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Os abusos da indústria farmacêutica

Fraudes. Testes em crianças e mendigos. Exploração em países pobres. Conheça o lado sinistro do desenvolvimento de novos remédios.

Por Salvador Nogueira
12 jun 2020, 11h40
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Todo estudo clínico de uma nova droga precisa passar por quatro ou cinco fases, numeradas de zero a 4. E, mesmo antes disso, estudos pré-clínicos, feitos em células cultivadas em laboratório (os testes in vitro) e em animais (os in vivo), precisam ter demonstrado que a substância pode realmente produzir alguns dos efeitos ambicionados. Só aí começa o estudo com humanos.

A fase zero envolve no máximo dez voluntários, para verificar – a partir de pequenas dosagens – as reações que a substância produz no organismo. Serve basicamente para ver o que a droga faz e como e quando ela sai do corpo. Essa etapa não costuma mais ser feita hoje em dia. Os estudos geralmente começam na fase 1. Ela envolve entre 20 e 100 voluntários, e seu objetivo é unicamente testar a segurança do medicamento: verificar se ele pode ser tomado por indivíduos saudáveis em doses variadas sem que isso cause efeitos intoleráveis ao organismo.

Na fase 2, o número de voluntários cresce e fica entre 100 e 300. Agora o objetivo é verificar se, além de segura, a droga é eficaz (funciona diretamente para combater a doença) ou eficiente (altera de algum modo o padrão clínico do paciente), dependendo do objetivo estabelecido. Então chegamos à fase crucial, a de número 3. Em escala maior, ela envolve geralmente entre 1 e 2 mil pacientes e é a primeira etapa que combina a ação de pesquisadores com médicos – será, com efeito, a primeira tentativa, ainda experimental, de tratar pacientes com o novo medicamento. Muitas vezes os resultados da nova droga são comparados aos obtidos por outros medicamentos já existentes. É a hora da verdade para o novo remédio.

Por fim, a fase 4 é o acompanhamento que se faz após a entrada da droga no mercado. O laboratório farmacêutico recebe autorização para comercializar o novo remédio, e aí todos os pacientes que fizerem uso dele se tornam, potencialmente, cobaias para que seja possível avaliar os efeitos de longo prazo de seu uso, em tese indetectáveis nas fases anteriores.

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Para esses testes clínicos, usa-se em geral o procedimento duplo-cego, em que os voluntários são divididos entre dois grupos: enquanto um toma um placebo (uma substância inócua, só para causar a impressão psicológica de estar sendo tratado) ou um medicamento já aprovado, o outro testa a nova droga. Nem os pesquisadores, nem os pacientes sabem quem está tomando o quê, e por isso o estudo é chamado de duplo-cego – a ideia é evitar que qualquer viés recaia sobre os resultados. Parece ótimo, não?

Pois é, mas o diabo está nos detalhes – em como são realizados esses estudos. Nos Estados Unidos, até a década de 1970, eles costumavam ser feitos em prisioneiros – sobretudo os testes de fase 1, que pedem indivíduos saudáveis. Depois, foram transferidos a hospitais universitários e clínicas com vínculos acadêmicos, controladas por pesquisadores.

Mas, a partir dos anos 1990, a pressão para que os estudos avançassem mais depressa e a crescente complexidade dos experimentos envolvidos fizeram com que uma indústria paralela de testes, controlada pelas empresas farmacêuticas, emergisse. Nos EUA, em 1991, 80% dos estudos de novas drogas eram conduzidos por centros de saúde acadêmicos. Isso mudou completamente. Em 2004, 70% dos testes estavam a cargo de empresas terceirizadas.

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O laboratório Eli Lilly pagava mendigos para participar de seus testes clínicos. (F. CHAVEROU/Getty Images)

Um problema é que os pesquisadores que realizam esses estudos em companhias privadas não têm nenhum tipo de ambição acadêmica – eles não irão se destacar pelos resultados obtidos e nem mesmo pelo protocolo de testes, que foi desenvolvido pela indústria e será meramente executado por eles. Não há, em essência, uma reputação científica pessoal a ser protegida. A única motivação desses funcionários – e das companhias que os contratam – é fazer seu cliente feliz. E as gigantes farmacêuticas ficam felizes quando seus medicamentos vão bem.

Outro problema é que esse esquema criou um ambiente para o aparecimento das cobaias profissionais – pessoas que decidem viver de participar em testes clínicos de fase 1. “Como esses estudos requerem uma quantidade significativa de tempo numa unidade de pesquisa, os voluntários usuais são pessoas que precisam de dinheiro e têm muito tempo livre: os desempregados, os estudantes universitários, trabalhadores temporários, ex-presidiários ou jovens que decidiram que testar drogas é melhor do que bater cartão com os escravos assalariados”, relata o médico e filósofo americano Carl Elliott, bioeticista da Universidade do Minnesota e crítico ferrenho dos meandros da indústria farmacêutica.

