Encélado, satélite de Saturno, está “sangrando” água após impacto
O astro, apesar de seus - 198ºC de temperatura máxima, tem uma região cheia de gêiseres no polo sul, com chance de abrigar microorganismos
“Quão pobres são os que não tem paciência! Qual é a ferida que não sara aos poucos?”
Bonito isso, não? A frase está no terceiro ato da peça Otelo, de Shakespeare. O mais influente dramaturgo da história não sabia, mas sua prescrição de paciência para a cura de feridas está sendo seguida há 100 milhões de anos por Encélado, satélite natural de Saturno.
Dos corpos do Sistema Solar, o pequeno astro, com só 500 quilômetros de diâmetro, é um dos mais fortes candidatos a abrigar vida fora da Terra. Debaixo de uma crosta de gelo de 20 quilômetros de espessura – mesmo no horário mais quente, a temperatura na superfície bate só –198 ºC – jaz um oceano oculto que forra toda a camada intermediária da lua. Fica fácil acompanhar a descrição com a ilustração que abre a matéria. Já se sabe desde 2005 que no polo sul de Encélado os termômetros chegam a meros −116 °C. O lugar ainda é gelado demais para o ser humano, sem dúvida, mas é no mínimo 85 ºC quente do que o resto do satélite – uma variação brusca demais para ser explicada por hipóteses tradicionais, como o movimento de suas marés subterrâneas. Para completar o mistério, a região também ostenta atividade geológica intensa: gêiseres abrem espaço através da grossa superfície de gelo e expelem jatos d’água de quilômetros de altura no espaço aberto – o vapor cria uma espécie de trilha de cometa atrás do satélite, e forma um dos anéis de Saturno. A energia liberada no processo, segundo a New Scientist, equivalente à produzida por 4000 turbinas de energia eólica na potência máxima.
Agora, um grupo de cientistas propõe que todo esse calor nas partes baixas é, na verdade, resquício de um choque com outro astro que teria ocorrido há cerca de 100 milhões de anos. “Um impacto poderia fornecer as condições para um relevo como o que observamos hoje”, explicou à imprensa a pesquisadora Angela Stickle, da Universidade Johns Hopkins. “O ferimento sara rápido, mas deixa uma cicatriz.” No caso, cicatrizes, que são conhecidas há pelo menos uma década: quatro fendas bastante quentes que lembram a pele de um tigre em aparência. E só.
A cratera, nesse caso, não teria vivido para contar a história: só uma hora após a pancada, a temperatura de Encélado já seria baixa o suficiente para recuperar 10 centímetros da casca de gelo que a envolve. De resquício, ficaram só as rachaduras que vemos hoje. Com o tempo, conforme a região afetada se aproximar mais e mais de sua temperatura original, a tendência é que a água do oceano oculto pare de “vazar”, e as cicatrizes se fechem. Sem dúvida o cooler de cerveja mais eficiente do mundo.
Outra hipótese curiosa é a de que o local do impacto nem sempre tenha sido o polo sul do planeta: o desequilíbrio gravitacional causado pelo choque teria feito a pequena lua girar no próprio eixo, deixando a cicatriz apontada para baixo. Essas duas novas propostas, baseadas em avançadas simulações de computador, foram expostas por Stickle e sua equipe no evento Lunar and Planetary Science Conference (“conferência de ciências planetárias e lunares”, em tradução livre), que ocorreu no Texas na semana passada.
Essa não é a primeira vez que a lua geladeira se prova uma caixinha de surpresas. Apesar do porte humilde (se o satélite pousasse em Minas Gerais, ele caberia com folga no território do estado), a mistura de água e intensa atividade geológica em seu hemisfério sul é ideal para o surgimento de formas de vida primitivas análogas aos nossos extremófilos – microorganismos muito simples adaptados à sobrevivência em ambientes inóspitos de alta pressão ou temperatura. A composição química das trilhas de vapor deixadas pelo satélite em seu caminho – que incluem carbono, nitrogênio e sais inorgânicos – dá ânimo aos astrobiólogos, especialistas em estudar as condições de vida de astros que não são a Terra.