Abelhas de aluguel
Apicultores brasileiros começam a descobrir a polinização por colméias, a técnica para elevar a produção agrícola que tomou conta dos Estados Unidos e da Europa.
Paulo D’Amaro
Elas são confinadas aos milhares em pequenas casas de madeira, ao redor das grandes plantações. Trabalham 365 dias por ano, sem direito a férias nem fins de semana, e não recebem nada em troca. Um típico caso de escravidão rural, que já se transformou numa prática perfeitamente legal e recomendável na Europa e nos Estados Unidos: o uso das abelhas para melhorar a produção agrícola. Não é novidade que esses insetos ajudam a transferir o pólen — elemento reprodutor masculino dos vegetais — de uma flor para outra. Mas, nas últimas décadas, cientistas e agricultores têm feito desses parceiros naturais uma eficiente mão-de-obra para polinizar lavouras e aumentar a produtividade e a qualidade de frutas, legumes e grãos.
Em muitos países do mundo, apicultura hoje não é mais uma atividade secundária, quase sempre de pequeno porte, e muito menos sinônimo de mel, que virou um subproduto. A grande meta dos apiários agora é a polinização, um negócio altamente lucrativo. Nos Estados Unidos, campeão mundial em pesquisas e no aproveitamento de abelhas na agricultura, os números são reveladores. Em 1988, enquanto a produção de mel acrescentou mirrados 150 milhões de dólares à economia americana, o aumento da produção de alimentos com o auxílio dessas prestativas operárias gerou um lucro adicional de 20 bilhões de dólares para o setor agrícola. Atualmente, mais de 2 000 apicultores vivem de alugar suas colméias, naquele país. No Brasil, o hábito de recorrer a elas para polinizar lavouras não alça vôos tão altos. Pelo menos no campo, porque nas universidades o trabalho das abelhas vem sendo pesquisado há muito tempo. A professora paulista Regina Helena Nogueira Couto, por exemplo, pesquisa há dezenove anos a genética e o modo de vida desses insetos. No campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Jaboticabal, SP, ela lida diariamente com todo tipo de espécies: da Apis mellifera — a mais comum em todo o mundo — até a dócil jantaí (Tetragonisca angustula) ou a nordestina uruçu (Melipona scutellaris), cujo mel é um orgulho regional. “São muitos os insetos que coletam néctar e polinizam as flores. A vantagem das abelhas é que elas são mais eficientes e podem ser controladas”, explica Regina Helena.
Dependendo do tipo de plantação, uma colméia, com cerca de 60 000 abelhas, produz de 1 a 10 quilos de mel por semana. O que significa pelo menos 1,5 milhão de visitas coletivas às flores em busca da saborosa solução de água, açúcar e sais minerais do néctar, usado para produzir mel e enfrentar o inverno. Nesse vai e vem, elas levam outra riqueza: grãos de pólen, que as flores depositam estrategicamente em pequenas hastes, chamadas anteras, para lambuzar as visitantes. Carregadas com o precioso produto, voam de flor em flor, espalhando os grãos da fecundidade. As abelhas também se aproveitam desse alimento, rico em proteínas, para abastecer suas larvas. Já os apicultores, sobretudo na Europa, vendem o pólen em tabletes doces — com preço amargo — para atletas ou chefes de cozinha, que o empregam como tempero. Mas não é só a busca frenética do néctar ou do pólen que faz das abelhas melhores polinizadoras do que borboletas, besouros ou moscas. Elas vencem os rivais em eficiência por uma outra característica, batizada pelos cientistas de “fidelidade alimentícia”. Enquanto a borboleta abandona facilmente um laranjal para se embrenhar no mato atrás de flores silvestres, a abelha só deixa a plantação quando não há mais flores a visitar.
