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Os genes não definem nosso destino

Há décadas cientistas tentam entender o que define cada um de nós: se é o DNA ou a criação. Mas novas descobertas mostram que o debate é inútil.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 21 fev 2011, 22h00

DESTINO EXISTE?
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Jim Springer e Jim Lewis eram gêmeos idênticos americanos que foram adotados por famílias diferentes ao nascer. Passaram a infância e a juventude separados, casaram e descasaram, e se reencontraram aos 39 anos de idade – apenas para descobrir que eram realmente iguaizinhos. “Ambos se casaram com mulheres chamadas Linda, divorciaram-se e casaram-se pela segunda vez com mulheres chamadas Betty. Um deu a seu filho o nome de James Allan, o outro deu a seu filho o nome de James Alan, e ambos tiveram cães chamados Toy”, observou Thomas Bouchard, psicólogo britânico da Universidade de Minnesota, em 1979, quando ele entrou em contato com os Jims. Essa história inacreditável faz parte do Projeto dos Gêmeos de Minnesota, organizado por Bouchard, que há décadas estuda centenas de gêmeos para estabelecer elos entre traços psicológicos e a genética. (Nesse caso, gêmeos idênticos separados ao nascimento são os favoritos dos pesquisadores: como eles compartilham os mesmos genes, mas não foram criados juntos, é mais fácil separar o que vem do DNA e o que vem do ambiente.) Além dos dois Jims, o estudo encontrou diversos exemplos impressionantes. Como o par de gêmeos que foi criado separadamente, mas lia revistas de trás para a frente, dava descarga antes de usar o banheiro, e gostava de espirrar em elevadores. Ou as duas gêmeas que entravam no mar de costas e apenas até a altura dos joelhos. Lendo essas anedotas, fica impossível não acreditar que o destino está no nosso DNA – e que as decisões que tomamos ao longo da vida pouco importam, frente ao poder dos genes. Mas será que somos realmente tão impotentes em determinar nosso futuro?

Durante muito tempo, ninguém duvidou da força do DNA, e o objetivo da ciência era desvendar a função de cada um dos nossos 25 mil genes. Os estudos de gêmeos foram muito importantes nesse processo. Descobriu-se até que decisões que pareciam pessoais ou sociais podiam vir da genética. As taxas de divórcio, por exemplo, são muito parecidas entre gêmeos idênticos (o que indica, por exemplo, que quem tem pouca paciência para discussões ou quem trai o cônjuge pode ter um irmão gêmeo que se comporte igual). Mas já foram comprovadas similaridades em dezenas de características, da religiosidade ao QI. “Normalmente, dizemos que aproximadamente metade da variação em inteligência, personalidade e resultados de vida é hereditária”, afirma Steven Pinker, psicólogo evolucionista da Universidade Harvard.

Ainda assim, é claro que não há possibilidade alguma de genes estimularem alguém a se casar com pessoas chamadas Linda ou Betty, por exemplo. “Em termos estatísticos, numa lista de 1 000 atributos – marca e modelo de carro, programa de televisão favorito etc. – de quaisquer duas pessoas, é inevitável encontrar várias coincidências”, aponta James Watson, codescobridor do DNA e primeiro líder do Projeto Genoma Humano. E mais: novas descobertas da genética mostram que os genes são muito mais flexíveis do que se imaginava – e que as decisões que tomamos, e nosso livre-arbítrio, felizmente têm um papel muito maior do que se esperava.

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O mundo em você

Överkalix é uma cidadezinha de 946 habitantes no norte da Suécia. O vilarejo vive do comércio local e muitos dos trabalhadores são empregados em indústrias de telecomunicação. Foi nesse fim de mundo que um grupo de pesquisadores notou um fenômeno estranho, que veio a público em 2001, e que está mudando a forma como os geneticistas entendem a sua área. Eles perceberam que os registros históricos indicavam um impacto ambiental violento na moldagem de seus habitantes. Depois de passarem por períodos de escassez de alimentos, os överkalixenhos começaram a viver mais. Até aí, tudo bem, não fosse por um detalhe surpreendente: os dias de fome aconteceram no século 19 – e a mudança na longevidade aconteceu com os avós dos atuais habitantes. Ou seja, alguma coisa na falta de comida fez com que as pes-soas vivessem por mais tempo e ainda passassem essas características para as gerações seguintes! Seria um indício de o ambiente alterando os genes e perpe-tuando-os em seus descendentes?

Como isso seria possível? Esse fenômeno lembra uma antiga teoria da evolução, anterior à de Darwin, concebida por Jean-Baptiste Lamarck. É aquela, tão ridicularizada por professores de escola, que sugeria que as girafas ficaram com o pescoço comprido porque suas ancestrais se esticavam para alcançar os galhos mais altos das árvores. Ao estender seu pescoço, elas então passariam a característica a seus descendentes. Hoje sabemos que a evolução não funciona assim, mas pelo processo de seleção natural, descrito por Darwin. No entanto, os dados de Överkalix parecem dar razão a Lamarck, não a Darwin: de algum modo, os avós dos habitantes foram modificados pelo ambiente e transmitiram a mudança à posteridade. Entra, então, em cena o novíssimo campo da epigenética, onde ambiente e genética trabalham juntos para decidir o seu destino. Os cientistas estão mostrando que o funcionamento dos genes do DNA não depende somente das letrinhas inscritas nele.

