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O silêncio dos inconscientes

Pacientes em coma podem estar mais despertos do que parecem. E a ciência talvez tenha encontrado a ponte para falar com eles: o cinema.

Por Ana Carolina Leonardi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 jul 2020, 12h25 - Publicado em 20 set 2017, 17h14
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(Foto | Julia Rodrigues/Superinteressante)

Jackie tinha cinco anos e queria ser cowboy. O Natal chegou mais cedo para ele: seu tio Rick voltou de viagem e disse que trazia uma surpresa. Ansioso demais para esperar, Jackie desfez escondido a mala do tio. Lá dentro, encontrou um revólver. Seria seu presente? Cabia direitinho no seu cinto de cowboy com coldre. E tão realista! Muito mais pesado que sua arminha de brinquedo. Tinha até caixa de munição. Jackie meteu as balas que encontrou no bolso – mas não teve espaço para todas. Uma delas guardou dentro do “brinquedo”. E seguiu com seu jogo favorito: gritar “Mãos ao alto” e fingir render seus familiares. A mãe pediu que ele fosse brincar na rua. A resposta desagradou ao cowboy: dedo no gatilho. Zoom na arma. O martelo vai para trás… E volta. Silêncio.

Agonia, incerteza, antecipação. A cena acima foi escrita em detalhes milimétricos para causar essas sensações. Não é para menos: ela é obra de Alfred Hitchcock, mestre do suspense. No curta Bang: You’re Dead!, a roleta-russa acidental de Jackie se repete na rua, no supermercado cheio de gente, de novo e de novo, até você estar roendo as unhas.

O suspense é um sentimento poderoso – tão poderoso que está sendo usado pela ciência para descobrir como se comunicar com quem parece estar além do alcance. Dentro de máquinas de ressonância magnética, a neurocientista Lorina Naci exibe Hitchcock para pacientes que sofreram lesões cerebrais catastróficas. São pessoas em estado vegetativo, tidas como inconscientes há décadas – mas o experimento de Naci é capaz de fazer o que outros exames neurológicos não fazem: usar a sedução natural do suspense para descobrir se há um fio de consciência escondida por trás de tantas camadas inertes.

 

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1) Saudável e acordado
Você está no topo dos parâmetros da mente: nível máximo de consciência, cérebro alerta e nenhuma limitação comportamental.
5) Sonâmbulo
O cérebro está tão alerta quanto o de alguém acordado – mas não percebe, porque o grau de consciência é baixo.
2) Síndrome de encarceramento
Mente saudável “presa” no corpo. O paciente tem controle dos olhos e se comunica por piscadelas. As limitações são só físicas.
6) Estado vegetativo
Surge depois de um trauma cerebral. Se dura mais de um mês, é considerado persistente. O prognóstico é desanimador.
3) Estado minimamente consciente
Primeiro passo da recuperação. Pacientes dão sinais variáveis de que sabem quem são e percebem o mundo ao redor.
7) Coma
Reação imediata ao trauma: o corpo quase desliga. Em alguns casos, até a respiração precisa ser assistida.
4) Saudável e dormindo
Mesmo que não haja qualquer problema, a mente fica em stand-by quando estamos na cama – e o cérebro reduz seu estado de alerta.
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Seu cérebro, enquanto você dorme, se parece mais com o de uma pessoa em coma (ao menos em nível de alerta e consciência) do que com o cérebro de uma pessoa saudável e acordada.

Um paciente em estado vegetativo persistente é capaz de respirar sozinho e abrir os olhos. Seu cérebro também passa por ciclos de sono. Nada mais. O comportamento não mostra o menor vestígio de que ele tenha consciência de si mesmo e dos seus arredores.

E o quadro pode durar décadas – a americana Elaine Esposito viveu dos 6 aos 43 anos desse jeito, conectada a aparelhos que a alimentavam. Naci, no entanto, acredita que parte desses pacientes tem, sim, capacidade de perceber, em algum nível, o que acontece ao seu redor – só não temos, ainda, formas de “ouvi-las”. Aí é que entra Hitchcock.

A pesquisadora exibiu Bang, You’re Dead! para dezenas de pessoas saudáveis. Exame após exame, os resultados demonstraram que o cérebro, enquanto assiste ao filme, sofre um efeito uniforme. Ou seja: todo mundo experimenta o suspense do mesmo jeito. Qualquer um capaz de entender a história terá o cérebro ativado nas mesmas áreas, durante as mesmas cenas. É como se todos os cérebros estivessem sincronizados para reproduzir a mesma dança perante os gatilhos na tela. E foi essa a coreografia que Naci foi procurar nos cérebros dos seus pacientes vegetativos.