Pesquisas feitas na Unesp de Jaboticabal provaram que a produção de laranjas pode crescer em 30% com ajuda dessas laboriosas trabalhadoras. A experiência é simples. Na florada, em setembro, as colméias são espalhadas pelo pomar. Metade das laranjeiras, porém, é envolta por telas e, no final do verão, com as árvores carregadas, as frutas são contadas para medir a produtividade em cada lado. “Além do aumento da quantidade, a qualidade das frutas melhora”, acrescenta a professora e pesquisadora Regina Helena, de Jaboticabal. As laranjas da Unesp, por exemplo, ficaram 10% maiores e com mais 20% de vitamina C graças às persistentes caçadoras de néctar, que fecundam o máximo possível de óvulos na flor e fazem com que o fruto se desenvolva por inteiro. Quando o agente polinizador é o vento ou são insetos mais preguiçosos, isso fica difícil.Nos Estados Unidos, o recurso às abelhas é tão intenso que, só na Califórnia, existem cerca de 1,4 milhão de caixas — como são chamadas as colméias artificiais — espalhadas entre laranjais e outras culturas. “É mais do que toda a população de Apis no Brasil”, compara Helmuth Wiese, autor de vários livros sobre o assunto e presidente da Confederação dos Apicultores de Santa Catarina, o Estado com maior número desses profissionais empenhados na polinização.
Em 1984, Wiese participou de uma experiência que elevou em 50% a produção de maçãs catarinense. Desde então, houve uma adesão em massa à apicultura e hoje existem mais de 50 000 colméias de aluguel só em Fraiburgo. Os catarinenses detêm a liderança disparada na cultura de maçãs, com 217 000 toneladas em 1991, quase o triplo dos vizinhos gaúchos, responsáveis por 85 000 toneladas. “O problema dos agricultores de outros Estados é que eles não percebem que é possível usar abelhas sem risco”, diz Wiese.
O risco a que ele se refere são as dolorosas picadas que elas distribuem quando molestadas. Um medo que cresceu a partir de 1957 com o acidente no apiário do cientista Warwick Kerr, um dos maiores especialistas em abelhas do mundo. Vários enxames da agressiva Apis mellifera scutellata — a famosa africana — importados para experiências genéticas, escaparam do seu laboratório em Rio Claro, SP, provocando uma catástrofe. As africanas cruzaram com a mansa Apis mellifera ligustica, italiana, e surgiu uma variedade intermediária, boa para fazer mel, boa para polinizar e, infelizmente, boa também para distribuir ferroadas. As africanizadas avançaram rumo ao norte à velocidade de 200 quilômetros por ano, chegaram aos Estados Unidos no fim da década de 80 e transtornaram a apicultura do continente com sua ferocidade.
Foi preciso reformular as técnicas para lidar com as colméias. Os apicultores passaram a vestir roupas protetoras — na Europa, ainda hoje elas são desnecessárias — e usar um fumigador que evita problemas enquanto se mexe nas caixas: a fumaça impede que as abelhas captem a ordem de ataque transmitida pelo odor de substâncias chamadas ferormônios. Criaram-se também regras de convivência pacífica. “Durante a florada da maçã, quando são instaladas as colméias, o pomar é cercado e sinalizado”, conta Helmuth Wiese. Com isso, os trabalhadores sabem onde podem andar e os acidentes são raros.
Os cientistas, no entanto, não se conformaram com a paz armada. O próprio Warwick correu atrás do prejuízo e, no final dos anos 60, importou 25 000 rainhas italianas para distribuir gratuitamente aos apiários paulistas. A idéia até que era boa — frear a africanização —, não tivesse o feitiço se voltado contra o feiticeiro: as abelhas perderam agressividade e uma onda de roubos de colméias invadiu o Estado. “Os apicultores acabaram optando pelas violentas, que se defendiam de tudo, inclusive dos ladrões”, lembra Kerr.Hoje, com as abelhas mudando seu endereço para campos cultivados e pomares onde circula muita gente, as pesquisas para a docilização das africanizadas e o uso de espécies mais pacatas foram retomados. “Por que não experimentar novos tipos, como a jataí, na polinização?”, pergunta a pesquisadora Fátima do Rosário Naschenveng Knoll, catarinense de origem austríaca que dá aulas no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e agora está batendo em retirada para o interior. A partir de setembro, ela continua suas pesquisas com abelhas no tranqüilo campus da Unesp em Bauru.
