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Nosso destino pode ser traçado na gravidez

Antes acreditava-se que a gravidez servia apenas para desenvolver o feto. Hoje a ciência sabe que acontecimentos dentro do útero podem prever a felicidade

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 21 fev 2011, 22h00

DESTINO EXISTE?
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Aos 29 anos, Charles Gaston entrou em uma loja de conveniência na cidade de Sacramento, capital do estado da Califórnia, nos EUA, com o indicador esticado sob a jaqueta. Fingindo ter uma arma, ele ordenou ao balconista que esvaziasse o caixa. Mas o funcionário tinha um revólver de verdade e tentou colocar o gatuno para correr. Seu erro foi não ter disparado, pois Gaston se aproximou da vítima, tomou a arma e atirou na cabeça do infeliz, que morreu na hora. O assassino ficou ao lado do corpo até a chegada da polícia e não levou nada da loja. A julgar pela gravidade do crime e pela ficha suja do réu, que tinha no currículo duas prisões por roubo, a Justiça não hesitou em decretar a pena máxima: execução. Mas o advogado do criminoso alegou que ele era um desequilibrado mental e conseguiu livrá-lo do corredor da morte. O argumento: como havia nascido de uma mãe alcoólatra, Gaston tinha desenvolvido alguns sintomas que caracterizam o que os médicos chamam de síndrome alcoólica fetal. Segundo uma testemunha, a mãe tinha entornado umas e outras até mesmo na noite do parto. Por causa desse comportamento inadequado – o álcool é proibido durante toda a gravidez, até mesmo em pequenas doses -, o filho, ainda no útero, sofreu danos irreversíveis no cérebro, que se transformaram em graves problemas de comportamento na infância e na adolescência. De acordo com a defesa, na vida adulta de Gaston, a irresponsabilidade materna teria tido uma grande parcela de culpa na sua entrada no mundo do crime. O juiz se comoveu com a história, mas não a ponto de livrá-lo do xilindró. O assassino foi condenado a passar o resto da vida na cadeia, sem possibilidade de recurso. A decisão do juiz, com base no relato de uma testemunha, pode parecer polêmica. Mas, do ponto de vista científico, faz todo sentido. O seu destino pode, sim, ser influenciado pelos 9 meses que você passou dentro do útero – e pelas decisões que a sua mãe tomou durante o período.

O julgamento de Charles Gaston aconteceu em 1989. Na época, o conceito de “origens fetais”, que defende que o cérebro e o corpo do bebê são influenciados e alterados diretamente pelo ambiente, pela alimentação e pelas emoções da mãe, ainda estava engatinhando. Os primeiros estudos que confirmavam essa tese estavam apenas começando a ser levados a sério. Ainda havia resquícios de um consenso antigo, de que nenhuma substância tóxica era capaz de atravessar a placenta – órgão responsável pelo leva e traz de substâncias entre a mãe e o feto. De acordo com essa tese, a placenta só deixaria passar moléculas benéficas ao organismo em desenvolvimento. Essa crença foi aniquilada na década de 1960, de forma trágica, com o nascimento de milhares de bebês com membros mais curtos e dedos a mais ou a menos. A comunidade científica descobriu rapidamente que os defeitos de nascimento tinham relação com a talidomida, uma droga que estava sendo prescrita para ajudar as grávidas a enfrentar os enjoos, dores de cabeça e insônias típicos da gestação. O remédio foi banido por ter propriedades teratogênicas, o que significa que suas moléculas são capazes de interferir diretamente nas células do feto, matando ou provocando efeitos devastadores – e que, muitas vezes, duram a vida toda. No Brasil, infelizmente, os casos de talidomida continuaram acontecendo até os anos 70, porque o remédio era também prescrito contra a hanseníase.

De lá para cá, felizmente, muita coisa mudou. Graças a diversos estudos, as gestantes de hoje sabem muito mais sobre dieta, uso de remédios e exposição a produtos químicos. E ninguém mais duvida de que elas influenciam o destino do filho antes mesmo de ele nascer.

