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Josef Mengele e os médicos nazistas

O "Anjo da Morte" se ofereceu para trabalhar em Auschwitz. Motivo: queria cobaias para suas experiências macabras.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 12 jun 2020, 11h41 - Publicado em 3 jun 2020, 11h41

À entrada do campo de concentração de Auschwitz, em território polonês ocupado, os recém-chegados encontravam os dizeres: “O trabalho liberta”. Era apenas a primeira das muitas mentiras usadas pelos nazistas para manter os cativos sob controle no que viria a ser o maior dos campos de extermínio operados sob o comando de Hitler. Pois, a julgar pelos opressores, a ideia era que nenhum deles saísse vivo de lá.

Judeus de todas as partes da Europa – além de outros grupos menos numerosos, como ciganos, perseguidos políticos e prisioneiros de guerra – eram transportados até Auschwitz em comboios de trem. Ao chegar, passavam por uma triagem. Quem fosse comandado a avançar à direita (os mais saudáveis, principalmente homens) seria escravizado para realizar trabalhos forçados em favor do Terceiro Reich. Os chamados à esquerda (idosos, mulheres e crianças, em sua maioria) eram conduzidos como gado para um suposto processo de “desinfecção”, seguido de envio a um “campo de repouso”. Mentira. Mas os prisioneiros assim caminhavam sem resistência para as câmaras de gás, onde eram assassinados – quase mil de cada vez.

Hitler havia determinado a “Solução Final para o Problema Judeu”, o extermínio em massa das populações semitas na Europa, ao final de 1941. Em campos como Auschwitz, os membros da SS, a organização paramilitar sob comando do Partido Nazista, seguiam à risca essa ordem, com uma insensibilidade inacreditável. Para que se tenha uma ideia da frieza envolvida, após a execução nas câmaras de gás, os cadáveres eram “processados”, com a extração de dentes de ouro, por exemplo, antes de serem cremados em massa. Uma fábrica de horrores, funcionando como um relógio. Mais de 1 milhão de pessoas foram executadas em Auschwitz.

Muitos dos trabalhos que envolviam a operação das câmaras de gás eram feitos por prisioneiros – grupos selecionados chamados de Sonderkommando, em sua maioria compostos por judeus, tinham de ajudar no massacre. Eles recebiam tratamento melhor que os prisioneiros comuns, mas eram substituídos a cada três meses, e a primeira ação de um novo Sonderkommando era proceder com a cremação do grupo anterior. A ideia era não deixar testemunhas. Todos os detalhes dessa operação macabra foram dolorosamente descritos por Miklós Nyiszli, médico judeu-húngaro que chegou a Auschwitz em maio de 1944 e, na triagem, se voluntariou para praticar sua profissão entre os prisioneiros.

Sua habilidade cirúrgica chamou atenção de um dos médicos da SS, o doutor Josef Mengele. Hoje o conhecemos pelo apelido de “Anjo da Morte”. E não sem motivo. Imagine, nesse contexto de extermínio em massa, o que poderia ser o planejamento de experimentos médicos e científicos envolvendo seres humanos. Nyiszli viu tudo isso de perto quando Mengele o recrutou para auxiliá-lo e montou um laboratório de necrópsia para ele ao lado do Crematório 2, onde ele se juntou ao 12º onderkommando. Ali, o húngaro veria todos os horrores da “ciência” experimental de Mengele.

Sim, hoje usaríamos “ciência” entre aspas. Porque, apesar de o médico da SS ter doutorado em antropologia pela Universidade de Munique, suas pesquisas estavam fortemente contaminadas pela ideologia nazista, que se pautava pela ideia de que havia uma “raça superior”, a ariana, e de que havia diferenças genéticas palpáveis a produzir essa superioridade. Conceitos como higiene racial e eugenia, hoje considerados aberrações, eram abraçados entusiasticamente ou pelo menos tolerados naquela época – não só entre os alemães, mas praticamente em todo o mundo.

Mengele se ofereceu para trabalhar no campo de concentração de Auschwitz em 1943 e tinha a expectativa de provar suas ideias antropológicas e genéticas num ambiente em que poderia fazer experiências sem qualquer tipo de restrição. Enquanto os outros médicos da SS se diziam tensos ao realizar as triagens com os recém-chegados, Mengele gostava da tarefa, pois via ali uma chance de encontrar “espécimes” para seu trabalho científico.

