Sexo e gênero têm influências distintas no cérebro, sugere estudo
Pesquisa pode colaborar para compreensão de doenças que variam de acordo com o sexo e promover tratamentos mais adequados.
Sexo e gênero são frequentemente confundidos em conversas cotidianas, ou tratados como um só. Mas um novo estudo norte-americano com quase 5 mil crianças de 9 e 10 anos descobriu que esses dois conceitos (cujas diferenças explicaremos adiante) são mapeados em partes bem distintas do cérebro.
Na verdade, até a neurociência e a medicina costumam agrupar os pacientes por sexo. O estudo, publicado na semana passada na revista Science Advances, aponta que essa prática pode fazer com que os cientistas ignorem a influência de variáveis como o gênero na saúde e no comportamento humano.
Em entrevista ao site Science, Elvisha Dhamala, neurocientista e principal autora do estudo, aponta que a descoberta de que o sexo e o gênero influenciam o cérebro de maneiras diferentes “poderia mudar a forma como fazemos ciência”.
Dani Bassett, bioengenheira e coautora do estudo, acrescenta que “estudo abre caminho para uma abordagem mais inclusiva da neurociência, que busca compreender a anatomia, a fisiologia e os circuitos cerebrais em toda a variação natural dos sexos e gêneros humanos”, disse.
Vamos voltar ao início: sexo é a classificação biológica que é atribuída a um bebê no nascimento. Essa classificação leva em conta vários fatores como anatomia e genética, desde a genitália até o conjunto de cromossomos.
Mas nem sempre a diferenciação sexual é preto no branco: há, por exemplo, pessoas interssexo, cujas características não permitem encaixá-las apenas como “femininas” ou “masculinas”, que é a classificação mais comum. Entender isso é importante para considerar que o sexo não determina completamente a saúde ou o perfil de determinado indivíduo.
O sexo também não determina o gênero com o qual a pessoa vai se identificar. Nessa pesquisa, os cientistas classificam gênero enquanto o conjunto de características, sentimentos e comportamentos de um indivíduo.
Esses dois fatores também não influenciam, necessariamente, a orientação sexual das pessoas, ou seja, se sentem atração por pessoas do mesmo gênero ou de gêneros diferentes.
A compreensão sobre o próprio gênero pode mudar ao longo da vida, e, como o estudo foi feito com crianças antes mesmo da puberdade, os cientistas consideram que a percepção delas sobre o próprio gênero ainda está pouco desenvolvida. Por isso, além de conversar com as crianças, o estudo entrevistou também os pais e cuidadores sobre comportamentos de brincadeiras e relatos de disforia de gênero das crianças.
A disforia de gênero é uma angústia importante clinicamente, causada porque o senso de gênero de uma pessoa não corresponde ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Longe de querer definir o gênero de crianças, a pesquisa usou esses dados principalmente para entender qual o impacto dessas características nas redes neurais de cada indivíduo.
“Muitos trabalhos foram realizados mostrando que há mudanças específicas no cérebro que podem ser medidas em grupos, como observadores de pássaros, jogadores de xadrez ou até mesmo motoristas de táxi, que refletem sua especialização e suas experiências”, disse Dhamala em entrevista ao site AAAS. “Da mesma forma, como indivíduos, somos especialistas em nós mesmos e em nossos gêneros. Portanto, faz sentido que o gênero também seja mapeado em nossos cérebros.”
Como o estudo foi feito
Para separar os efeitos do sexo sobre a atividade cerebral dos efeitos do gênero, Dhamala e seus colegas analisaram dados de imagens cerebrais coletados como parte do ABCD Study, o maior estudo de longo prazo sobre desenvolvimento cerebral e saúde infantil nos EUA. A equipe analisou exames de ressonância magnética funcional (fMRI) de 4.727 crianças de 9 e 10 anos de idade.
As áreas e redes cerebrais que seguiam um padrão vinculado ao gênero eram distintas daquelas associadas ao sexo. Os resultados pareciam mostrar que o sexo influenciava regiões do cérebro envolvidas nos processamentos visual e sensorial e no controle motor, além de algumas regiões envolvidas na função executiva, que permite que um indivíduo organize e integre informações ao longo do tempo.
O gênero parece influenciar algumas redes juntamente às influenciadas pelo sexo, mas também parece ter um efeito mais amplo no cérebro. Seu impacto pode ser detectado em diferentes redes cerebrais envolvidas na atenção, cognição social e processamento emocional.
Para o futuro, a equipe diz que será necessário expandir o estudo para outras faixas etárias, especialmente após a puberdade. E como as expectativas e normas de gênero são diferentes em cada cultura, os autores também ressaltam que seus resultados podem não se aplicar para pessoas de fora dos Estados Unidos.
“Não é que o sexo e o gênero necessariamente determinem as taxas de doenças, mas as culturas nas quais as pessoas estão inseridas também podem influenciar a probabilidade de elas desenvolverem ou não uma determinada doença”, disse o coautor do estudo, o psiquiatra Avram Holmes em entrevista à CNN. “Portanto, os tipos de pressões ambientais a que uma criança é submetida ao longo do desenvolvimento podem aumentar ou diminuir o risco de contrair uma doença, independentemente da biologia cerebral inicial.”
Os pesquisadores esperam que suas descobertas ressaltem a importância de considerar o sexo e o gênero separadamente em contextos médicos para garantir a igualdade de acesso aos melhores resultados de tratamento.