A jataí, por sinal, combina com a tranqüilidade interiorana: mansa e sem ferrão, cor marrom avermelhada e mel de sabor mais suave, suas colméias proliferaram em São Paulo, mas foram quase dizimadas pelos desmatamentos. Além disso, ela é vítima da própria mansidão. “A ausência do ferrão as torna indefesas contra inimigos naturais” revela Fátima Knoll Entre eles os ácaros, que mutilam e matam as larvas, e formigas capazes de destruir uma colméia em apenas uma semana.
O melhoramento genético da Apis mellifera é outra arma para reduzir, de geração em geração, a agressividade dos enxames. Aliás, por um mistério não decifrado, isso também ocorre naturalmente, com o passar dos anos. Um bom exemplo é a colméia que se instalou numa parede do Instituto de Biociências da USP há mais de vinte anos. “No começo, as pessoas tinham que desviar o caminho para não serem atacadas. Hoje, os estudantes param para bater papo embaixo dela”, conta a professora que está partindo para Bauru.
Em laboratório, a fúria é debelada com a docilização genética através das rainhas. O processo começa com a coleta do sêmen dos zangões de colméias amistosas: as rainhas são então inseminadas artificialmente para gerar crias menos agressivas. Curioso é o método para detectar comunidades dóceis. Como nem sempre é possível indentificá-las pela simples observação, o professor Antônio Carlos Stort, da Unesp, criou um dispositivo infalível: uma esfera de feltro preta, pendurada perto da saída de cada caixa. Como as abelhas associam o preto a inimigos, elas atacam o feltro. Para saber quem está a fim de briga e quem prefere a paz, basta contar os ferrões trincados na bolinha.Os apicultores modernos costumam ficar de olho nesses avanços e logo os aplicam na prática. “Sempre que preciso criar uma nova caixa, compro rainhas docilizadas e climatizadas”, revela João Alberto Kors, um jovem engenheiro eletrônico que divide seu tempo entre uma empresa de informática e outra de produção de mel e polinização. Descendente de holandeses, ele tem centenas de colméias em Holambra, no interior de São Paulo, famosa por suas flores.
As rainhas compradas por Kors são criadas na Estação Experimental da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, em Pindamonhangaba. A tal climatização é um processo parecido com a docilização, só que selecionando zangões de regiões com clima semelhante ao desejado pelo agricultor. “Com tanto calor, eu jamais poderia usar abelhas gaúchas aqui”, explica Kors.Menos perigosas e adaptadas às condições climáticas, as caixas de João Alberto Kors têm passeado por variadas lavouras de Holambra. “Em agosto elas vão para a florada do limão. De setembro a dezembro, para a da laranja e depois ficam nos bosques de eucalipto até fevereiro. Dai até o fim de maio, chega a vez das flores silvestres.”A experiência acabou trazendo para a região uma nova cultura, o níger, uma oleaginosa africana com o providencial dom de florescer em junho. “Sem ele, não dava para manter vivas tantas abeIhas no inverno”, observa Kors. Um casamento perfeito. Desde que as colméias foram espalhadas em meio à planta africana, há quatro anos, a área cultivada quadruplicou. Não que as abelhas sozinhas tenham causado esse aumento. Mas elas abriram os olhos dos agricultores para um novo negócio. Sua semente tem bons preços na Europa como ração para pássaros e fonte de óleo comestível. Em 1991, foram exportadas 30 toneladas, “número que deve ser superado este ano”, prevê Kors. Com isso, ele se aproxima cada dia mais dos apicultores europeus e americanos, para quem hoje o mel é apenas um detalhe.