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O “Anjo da Morte” tinha especial interesse no estudo de gêmeos idênticos. Uma das metas das pesquisas era no campo da genética comportamental – Mengele esperava demonstrar a importância dos genes na personalidade e no desempenho dessas crianças. Outro era de ordem reprodutiva. “O objetivo final era a produção de alemães puros em número suficiente para substituir os tchecos, húngaros, poloneses, todos condenados a serem destruídos, mas por ora ainda vivendo nos territórios declarados vitais pelo Terceiro Reich”, escreveu Nyislzy, em seu livro Auschwitz: A Doctor’s Eyewitness Account.

Mengele cometeu as maiores atrocidades que se pode imaginar com esses prisioneiros. Os gêmeos eram submetidos a exames e medições semanais, e alguns dos experimentos envolviam a amputação desnecessária de membros, a contaminação intencional de um dos gêmeos com tifo ou outra doença fatal, a transfusão de sangue de um gêmeo para outro – procedimentos que, em muitos casos, levavam à morte. Se um dos gêmeos morresse, o outro era imediatamente executado para que se pudesse fazer uma necrópsia comparativa dos dois. Num dos relatos mais chocantes, diz-se que Mengele costurou dois gêmeos romenos numa tentativa de criar artificialmente siameses. As crianças morreram de gangrena após vários dias de sofrimento indescritível.

O médico nazista também queria descobrir um meio de produzir olhos azuis sem a genética, e chegou a injetar compostos químicos nos olhos de prisioneiros na esperança de colori-los. Ele ainda tinha especial interesse em pessoas com heterocromia – um olho de cada cor. Esses eram mortos para que seus olhos pudessem ser enviados a Berlim para estudo. Aliás, a perfeita integração entre o trabalho de Mengele em Auschwitz e seus colegas acadêmicos foi uma das coisas que chocaram o húngaro Nyislzy. Ele relembra a instrução que Mengele deu no preenchimento de certos formulários das necrópsias. “Quero cópias limpas, porque esses relatórios serão enviados ao Instituto de Pesquisa Biológica, Racial e Evolutiva em Berlim-Dahlem”, teria dito Mengele.

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Ao centro, Josef Mengele, em Auschwitz, acompanhado dos chefes do campo de concentração. (Reproduçåo/Divulgação)

“Foi assim que descobri que os experimentos realizados aqui eram checados pelas mais altas autoridades médicas em um dos mais famosos institutos científicos do mundo.” “Eu tinha de manter quaisquer órgãos de possível interesse científico, de forma que o dr. Mengele pudesse examiná-los”, prosseguiu Nyislzy em seu relato apavorante. “Os que poderiam interessar ao Instituto Antropológico em Berlim-Dahlem eram preservados em álcool. Essas partes eram especialmente embaladas para ser enviadas pelo correio. Marcadas como ‘Material de Guerra – Urgente’, elas recebiam prioridade máxima no trânsito. No curso de meu trabalho no crematório, eu despachei um número impressionante de pacotes assim. Os diretores do Instituto em Berlim-Dahlem sempre agradeciam calorosamente o dr. Mengele por esse material precioso e raro.”

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Em Auschwitz, os nazistas também realizavam experimentos de infectologia – simplesmente observando como certas doenças se espalhavam entre os prisioneiros nos diversos campos que compunham o complexo. Quando a epidemia ameaçava escapar do controle, o campo era sumariamente “encerrado” – todos os seus prisioneiros eram executados nas câmaras de gás. A fome também era um dos desafios a serem vencidos pelos cativos –e mais uma oportunidade para estudos médicos. Casos de disenteria causada pela inanição eram extremamente comuns, e os doutores nazistas se aproveitaram disso para fazer 150 necrópsias de vítimas (todas realizadas por Nyislzy) e assim identificar todos os efeitos patológicos da diarreia nos prisioneiros.

Mengele também esperava provar com seus estudos que os judeus eram uma raça inferior, degenerada. O médico húngaro que trabalhou ao seu lado nesses experimentos bizarros relembra um episódio marcante. “Quando os comboios chegaram, o doutor Mengele espiou, entre aqueles alinhados para a triagem, um homem corcunda de cerca de 50 anos. Ele não estava sozinho; a seu lado estava um menino bonito e alto, de 15 ou 16 anos. O rapaz, contudo, tinha um pé direito deformado, que havia sido corrigido por um aparato feito de uma placa de metal e um sapato de solado grosso, ortopédico. Eles eram pai e filho. O doutor Mengele pensou ter descoberto, na pessoa do pai corcunda e seu filho sofrido, um exemplo soberano para demonstrar sua teoria da degenerescência da raça judia. Ele os fez sair da fila imediatamente. Pegando seu caderno de anotações, rabiscou algo nele e confiou os dois aos cuidados de um soldado da SS, que os levou ao crematório número 1.”

