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O trunfo da vacina chinesa

A vacina da Pfizer é difícil de distribuir - e não chegará tão cedo ao Brasil. A de Oxford teve um erro nos testes, que precisarão ser refeitos. A da Johnson & Johnson usa uma tecnologia nova, e por isso tende a demorar mais. Resta a Coronavac: que é feita pelo método de inativação viral, dominado há mais de 50 anos e empregado nas vacinas contra gripe, meningite, pólio e hepatite.

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 2 dez 2020, 10h59 - Publicado em 16 nov 2020, 15h55

Em setembro, o CEO da Pfizer, Albert Bourla, anunciou que a empresa já havia fabricado centenas de milhares de doses da sua vacina contra o novo coronavírus, antes mesmo de terminar os testes clínicos. A companhia decidiu ir adiantando a produção para dominar as técnicas envolvidas e ter algum estoque do produto quando – e, nunca é demais lembrar, se – ele for aprovado para uso (em julho, o governo americano anunciou um contrato de US$ 2 bilhões com a Pfizer, que deverá fornecer 100 milhões de doses da vacina).

A vacina da Pfizer é uma das quatro que receberam autorização da Anvisa para testes clínicos no Brasil (as outras são a vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca, a da Janssen, uma subsidiária da Johnson & Johnson, e a CoronaVac, da chinesa Sinovac).  Ela é uma vacina de RNA, ou seja, feita com um pedacinho do código genético do novo coronavírus: o trecho que “ensina” o vírus a construir a proteína spike (espetos que recobrem a superfície do Sars-Cov-2, e ele usa para se conectar às células humanas).

As vacinas de RNA são relativamente fáceis de desenvolver – a empresa Moderna Therapeutics, que criou a primeira vacina contra o Sars-CoV-2 em apenas 63 dias, usou essa técnica. Mas  elas são frágeis. O produto da Pfizer precisa ficar ultracongelado, a -70o C (os freezers comuns só alcançam -20o C). Por isso, a empresa teve de desenvolver uma caixa especial, que conserva 5 mil doses por dez dias.

As caixas serão distribuídas, de avião, dos centros de logística da Pfizer na Bélgica e em Wisconsin, nos EUA. Uma operação bem complexa, inclusive porque tem muita gente na fila: além da encomenda do governo americano, a Europa quer 200 milhões de doses, e o Japão, outros 120 milhões. Mesmo se/quando essa vacina chegar ao Brasil, não será fácil distribuí-la. As caixas da Pfizer são preenchidas com 23 kg de gelo seco, que precisa ser reposto na entrega do produto (depois, a cada cinco dias). Elas só podem ser abertas duas vezes por dia, por no máximo 1 minuto. Depois que as vacinas são retiradas da caixa, duram apenas 24h na geladeira.

A vacina de Oxford não tem esse problema, pois não precisa ser refrigerada. Em agosto, a Fundação Oswaldo Cruz assinou um acordo com a AstraZeneca, que irá fornecer doses da vacina e transferir a tecnologia para que seja produzida no Brasil. Essa vacina (como a da Jannsen e a russa Sputnik, que despertou o interesse dos governos do Paraná e da Bahia) é do tipo “vetor viral”. Ela usa um segundo vírus como veículo.

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No caso da vacina de Oxford, trata-se do ChAdOx, um adenovírus que infecta chimpanzés e sofreu duas modificações em laboratório: foi enfraquecido, para que não consiga se replicar no corpo humano, e ganhou a proteína spike (os “espetos” do coronavírus). Quando a pessoa toma essa vacina, seu sistema imunológico ataca o adenovírus e cria uma memória contra a spike. Isso significa que, se mais tarde ela for contaminada pelo Sars-CoV-2, o organismo irá reconhecê-lo e disparar uma resposta imunológica imediata, debelando a infecção.