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Na primeira paciente, uma jovem de 20 anos, ela não encontrou nada: a ressonância só mostrava que ela estava recebendo estímulos visuais e sonoros. Não havia consciência do suspense hitchcockiano. “Para ir além e entender o enredo, você precisa recrutar uma das maiores funções cognitivas, a função executiva. É a parte do cérebro que nos ajuda a juntar informações e entender o sentido das coisas”, explica a neurocientista. Em pessoas saudáveis, a coreografia do suspense ativa o córtex pré-frontal e o córtex parietal, ligados à função executiva. Na moça, essas partes permaneceram dormentes.

Em um segundo experimento, quem assistiu ao filme foi um rapaz de 34 anos. Desacordado desde os 18, ele nunca demonstrou sinal de consciência. No entanto, foi dar o “play” no filme e voilà: a atividade cerebral do paciente era indistinguível da de um cérebro saudável. Ele estava efetivamente assistindo (e entendendo) o filme.

Depois do teste, a pesquisadora foi conversar com o pai do rapaz, seu cuidador principal. “Descobri que ele levou o filho ao cinema por mais de uma década”, conta a neurocientista. Todas as quartas-feiras, o senhor buscava o filho inerte, com cadeira de rodas e sondas, para assistir a um filme. “Foi muito tocante. O pai estava operando na base da fé todo esse tempo e, de alguma forma, estava estimulando seu filho. O caso me faz pensar que expor pacientes a experiências empolgantes e enriquecedoras, incluindo-as na vida cotidiana, pode ajudar essas pessoas, e quem sabe até impulsionar a recuperação.”

O estudo rendeu a Lorina o cargo de professora na Trinity College, faculdade mais tradicional da Irlanda, e o Prêmio L’Oréal-Unesco Para Mulheres na Ciência de novos talentos. E seu próximo desafio é ainda mais ambicioso.

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Os pacientes que vimos até aqui não estavam em coma, mas em estado vegetativo. Ambos são quadros graves, mas bastante diferentes. O coma começa logo depois do trauma cerebral e dura algumas semanas. Nem mente nem corpo respondem. O paciente não abre os olhos e pode precisar de aparelhos até para respirar. Mas, ao contrário do estado vegetativo, que em geral não tem volta, a situação pode mudar a qualquer momento: pode ser seguida por recuperação total ou parcial, pela morte natural ou, então, pelo estado vegetativo. “Durante o coma, tudo está a perder ou a ganhar.”

A pesquisadora acredita que seus testes podem definir quais pacientes têm mais chance de sobreviver ao coma – a mera presença de sinais de consciência já indica um prognóstico melhor.

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45% dos pacientes “vegetativos” mostram sinais mínimos de consciência – e maior potencial para recuperação. (Foto | Julia Rodrigues/Superinteressante)

Só tem um problema: se pessoas em coma não abrem os olhos, não há como usar Hitchcock para testá-las. A cientista, então, precisou mudar de estratégia. Foi buscar no cinema cenas tão sonoramente poderosas que o visual fosse dispensável. Dessa vez, tirou a sorte grande muito longe dos filmes clássicos.

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O blockbuster Busca Implacável (2008) foi o filme escolhido. Mais especificamente, a cena em que o personagem de Liam Neeson fala ao telefone com o sequestrador da filha. “Não sei quem você é. Não sei o que você quer. Se você está atrás de resgate, já digo que não tenho dinheiro. O que eu tenho é um conjunto de habilidades muito especiais, adquiridas ao longo de uma longa carreira.” O discurso usa uma retórica tão forte que já foi comparada à de Martin Luther King, em “Eu tenho um sonho”. Mais importante que isso, o áudio exige apenas dois minutos para criar uma narrativa de suspense que se desenrola mesmo frente a olhos fechados.

Pronto. A ferramenta de “extração de consciência” já existe. O que falta saber agora é se há consciência em si a ser resgatada nos pacientes em coma. É isso que os testes de Naci pretendem descobrir – e isso leva tempo. 

Se tudo der certo, saberemos que pelo menos alguns pacientes em coma conseguem perceber o mundo ao redor. E que a consciência pode sobreviver de alguma forma até nas condições mais inóspitas – submersa, mas capaz de voltar à tona no futuro.

Com isso, a família pode lidar com a situação baseada numa esperança concreta, justificada pela ciência. Não precisa contar apenas com a fé, como o pai das sessões de cinema às quartas-feiras.

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