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“Todos nós somos um pouco psicopatas”

O neurologista Ricardo Oliveira-Souza se dedica há 30 anos à pesquisa de cérebros psicopatas. Ele conta como o "radar moral" de pessoas normais oscila o tempo todo - sem chegar aos extremos

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 25 fev 2011, 22h00

Mariana Sgarioni

Ninguém é totalmente livre de uma atitude psicopata aqui, outra acolá. Se você às vezes mente para levar vantagem, ou se um dia resolveu não ajudar uma senhora a atravessar a rua, vá lá. Deve ser só um pouquinho psicopata. O problema acontece quando essas atitudes se tornam um padrão recorrente.

Essa é a opinião de Ricardo de Oliveira-Souza, um dos neurologistas brasileiros que mais pesquisam a morfologia do cérebro psicopata. Ele explica que todos nós temos na cabeça uma espécie de detector que emite julgamentos morais o tempo inteiro. De vez em quando, escorregamos e caímos mais para o lado psicopata, o egoísta. A boa notícia é que, segundo ele, às vezes também pendemos para o outro extremo, dos chamados exemplares morais. Essa é a atual fonte de pesquisa de Souza, que quer saber como os circuitos oscilam tanto – e onde o transtorno aparece.

Quem é o oposto do psicopata?
Nos primeiros estudos com ressonância magnética, demonstramos, entre outras coisas, que todos nós temos um radar, chamado detector moral. Ele fica ligado o tempo todo e nos faz emitir julgamentos morais sobre tudo aquilo que vemos, de forma natural. Um segundo estudo que fizemos nos EUA foi para pontuar o grau desses julgamentos. Imagine uma linha onde, em uma ponta, está o antissocial, que é o psicopata. A maioria da população oscila no meio, a cada momento pendendo para um lado. Na outra ponta está o altruísta, o pró-social. Pode-se dizer que cerca de 5% da população em geral são exemplares morais. É esse cérebro que agora nós estamos estudando.

Como é essa pesquisa?
Escolhemos cerca de 50 pessoas normais, que foram submetidas a ressonância magnética de alta precisão. Enquanto seu cérebro era monitorado, elas souberam que tinham à sua disposição US$ 120 para fazer o que quisessem: ficar com o dinheiro ou doar a entidades assistenciais, que eram mostradas a elas por meio de imagens. O resultado foi que a maioria reteve algum valor. Ninguém doou tudo, mas também ninguém ficou com tudo. Talvez um psicopata ficasse. Mas o interessante foi que, toda vez que uma pessoa ficava com o dinheiro, a área de recompensa de seu cérebro, o prosencéfalo basal, era ativada. Já ao doar, essa área também acendia, além de uma outra, chamada córtex subgenual, que é a área da empatia, que só aparece quando prestamos um benefício ao outro. Ela nos oferece uma sensação de prazer, de bem-estar. A descoberta traz uma questão interessante: será que somos altruístas para beneficiar o outro ou a nós mesmos? Será que não estamos apenas querendo nos sentir melhor?

Ou seja: seríamos todos, no fundo, egoístas?
Pode até ser, mas o resultado não invalida o bem que foi feito ao próximo. Essa é uma questão que nós, cientistas, deixamos para a filosofia. A verdade é que, morfologicamente, o cérebro demonstra ativar áreas de bem-estar quando fazemos coisas boas a alguém. O que nos leva a questionar qual a verdadeira motivação de fazer o bem.

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No limite seríamos então todos ainda mais psicopatas do que imaginamos ser?
Só se for neste ponto [risos]. As lesões cerebrais do psicopata envolvem mais do que isso e definitivamente não têm cura. Trabalhamos agora para a deteçcão cada vez mais precoce.

E para o tratamento e para a cura? A ciência traz alguma novidade?
Os fatores de risco são muito mais precoces do que se poderia imaginar. O que quer que seja que atue no cérebro, isso acontece antes dos 3 anos de idade. Portanto, qualquer tratamento futuro terá que ser feito cedo, muito cedo. Não adianta ficar gastando dinheiro com essas pessoas depois de uma certa idade. O Hare [psicólogo canadense Robert Hare, especialista mundial no assunto] agora trabalha nesse sentido. Além disso, ele publicou recentemente um trabalho que seria um tratamento de psicopatas com sistemas de recompensa por fichas que ele mesmo inventou. O sujeito ganhava uns bônus se passasse um certo período sem cometer nenhuma transgressão. Mas ainda são poucos os resultados. Por enquanto, a reversão do quadro é dada como quase impossível a não ser em casos raríssimos. Tem um caso que eu acompanho em que o sujeito era um bandido matador, psicopata grave. Ele sofreu um acidente, bateu a cabeça, e deixou de ser agressivo. Continua com uma personalidade fria, mas não transgride mais. Um outro psicopata que eu também acompanho deu um tiro na própria cabeça, sobreviveu, e parece estar curado totalmente da personalidade antissocial. Foi uma autolobotomia.


Para Freud, o cirurgião é um sádico que viu uma saída valorizada para seu gosto por sangue. O psicopata pode também canalizar suas potencialidades para algo aceito?

Não existe psicopata que não cause danos. Exis­tem, sim, aqueles bem-sucedidos. Por exemplo: como você acha que o psicopata sobreviveu à seleção natural? Qual a vantagem biológica que ele tem? Sua personalidade fria e sem medo favorece o desbravamento, por exemplo. O Velho Oeste americano só pode ter sido desbravado por psicopatas. Os bandeirantes que vieram ao Brasil também, como o Fernão Dias. Eles têm essa vantagem biológica, não têm medo.

Se os psicopatas não têm medo, como aderem à hierarquia de uma prisão?
Eles têm outro tipo de medo, que é o da punição. Por isso eles vivem em sociedade, e muitos até respeitam as leis. Eles têm medo de ser presos, medo de se prejudicar.

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Isso pode torná-lo menos imoral?
É importante distinguir conteúdo de capacidade moral. O conteúdo moral é cultural. Já a capacidade moral é genética. É como com a língua: todo ser humano normal nasce com uma modelagem neuronal de áreas de linguagem. Você já nasce pronto para adquirir uma linguagem. Agora, se você vai falar inglês, francês ou alemão, vai depender da cultura em que estiver inserido.

 

Ricardo Oliveira-Souza

• Carioca, 52 anos, é formado em medicina pela UFRJ e estuda psicopatia há 30 anos.

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• É pesquisador do Centro de Neurociências da rede Labs-D’Or e da UFRJ, além de trabalhar em colaboração com Robert Hare desde 2004.

• Não atende psicopatas em seu consultório. “O máximo que eu faço é aconselhar as famílias a se proteger.”

 

 

 

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