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Black das Blacks: Super com preço absurdo

Estudo de psicografia: ciência ou fé?

A Universidade Federal de Juiz de Fora mantém uma linha de pesquisa de cartas mediúnicas. É algo válido dentro de uma instituição pública de ensino?

Por Marcelo Yamashita
1 nov 2025, 12h01

O texto a seguir foi publicado originalmente em 24 de outubro na Revista Questão de Ciência. Vale a visita ao site.Não é de hoje que o Espiritismo manifesta o desejo de se mostrar científico. O próprio Allan Kardec, no livro A Gênese, aproxima-se da ciência ao afirmar que “o Espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental […] É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação”.

Como homem de seu tempo, é compreensível que Kardec tenha se impressionado com truques que se popularizaram na Europa em meados do século 19, como mesas girantes ou tabuleiros alfabéticos, e concluído que fenômenos assim poderiam ser evidência genuína de vida após a morte ou de forças até então desconhecidas, justificando um estudo mais detalhado com experimentos controlados. Isso foi nos anos 1850. Avancemos dois séculos.

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Em 2025, Ano Internacional da Ciência e Tecnologias Quânticas, a Universidade Federal de Juiz de Fora mantém em sua estrutura de pós-graduação uma linha de pesquisa dedicada à investigação de cartas mediúnicas – não se trata, porém, de um estudo no contexto de psicologia, antropologia ou sociologia.

O artigo Investigation of mediumistic letter: A deceased son supposedly writes to his parents, publicado na Transcultural Psychiatry, pressupõe que a hipótese da psicografia – que atribui o fenômeno psicossomático da escrita automática, em que uma pessoa produz textos sem ter controle consciente sobre o que está sendo escrito, à influência dos espíritos dos mortos  –  é plausível, e conduz um experimento com um único casal para concluir que algumas afirmações vagas são evidências do que os autores denominam “recepção anômala de informação”.

O estudo analisou uma carta supostamente psicografada, redigida por um médium. Antes da redação da carta, o procedimento incluiu uma breve entrevista de 43 segundos entre o médium e os pais do jovem falecido, a quem a autoria da carta viria a ser atribuída. O casal de pais também preencheu uma ficha com dados básicos do filho, como nome, idade, causa e data da morte. A sessão foi filmada, e o médium escreveu a carta sem interação com os pais durante o transe.

A carta foi avaliada em entrevistas com os pais, nas quais cada afirmação foi classificada em seis categorias: informação não avaliável (saudações ou expressões vagas), não reconhecida (dados incorretos ou implausíveis), genérica (conteúdos amplos que poderiam valer para muitas pessoas), divulgada (informações previamente informadas ao médium), dedutível (inferências possíveis a partir de dados já fornecidos) e específica (detalhes reconhecidos pelos pais e improváveis de terem sido obtidos por meios convencionais).

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As seis afirmações consideradas específicas descreviam hábitos e características pessoais do jovem que, segundo os pais, não poderiam ser deduzidos ou conhecidos pelo médium. A carta mencionava que ele costumava se esconder para assustar a mãe, deixava o prato sujo sobre o balcão após comer, e ouvia da mãe a frase “menino, pega essa toalha molhada!”, porque deixava a toalha sobre a cama depois do banho. Também dizia que ele sonhava em comprar um carro aos 18 anos, que quando criança brincava com a mangueira de água no quintal e que tinha um sorriso largo e dentes grandes e marcantes.

A carta também incluía uma assinatura que foi analisada por um perito da Polícia Federal. O especialista comparou a assinatura da carta com nove assinaturas autênticas do rapaz, avaliando vários aspectos da grafia. O laudo concluiu que as assinaturas foram produzidas por pessoas diferentes. Além de as afirmações classificadas como “específicas” não parecerem se referir a características exclusivas de uma única pessoa (talvez a única que eu não pudesse também atribuir a mim mesmo fosse o sorriso largo), a própria definição do que se considera específico é subjetiva e pouco compatível com o rigor exigido em um trabalho científico. Perguntas objetivas, como “qual é o nome dos seus tios?” ou “qual é o nome do seu melhor amigo?”, com respostas previamente registradas, constituiriam um método muito mais adequado para avaliar a precisão das informações contidas na carta.

Outra questão refere-se ao objeto de estudo. Como nenhum experimento controlado de boa qualidade mostrou que qualquer ser humano tenha percepção extrassensorial ou acesso à consciência de pessoas mortas, assumir que fenômenos anômalos como telepatia, clarividência ou comunicação com os mortos são reais e que são hipóteses a serem consideradas em um estudo científico é um típico exemplo da ciência da Fada dos Dentes.

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Pode-se medir a quantidade de dinheiro que a Fada dos Dentes deixou sob o travesseiro, analisar se o pagamento é maior para o primeiro ou último dente ou comparar se a recompensa é maior para um dente embalado em um plástico ou em um lenço de papel. Pode-se, ainda, coletar dados de diversas crianças para ter uma estatística razoável sobre o comportamento e as preferências pessoais da fada. O detalhe, porém, é que há uma explicação muito mais plausível para os resultados experimentais do que supor que exista uma Fada dos Dentes.

Cada pessoa é livre para professar a fé que desejar e custear suas próprias crenças. O que causa perplexidade é ver uma universidade federal – financiada por recursos públicos e responsável por formar pesquisadores – empregar infraestrutura e salários para fomentar estudos de natureza religiosa, cuja pertinência seria maior em um centro espírita do que em um programa de pós-graduação.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência.

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