japonesas – em 1955 foram realizados 1 170 000 abortos contra 1 731 000 nascimentos. Hoje, o aborto é legal em caso de estupro, risco físico ou econômico à mulher, mas apenas até a 21ª semana – atual limite mínimo para o feto sobreviver fora do útero.

4. França

Desde 1975 as francesas podem fazer abortos até a 12ª semana de gravidez. Após esse período, a gestação só pode ser interrompida se dois médicos certificarem que a saúde da mulher está em perigo ou que o feto tem problema grave de saúde . Em 1988, a França foi o primeiro país a legalizar o uso da pílula do aborto RU-486, que pode ser utilizada até a 7ª semana de gestação.

5. Chile

Proíbe o aborto em qualquer circunstância. A prática é considerada ilegal mesmo nos casos que colocam em risco a vida da mulher. Em casos de gravidez ectópica – quando o embrião se aloja fora do útero, geralmente nas trompas – a lei exige que a gravidez se desenvolva até a ruptura da trompa, colocando em risco a saúde da mulher.

Para saber mais

O Futuro da Natureza Humana – Jürgen Habermas, Martins Fontes, 2004

Bioética – Marco Segre e Cláudio Cohen (org.), Edusp, 2002

Vida Ética – Peter Singer, Ediouro, 2002

Biologia do Desenvolvimento – Scott F. Gilbert, Sociedade Brasileira de Genética, 1994

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