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Sofrimento hereditário

Em junho de 1967, Israel entrou em confronto direto com alguns países árabes, numa disputa por territórios e pelo controle político da região. E saiu vitorioso da chamada Guerra dos Seis Dias, que matou milhares de pessoas. Mas a supremacia não garantiu que seus cidadãos – e suas grávidas – ficassem imunes ao estresse causado por um conflito militar. A psiquiatra Dolores Malaspina, da Universidade de Nova York, pesquisou os registros de nascimento de quase 90 mil pessoas que nasceram em Jerusalém entre 1964 e 1976. E descobriu que os filhos das mulheres que estavam no 2º mês de gestação durante a guerra tinham, na vida adulta, índices altos de esquizofrenia – doença mental das piores, que provoca delírios e perda de contato com a realidade. As meninas concebidas e geradas no período do conflito tinham cerca de 4 vezes mais incidência da doença. Entre os meninos, o índice foi de 1,2.

Mas condições adversas durante a gravidez podem mudar até a cara de um país inteiro. De acordo com um estudo conduzido na Universidade de Southampton, países como a China e a Índia estariam enfrentando epidemias de obesidade, diabetes, hipertensão e problemas cardíacos com origem na alimentação. E não porque os chineses e os indianos comam mal – a dieta deles é mais saudável que a nossa. Mas porque, até algumas décadas atrás, esses países, que hoje são relativamente prósperos, eram pobres – e as grávidas que viviam por lá em geral tinham uma alimentação precária. Resumo: muitos fetos chineses e indianos foram programados dentro do útero para extrair o máximo possível de energia e nutrientes da dieta limitada da mãe. E depois viraram adultos com acesso a lanchonetes de fast food. O excesso de gordura é problemático por si só, mas nesses casos é ainda mais maléfico, pois o organismo dessas pessoas simplesmente não sabe como lidar com tanta comida.

Mas a falta de alimento pode comprometer o futuro do bebê de outras formas – algumas até mais perigosas. David Barker, da Universidade de Southampton, na Inglaterra, publicou um estudo com um dado inquietante: com base na análise da ficha médica de mais de 15 mil pessoas, ele descobriu que muitas das que tinham histórico de problemas cardiovasculares haviam nascido com baixo peso. A hipótese de Barker foi a seguinte: quando a mãe oferece poucos nutrientes ao feto, este acaba redirecionando a alimentação escassa que recebe pelo cordão umbilical ao órgão mais nobre do corpo humano – o cérebro -, prejudicando outros que também são importantes, como o coração. Ou seja, é bom não existir miséria nos pratos das grávidas: quem paga o preço sempre é o bebê.

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É de nascença

E se os acontecimentos dentro do útero pudessem determinar a orientação sexual da pessoa já desde o feto? Pois uma série de estudos aponta que essa ideia não é tão descabida assim. O psicólogo Anthony Bogaert, da Universidade Brock, em Ontário, no Canadá, se debruçou sobre o histórico de cerca de 1 000 homens e publicou um estudo, em 2006, no qual indicava que filhos mais novos de mães que tiveram outros meninos têm mais chances de ser gay. A base científica, segundo a pesquisa, é o sistema imunológico da mãe. Na primeira gestação de um menino, ela cria anticorpos que atacam as proteínas produzidas pelo feto do sexo masculino, que são estranhas ao corpo feminino. Nada muito radical acontece com o primeiro bebê. Nas gestações seguintes, no entanto, esses anticorpos, cada vez mais potentes, agem diretamente sobre o cérebro do feto e – de uma forma ainda desconhecida – fazem com que a orientação sexual seja definida antes do nascimento. “Segundo nossos estudos, de 15 a 25% dos gays desenvolvem a homossexualidade dentro do útero por causa desse fator”, afirma Anthony Bogaert. Os dados são recentes, mas já tinham sido pincelados em estudos anteriores, como os do célebre pesquisador Alfred Kinsey, que, nas décadas de 1940 e 1950, apontou que a prevalência de gays era maior em homens com irmãos mais velhos.

Os estudos de Bogaert não são os únicos que tentam localizar fatores biológicos para a homossexualidade. Uma das ideias mais difundidas é a que atribui a orientação sexual aos hormônios femininos da mãe – os gays seriam fetos masculinos que sofreram mais influência desses hormônios dentro do útero, o que explicaria um “cérebro” feminino em um corpo de homem. Essa linha de investigação também explicaria a percepção de que há mais gays do que lésbicas no mundo. Afinal, é muito mais fácil o feto masculino ser exposto ao excesso de hormônio feminino (porque está dentro do corpo de uma mulher) do que o contrário. Se essas pesquisas forem comprovadas, acabaria de vez a crença de que a homossexualidade é algo reversível. Ela seria de nascença – estava predestinada.

Para saber mais
Origins: How the Nine Months Before Birth Shape the Rest of Our Lives
Annie Murphy Paul, Free Press, 2010.

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