Para saber mais:
( SUPER número 4, ano 6)
Doçuras na casca da árvore
Uma forma curiosa de produzir mel e manter as colméias bem alimentadas durante o rigor do inverno está tomando conta do vale do Rio Canoas. em Santa Catarina. A novidade é um mel extrafloral. tido como iguaria na Europa, mas praticamente desconhecido pelos brasileiros. mesmo aqueles que lidam com apiários. ”As abelhas não dependem de floradas quando o frio chega. mas da casca da bracatinga uma árvore leguminosa adorada por parasitas sugadores de seiva chamados cochonilhas”, explica o agrônomo e apicultor Carlos Alberto dos Santos, um paulista há dez anos radicado naquele Estado do Sul. As cochonilhas excretam uma solução densa repleta de nutrientes, que é recolhida pelas abelhas da região e transformada em um mel escuro. de sabor pouco doce, com uma concentração de minerais em média cinco vezes maior do que a do mel comum.Conhecido pelos alemães como wald honig (mel da floresta), ele assegura a sobrevivência das colméias catarinenses entre maio e setembro, quando as flores disponíveis para a coleta de néctar tornam-se raras. Isso obriga as abelhas a hibernarem até a primavera. torcendo para que o mel estocado no outono seja suficiente. Quando não é, a fome se transforma num verdadeiro desastre para os apicultores, dizimando boa parte da população de suas colméias. Para evitar o prejuízo, alguns improvisam, suprindo seus exércitos de abelhas com um xarope à base de água, açúcar e mel. Outros procuram convencer agricultores a semear culturas que floresçam no inverno, como o níger. que está sendo plantado em Holambra. no interior de São Paulo. “Mas para os premiados pela sorte. como nós, basta ter uma boa quantidade de árvores de bracatinga por perto”, brinca Carlos Alberto.
A operária da Europa
Por Ivan Martins, de Londres
Ela já duplicou a produção inglesa de tomates em estufas e é alvo da atenção dos pesquisadores europeus nos últimos anos. Trata-se da Bombus terrestris, uma abelha peluda, barulhenta e grande — cerca de duas vezes e meia maior que a Apis mellifera. ”EIas trabalham mais rápido, por mais tempo e em temperaturas mais frias”, diz a cientista inglesa Sarah Corbet, da Universidade de Cambridge. Segundo ela, além de mais veloz que a abelha comum, a Bombus pode levar muito mais pólen em seu corpo repleto de pêlos. “Uma centena faz o trabalho de mil Apis.”Só que as vantagens ficam por aí. O uso dessa abelha enfrenta obstáculos difíceis de transpor. O primeiro é o da sobrevivência no inverno. Como seu mel é de baixa qualidade, ele dura poucos dias e não pode ser estocada. Com isso, as colméias apesar de pequenas e com poucas centenas de operárias sucumbem à fome nessa estação “Apenas a rainha sobrevive até a primavera, escondida em buracos que ela cava no solo”, conta Sarah Corbet. Além disso, ao contrário das comuns, as Bombus são difíceis de reproduzir em cativeiro.Mas o interesse em sua capacidade polinizadora é tão grande que técnicas sofisticadas foram desenvolvidas para mantê-las em atividade. Entre elas. o congelamento das abelhas no estágio de larva, segredo monopolizado pelos holandeses: os agricultores recebem caixas com as pupas resfriadas, deixam descongelar na plantação e logo as abelhas estão voando pelas flores.No Brasil, uma variedade parecida é encontrada nas regiões de clima temperado. É a Bombu morio, conhecida como mamangava. Apesar de menos agressiva que as outras, a mamangava é temida por muitos. “Sua ferroada é mais dolorida e pode se repetir várias vezes, pois ela não solta o ferrão como as abelhas comuns”, adverte a professora Regina Helena Nogueira Couto, da Unesp de Jaboticabal.