Lá, Nyislzy foi instado a examinar os dois detalhadamente, antes que fossem executados e então voltassem ao laboratório, para um post mortem. Concluído o estudo, Mengele pediu ao húngaro que desenvolvesse um meio de rapidamente dissolver os tecidos moles e preservar apenas o esqueleto dos dois, que seriam enviados a Berlim para exposição, demonstrando as características degeneradas da raça judia.

Em janeiro de 1945, a Alemanha perdia territórios diariamente, e a derrota era iminente. Isso levou à evacuação de Auschwitz, que foi libertado pelo Exército Vermelho ainda naquele mês. Mengele conseguiu fugir da Europa e, passando pela Argentina, acabou vivendo o resto dos seus dias clandestinamente no Brasil. Apesar de todos os esforços para caçá-lo, ele escapou impune. E nada rigorosamente científico saiu desses experimentos pavorosos. “Como os estudos etnológicos, como as noções de uma raça superior, a pesquisa do doutor Mengele sobre as origens dos nascimentos duais era nada mais que uma pseudociência”, escreveu Nyiszli.

Outros médicos nazistas praticaram crueldades similares com nenhum resultado que não fosse a tortura e a morte indiscriminada de suas cobaias. Entre eles estava Karl Gebhardt, cirurgião e médico pessoal de Heinrich Himmler, o chefe da SS e um dos homens mais poderosos no regime de Hitler. No campo de concentração de Ravënsbruck, Gebhardt cometeu atrocidades como estudos de regeneração óssea que envolviam a remoção de porções de osso e até membros inteiros de mulheres.

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Muitas vezes, a mesma vítima voltava à mesa de operação para repetidas remoções de porções da tíbia, por exemplo. Nessas condições, muitas morriam por falta de condições cirúrgicas adequadas. Mas quem sobrevivia aos procedimentos terminava executada por um tiro. Não podia haver testemunhas. Gebhardt foi um dos médicos nazistas capturados, julgados e condenados à morte no tribunal de Nuremberg (Alemanha), após o fim da guerra.

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Jarro com sabão feito de tecidos humanos – exibido como prova contra oficiais nazistas em Nuremberg. (Hulton Archive/Getty Images)

Nem tudo era pseudociência, contudo. Alguns dos estudos alemães feitos com prisioneiros tiveram resultados contundentes – embora os métodos fossem igualmente inaceitáveis. Trabalhando no campo de concentração em Dachau, o médico Sigmund Rascher, também membro da SS, estava preocupado com problemas enfrentados pelos pilotos da Luftwaffe, a Força Aérea alemã. Com acesso a Himmler, Rascher conseguiu em 1942 permissão para realizar seus próprios experimentos com prisioneiros. Seu primeiro foco foi na compreensão dos efeitos de altas altitudes sobre os pilotos. De início, o médico havia solicitado a Himmler “dois ou três criminosos profissionais”, mas seus testes acabaram fazendo centenas de vítimas.

Uma câmara pressurizada fornecida pela Luftwaffe foi levada a Dachau, e o prisioneiro era trancado dentro dela, para em seguida sofrer uma despressurização que equivalia à existente em grandes altitudes. Logo após isso, a pressão era rapidamente aumentada, o que permitia ao médico simular as condições experimentadas por um piloto em queda livre sem uma fonte de oxigênio. Naturalmente, a maioria das cobaias morria no processo. Após ver um relatório de um dos experimentos fatais, Himmler teria instruído que, se um prisioneiro sobrevivesse a esse tratamento, deveria ser “perdoado” com prisão perpétua.

Rascher respondeu que os prisioneiros usados até aquele momento eram apenas poloneses e russos, de modo que ele acreditava ser desnecessária qualquer forma de anistia. De toda forma, a oportunidade de aprender mais com os sobreviventes não seria perdida – em vários desses experimentos, quando o prisioneiro resistia, passava por uma necrópsia ainda vivo, para que se estudassem os efeitos em seus pulmões. O mais completo horror.

