Nature publicará artigos sem paywall – cobrando R$ 60 mil dos cientistas
A comunidade científica critica editoras como a Nature por limitar o acesso aos estudos com assinaturas caríssimas. Mas a taxa para publicar open access é proibitiva – e só reforça o problema.
A Springer Nature – editora acadêmica responsável pelo prestigiado periódico Nature – anunciou que, pela primeira vez, vai oferecer aos pesquisadores a oportunidade de publicar estudos na modalidade open access (acesso aberto). A opção vale para a própria Nature e outros 32 títulos do grupo.
Os autores que optarem pelo open access terão seus artigos disponibilizados abertamente na internet. Até agora, a maioria das publicações do grupo usava um paywall, e só os assinantes tinham acesso aos estudos completos (em geral, são universidades que contratam o serviço e o fornecem a seus afiliados: uma pessoa física não consegue arcar, sozinha, com os custos de vários periódicos).
O detalhe é que os pesquisadores que optarem pela modalidade open access para publicar seus artigos vão precisar pagar uma taxa de 9.500 euros à editora – quase 60 mil reais.
A novidade estará disponível a partir de janeiro de 2021; os detalhes foram anunciados nesta semana. Em abril, a editora já havia assumido o compromisso de repensar seus modelos de publicação para abranger a possibilidade de acesso livre. É uma tendência crescente no mercado editorial científico após a pressão de entidades e agências financiadoras.
Para entender a notícia, é importante entender as diferenças entre as editoras comuns e as editoras científicas. Quando um cientista faz uma descoberta, ele precisa descrevê-la de maneira detalhada em um artigo publicado em um periódico – de preferência, um periódico prestigiado, que dará visibilidade ao trabalho.
A regra geral é que quem não se expõe não mama: reputação dos periódicos em que você publica e o número de vezes que outros cientistas citam seus artigos são métricas importantes para conseguir bolsas e cargos em universidades. Perceba que o objetivo central do cientista é descobrir, e não escrever sobre suas descobertas. Ele não quer obter renda com os artigos – apenas divulgá-los para fazer o conhecimento circular.
Quando um escritor publica um livro de ficção, ele não precisa pagar para a editora, e é remunerado com uma porcentagem do valor de capa do livro. Afinal, ele vive disso. Já quando um cientista precisa publicar um artigo, ele não só precisa torcer para ser aceito por um bom periódico como também, às vezes, precisa pagar para publicar. O dinheiro pode sair da verba do grupo de pesquisa, da bolsa ou de outras fontes de financiamento.
Isso gerou muitas críticas às editoras nas últimas décadas: é um modelo de negócio em que o cientista paga para publicar e os outros cientistas pagam para ler. Pesquisadores de todo o mundo sentiram que essa cobrança nas duas pontas era um preço injusto a se pagar pelo trabalho de seleção, edição e publicação de artigos – principalmente considerando que a comunidade acadêmica é o principal público-alvo da informação que ela mesma gera.
Por conta dessas críticas, muito periódicos com paywall – incuindo os da Nature – já deixaram de cobrar taxas de publicação em resposta a essas demandas e se sustentam com as assinaturas. Ou seja: os pesquisadores podem publicar de graça, desde que aceitem que suas pesquisas terão acesso restrito.
Isso não resolve o problema da limitação do acesso a informação científica, é claro. Muitos pesquisadores, entidades e organizações defendem que o conhecimento científico não pode ficar restrito à bolha acadêmica, já que impacta toda a sociedade. É mais interessante para os cientistas que seus trabalhos circulem livremente. O problema é que, para obter o open access, os pesquisadores precisam pagar o prejuízo do paywall aberto.
O modelo adotado pela Springer Nature é chamado de “taxa de processamento do artigo” (article processing charge, em inglês, ou APC). Várias outras editoras adotam a mesma prática, mas nenhuma cobra tão caro.
Até agora, as APCs mais altas no mercado editorial eram 6 mil dólares (30 mil reais); a Springer Nature cobrará quase o dobro disso. A empresa justifica o valor alto dizendo que muitos dos estudos que são submetidos à criteriosa revisão de suas revistas acabam não cumprindo os requisitos e têm a publicação negada – um processo de peneira que custa um bocado de dinheiro. Assim, os poucos artigos que são bons o suficiente para serem aceitos precisam cobrir os custos daqueles que foram rejeitados.
Os pesquisadores que não quiserem ou não puderem pagar a taxa continuarão podendo publicar seus resultados nos periódicos do grupo de forma gratuita, mas sob o tradicional paywall que barra os não assinantes.