Algumas outras substâncias podem se conectar ou desconectar dos cromossomos e, assim, mudar a maneira como eles se expressam. É como se o seu genoma fosse o hardware e a epigenética o software: você já vem ao mundo com um aparelho prontinho (seu corpo com o DNA), mas o ambiente pode instalar e desinstalar programas que mudam quem você é. Essa revelação explicaria diversas perguntas ainda não respondidas. Seria possível entender como diferentes células do corpo humano podem cumprir funções distintas, apesar de todas terem o DNA idêntico. Também ajuda a explicar como um bebê tem alguns genes ativos que vieram do pai e outros da mãe. E permite, enfim, entender o que aconteceu em Överkalix. A epigenética é um campo que está ainda na sua infância. Afinal de contas, estudar efeitos que combinam fatores ambientais e diversas gerações humanas não é coisa simples de ser feita. É preciso observar décadas de dados, com pelo menos algumas dezenas de famílias participantes, para obter resultados confiáveis. Por isso, o caso sueco é um dos poucos exemplos bem documentados. Entretanto, os estudos com animais também permitem a detecção do destino agindo. Estresse, por exemplo. Ficou demonstrado em experimentos que ele pode ser herdado pelos filhos, uma vez que os pais adquirem o hábito. E essa conclusão veio de um experimento curioso realizado por cientistas da Universidade de Linköping, na Suécia. Tudo começou quando eles decidiram perturbar a paz de um grupo de galinhas.

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Normalmente, esses animais se guiam pela luz do Sol para se alimentar. Quando é dia, comem sem parar; à noite, descansam. Mas os pesquisadores resolveram expor as galinhas a padrões aleatórios de luz e escuridão. Estressadas, as bichinhas começaram a ser mais seletivas na alimentação, optando apenas por comidas nutritivas – afinal, não sabiam quando poderiam comer novamente. O curioso é que esse mesmo comportamento foi herdado por seus pintinhos, muito embora eles tenham passado a vida com os padrões regulares de luz solar. E não é que eles aprenderam esse padrão de comportamento com os pais. Os cientistas tomaram o cuidado de deixar que os pintinhos fossem criados longe das mães genéticas, e as adotivas que chocaram seus ovos não tiveram essa experiência estressante nem exibiam esse comportamento. Se o mesmo valer para humanos (e não há por que pensar que não), você pode ser particularmente nervosinho se seus pais passaram por muito estresse quando jovens.

Outros estudos, feitos com camundongos, demonstraram impactos igualmente inquietantes. Uma pesquisa da Universidade do Alabama, nos EUA, mostrou que mães roedoras que eram submetidas a estresse, e por isso se tornavam negligentes com seus filhotes, viam mais tarde sua cria maltratando os netinhos. Novamente, para eliminar o fator “aprendizado”, os cientistas experimentaram deixar que os filhotes fossem criados por mães adotivas amorosas. Mesmo assim, eles continuaram sendo maus pais quando adultos. Claramente o estresse sobre as mães mudou algo que foi transmitido hereditariamente aos filhos – e os tornou igualmente estressados. Com os humanos, há um estudo parecido, que mostra a má influência dos pais sobre os filhos. Uma pesquisa mostra que homens que começaram a fumar antes da puberdade (por volta dos 11 anos) têm risco muito maior de ter filhos obesos na vida adulta. Ou seja, um erro ainda durante a infância pode determinar a vida do filho que nem nasceu.

Mas esses são só os primeiros exemplos. Conforme as pesquisas forem evoluindo, e os geneticistas se aprofundarem no conhecimento do epigenoma humano, com toda a sua riqueza de variações, a tendência é descobrirmos mais e mais casos do tipo. Finalmente encerraremos essa falsa disputa entre natureza e criação na concepção do ser humano. Com essa descoberta, fica claro que o seu destino não está só nos seus genes mas também no seu estilo de vida, no ambiente em que você vive e na maneira como você lida com seus problemas.

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Gene como a gente

O DNA é cheio de contradições.

Durante muito tempo achava-se que cada gene trazia a receita para uma proteína que, por sua vez, cumpria uma função específica (cor dos cabelo, por exemplo). Hoje, já se sabe que pedaços diferentes de genes se combinam para produzir novas proteínas: não dá mais para falar em um só gene da inteligência. Agora, então, que sabemos que o ambiente influencia a expressão do DNA, a ciência vai ter que voltar à sala de aula.

Para saber mais
DNA: O Segredo da Vida
James Watson, Cia. das Letras, 2005.

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Tábula Rasa
Steven Pinker, Cia. das Letras, 2004.

Evolution in Four Dimensions
Eva Jablonka e Marion Lamb, MIT Press, 2005.

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