Mas, em 6 de setembro, a Universidade de Oxford anunciou que iria interromper temporariamente os testes da vacina, parando de recrutar voluntários. Motivo: um dos participantes teve uma reação adversa séria. Segundo o site médico Stat, que cita pessoas ligadas ao teste, foi mielite transversa, uma inflamação da medula espinhal que pode causar problemas motores. É uma doença rara, que ataca uma a cada 250 mil pessoas, e tem várias causas – quem sofre de esclerose múltipla, por exemplo, corre risco maior. Ou seja, o voluntário poderia ter desenvolvido mielite mesmo sem ter tomado a vacina. Talvez, inclusive, sequer tenha tomado: os testes, como manda a boa prática científica, são no esquema “duplo cego”, em que os pacientes não sabem se estão recebendo vacina ou placebo (e os pesquisadores também não sabem quem tomou o quê, daí o “duplo”).

Em 13 de outubro, a Jannsen fez o mesmo com sua vacina de vetor viral, interrompendo os testes após uma  “doença inexplicada” em um voluntário. Oxford foi recomeçando aos poucos, mas só voltou ao ritmo anterior na última semana de outubro (quando a Janssen também reiniciou). Em suma: como são novas, as vacinas de vetor viral estão sujeitas a pausas no desenvolvimento, já que o adenovírus modificado nunca foi aplicado em larga escala.

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Política x Ciência

Já a CoronaVac tem frequentado o noticiário por outra razão: a briga entre o governo de São Paulo (que pretende comprar e fabricar 46 milhões de doses, com o Instituto Butantan) e o governo federal: o presidente Jair Bolsonaro vem rejeitando a vacina. Como São Paulo provavelmente dependerá de verba federal do SUS para comprar e produzir as doses, orçadas em R$ 2,6 bilhões, criou-se um impasse. Mas, pela letra fria da ciência, talvez não fosse o caso. A vacina chinesa é de longe a mais simples das quatro, porque é a única que não se baseia numa tecnologia nova. É uma vacina de vírus inativado, como as vacinas da gripe, da meningite, da poliomielite e da hepatite, entre outras. A inativação é uma técnica dominada pela ciência há mais de 50 anos, e consiste em pegar um vírus e submetê-lo a calor ou a uma substância química (formaldeído) para “matá-lo”, tornando-o incapaz de infectar células humanas.

A CoronaVac já foi aplicada em 50 mil pessoas na China e 9 mil no Brasil, em testes que estão sendo realizados desde julho pelo Instituto Butantan. Não foi relatado nenhum efeito colateral grave – somente dor no local da injeção (em 19% das pessoas) e dor de cabeça (15%), coisas que as outras vacinas também provocam. A vacina chinesa dura 42 dias em temperatura ambiente (numa geladeira comum, cinco meses), o que simplifica sua distribuição. Em suma, parece bem promissora. E, como usa uma tecnologia consagrada e não apresentou efeitos nocivos, tende a ficar pronta antes das outras.

Paira sobre ela, como sobre as demais, a última e principal dúvida: funciona? É isso que as quatro vacinas em testes no Brasil, todas na chamada Fase III (que avalia a eficácia), ainda precisam comprovar. Só é possível cravar a eficiência de uma vacina depois que seu “grupo de controle”, formado por pessoas que tomaram placebo, apresenta determinado número de casos de infecção pelo coronavírus. Essa etapa é impossível de acelerar, mas pode terminar já nas próximas semanas.

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Atualização: em 18 de novembro, após a publicação deste texto, a Pfizer divulgou um pré-resultado animador de Fase III, apontando 95% de eficácia da sua vacina. A Moderna Therapeutics anunciou, logo depois, que seu produto havia se mostrado 94% eficaz. Nenhuma das duas empresas possui contratos de fornecimento assinados com o Brasil – e o Ministério da Saúde já sinalizou que a vacina da Pfizer, por exigir refrigeração a 70 graus negativos, não é adequada para o PaísA vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca, por sua vez, demonstrou efetividade de 62% a 90% – essa variação resulta de um erro nos testes, que terão de ser refeitos).

Que prevaleça a ciência, e não a política, na escolha das vacinas – no plural – que imunizarão os brasileiros. Até porque, para proteger toda a população, o país provavelmente terá de recorrer a mais de uma.

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