O anúncio foi parcialmente bem recebido entre os defensores do movimento open access, mas o alto custo foi criticado por muitos. Ao noticiar a novidade, o site da Nature, que possuí publicações jornalísticas, ouviu alguns especialistas que criticaram a medida.
(Pode parecer estranho, mas a equipe jornalística da Nature é editorialmente independente da empresa Springer Nature, o que significa que seus jornalistas tem liberdade para entrevistar fontes críticas à editora.)
“Acho que seria um absurdo qualquer financiador, universidade ou autor pagar por isso”, disse Peter Suber, diretor da Projeto de Acesso Livre da Universidade Harvard e um dos maiores nomes do movimento pelo open access. Outras autoridades da área pediram que a Springer Nature divulgue os dados detalhados dos custos de revisão de seus estudos para que a comunidade científica julgue se a taxa cobrada é realmente justa.
Juan Pablo Alperin, pesquisador do tema da Universidade de Simon Fraser, do Canadá, disse que a medida evidencia que a transição definitiva para o acesso aberto é “inevitável”, mas criticou o valor da taxa, lembrando que ela será ainda mais inacessível para pesquisadores de países pobres. Outras editoras possuem taxas APCs menores para equipes baseadas em instituições de países em desenvolvimento (como o Brasil), mas, até o momento, a Springer Nature não anunciou nenhuma medida do tipo.
Uma longa jornada
A Springer Nature vinha sofrendo pressão de movimentos pró-acesso aberto há muito tempo, já que várias outras revistas criaram mecanismos para facilitar essa modalidade nos últimos anos.
Em 2018, diversas agências financiadoras de estudos científicos, a maioria na Europa, se uniram para formar o chamado Plano S. A iniciativa exige que toda pesquisa financiada por esses órgãos, que incluem a Organização Mundial da Saúde e a Fundação Bill e Melinda Gates, seja publicada em formato acesso aberto assim que finalizada (valendo a partir de 2021). O movimento rapidamente ganhou popularidade entre cientistas e organizações que visam democratizar o acesso à informação científica de qualidade pelo mundo.
Há duas maneiras de se divulgar um artigo em acesso aberto: ou o estudo é publicado em uma revista científica que aceite a publicação de acesso livre (essa maneira é chamada de via dourada); ou ele é publicado em uma revista tradicional por trás de um paywall, mas os próprios autores divulgam o manuscrito final em um repositório online totalmente acessível, como o arXiv (esse caminho é chamado de via verde).
Como os manuscritos pertencem aos autores, eles não podem ser impedidos de divulgar o próprio trabalho – ainda que alguns periódicos exijam que haja um intervalo de tempo entre a publicação oficial e a divulgação informal. No caso da Nature, esse tempo é de seis meses.
O Plano S aceita que os estudos sejam disponibilizados sem paywall mediante pagamento das APCs – nesse caso, os financiadores podem cobrir o gasto.
Com o crescimento de popularidade do Plano S e a adesão de grandes agências financiadoras, muitas editoras científicas prestigiadas, como as responsáveis pela Nature e pela Science, se viram pressionadas para aderir alternativas a seus modelos restritos. Se essas revistas não atualizassem suas regras, estudos financiados por entidades que assinam o Plano S jamais poderiam ser publicados nesses títulos, e haveria uma grande perda para os dois lados.
Em 2017, por exemplo, 35% dos artigos publicados na Nature tinham financiamento de pelo menos uma agência que hoje integra o Plano S. Se a iniciativa estivesse em vigor naquele anos, esses estudos teriam sido publicados em outros títulos que aceitassem o formato open acess.
Como a própria Nature anunciou, esse foi um dos motivos para repensar seu modelo de publicação. Antes mesmo do Plano S, porém, havia pressão para oferecer alternativas de acesso aberto, o que gerou mudanças pontuais na editora. A publicadora administra diversos títulos, alguns mais prestigiados que outros, e implementou possibilidades de open access em algumas de suas revistas nos anos passados, como a Nature Communications e Scientific Reports, mas as publicações mais famosas e renomadas continuaram com seu inevitável paywall – incluindo a Nature, que, em seus 150 anos de existência, nunca aceitou publicar estudos em acesso aberto.
Mais cedo neste ano, a Springer Nature havia firmado um acordo com 120 institutos de pesquisa da Alemanha para permitir que todos os estudos feitos por elas fossem publicados em qualquer uma de suas revistas em formato acesso aberto, sob a condição de se pagar uma taxa de 9,5 mil euros. Agora, o modelo estará disponível para todo mundo – que puder pagar, é claro.