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Esta imagem, chocante, foi feita por médicos nazistas para documentar a morte de um prisioneiro utilizado como cobaia. O propósito era marcar quanto tempo ele levaria para morrer por falta de oxigenação no cérebro. (Bettmann/Getty Images)

Depois de atacar os efeitos da altitude, Rascher passou a investigar outro problema enfrentado por pilotos. Uma vez que eram derrubados, eles muitas vezes conseguiam sobreviver apenas para cair de paraquedas no Mar do Norte, onde estariam cercados de gelo e sem água potável. Por isso, o médico nazista achou por bem realizar congelamentos controlados de cobaias, a fim de descobrir a melhor forma de reaquecê-los e favorecer sua sobrevivência.

Dois métodos de congelamento foram usados em cerca de 300 prisioneiros. Por vezes, eles passavam até 14 horas nus sob frio violento. Em outros casos, eram mergulhados num tanque de água congelada por três horas, com o pulso e a temperatura interna medidos por uma série de eletrodos. Para reaquecê-los, o método mais usual e bem-sucedido era por imersão em água quente.

O sadismo e a perversão dos experimentos não tinham limites. Após a sugestão de Himmler de que calor animal poderia ter um efeito diferente e mais positivo que o artificial, quatro mulheres romenas foram trazidas do campo de concentração de Ravensbrück e duas delas eram colocadas em volta do homem congelado. “Rascher teve grande interesse em registrar o fato de que não apenas alguns deles não apenas responderam bem a essa manobra, mas um deles inclusive começou a copular quando recobrou ainda que vagamente a consciência”, relatou o historiador americano Jonathan Moreno.

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Ex-prisioneira polonesa mostra, nos julgamentos de Nuremberg, ferimentos que sofreu ao ser usada como cobaia. (Photo 12/Getty Images)
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Rascher era tão maluco que não sobreviveu nem mesmo no sociopata regime nazista. Atacando o problema da necessidade de aumentar o número de filhos entre os alemães, ele sugeria que era possível aumentar a vida reprodutiva da mulher, e divulgou o fato de que sua própria esposa tinha dado à luz três crianças mesmo depois de chegar aos 48 anos de idade.

Himmler chegou a usar uma fotografia da família como material de propaganda. Mas, durante a quarta “gravidez”, descobriu-se que o casal Rascher estava sequestrando bebês. O médico foi preso em 1944 e executado pelos próprios nazistas em 26 de abril de 1945. Os resultados de seus experimentos macabros, contudo, encantaram a comunidade médica alemã. Promissores, eles ensejaram a realização de uma conferência em Nuremberg, em outubro de 1942. Intitulada “Problemas Médicos Vindos de Perigos no Mar e Dificuldades de Inverno”, a reunião teve a participação de 95 médicos e cientistas da área de ciências biológicas.

As minutas da conferência enfatizavam que “agora se tornou possível conduzir investigações em seres humanos que foram resgatados após terem estado em água fria por um longo período”. “Houve cuidado em não mencionar as circunstâncias em que essa nova possibilidade apareceu”, destaca Moreno, ao lembrar que um dos mais proeminentes participantes da conferência foi Hubertus Strughold, médico do Instituto Experimental Alemão para Aviação, em Berlim.

Strughold mais tarde seria um dos primeiros recrutados na Operação Paperclip, realizada pelos Estados Unidos para “capturar” o conhecimento desenvolvido pelos nazistas. O programa espacial americano, por exemplo, foi fortemente assentado nessas bases. Wernher von Braun, o criador dos foguetes V-2 usados para atacar Londres (e, por sinal, eram construídos com mão de obra escrava dos campos de concentração), também foi levado à América na Operação Paperclip e acabou por desenvolver o Saturn V, lançador que levaria o homem à Lua entre 1968 e 1972. E a proteção à saúde dos primeiros astronautas se beneficiou dos experimentos de altitude realizados nos campos de concentração.

Os currículos de Strughold e Von Braun foram devidamente “desnazificados”, antes que eles fossem apresentados ao público americano. Os soviéticos fizeram procedimento similar e integraram especialistas alemães a seu próprio programa espacial. Além de demonstrar a que ponto pode chegar o cinismo entre os vencedores da Segunda Guerra, isso indica que, gostemos ou não, pelo menos alguns dos horrores nazistas produziram resultados. Ou seja, eram ciência. Só não eram a ciência que moralmente devemos praticar.

Dificilmente haverá demonstração mais contundente de que a ciência, por si só, não é benévola. É preciso que ela venha acompanhada de uma moralidade que respeite as diferenças e as liberdades individuais – sem espaço para exceções.

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