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“Em algumas cidades, como Filadélfia e Austin, a economia dos testes clínicos produziu uma comunidade de voluntários semiprofissionais, que participam de estudos um após o outro.” Um aspecto particularmente perverso desse sistema de “profissionalização” de cobaias é que ele permite a exploração de grupos marginalizados. Quer um exemplo? Em 1996, a farmacêutica Eli Lilly se viu em maus lençóis, quando o Wall Street Journal revelou que, havia pelo menos duas décadas, a empresa estava pagando a alcoólatras moradores de rua para que eles fossem cobaias em sua clínica de fase 1 em Indianápolis. (A Lilly é uma das poucas que realizam diretamente seus estudos, desde 1926, sem fazer uso de empresas terceirizadas ou laboratórios acadêmicos.) Questionados pelo jornal, executivos da companhia tiveram a coragem de dizer que os voluntários eram motivados pelo altruísmo para participar dos testes clínicos.

“Esses indivíduos querem ajudar a sociedade”, disse Dwight McKinney, médico e diretor executivo de farmacologia clínica. Já alguns dos voluntários participantes contavam outra história. “A única razão pela qual eu vim aqui é para que eu possa comprar um carro e um novo par de sapatos”, disse um ex-viciado em crack de 23 anos que ficou sabendo da clínica nas ruas. “Eu compro uma caixa de [cerveja] Miller e uma acompanhante e faço sexo”, outro voluntário relatou. “A garota vai me custar US$ 200 por hora.”

Como você pode imaginar, esses voluntários recebiam menos pelos testes do que a média do mercado. Após o escândalo, a Eli Lilly parou de recrutar gente que não tenha comprovante de residência. Mas não aposte que a solução usual será a de melhorar as condições dos testes. Oprimida pelo governo de um país, a indústria procurará refúgio em outros. Com efeito, um levantamento mostra que, em 2005, 40% de todos os testes clínicos financiados pela indústria farmacêutica estavam acontecendo em países emergentes. Entre 1995 e 2006, os maiores aumentos anuais no número de pesquisadores realizando testes clínicos aconteceram na Rússia, na Índia, na Argentina, na Polônia, na China e no Brasil. E não pense você que os padrões éticos melhoraram muito.

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Hospital em Kano, Nigéria. Pacientes de meningite foram recrutados, sem saber, para servir de cobaias em testes de um novo antibiótico. (The Washington Post/Getty Images)

Um caso particularmente chocante aconteceu em 1996, na África. A farmacêutica Pfizer estava desenvolvendo um novo antibiótico, chamado Trovan (trovafloxacin), que já havia se mostrado promissor contra uma gama ampla de infecções e que podia ser ministrado por via oral, em vez de injeção. Quando uma epidemia de meningite apareceu na Nigéria, uma equipe da companhia viu a oportunidade ideal para a realização de um teste de campo. Duzentas crianças doentes foram recrutadas, e metade recebeu Trovan, enquanto a outra metade recebeu ceftriaxone, uma droga já estabelecida no tratamento de meningite. Ao final do teste, muitas crianças ficaram com sequelas deixadas pela doença, e 11 delas morreram – cinco que haviam tomado Trovan e seis que tomaram ceftriaxone. Ponto para o novo medicamento, certo?

Não exatamente. Primeiro que houve uma violação ética – nem os pais, nem as crianças foram informadas de que um experimento estava em andamento. Todos imaginavam que se tratasse apenas de ajuda humanitária. Segundo que, em nome do estudo, crianças cuja saúde estava se deteriorando a olhos vistos não tiveram a medicação trocada. E o pior: as crianças do grupo de controle, que receberam ceftriaxone, tomaram a droga em doses menores do que as adequadas – presumivelmente para garantir o melhor resultado do Trovan. O caso terminou na Justiça e, num acordo para encerrar o processo, a Pfizer pagou US$ 75 milhões.

Que ciência é essa? Trata-se de um caso claro de fraude (além de desumanidade), em que o experimento é manipulado para produzir o resultado desejado – e vidas são perdidas por isso. Mas, ainda que não fosse, ele teria grande chance de produzir conclusões não confiáveis. E esse é outro grande segredo da indústria farmacêutica – ela explora o fato de que testes clínicos podem essencialmente provar qualquer coisa que se queira.

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