Como alimentar um milhão de pessoas em Marte
Vegetais cultivados em túneis de LED, farinha de grilo e carne de laboratório — conheça a dieta marciana e entenda por que ela seria ótima aqui na Terra.
Se você é daquelas pessoas que venderia tudo o que tem para embarcar em uma nave do Elon Musk e virar um colono em Marte, é bom ir perdendo o nojo de insetos e se acostumar com a perspectiva de tê-los no seu prato. Especialistas estão convictos de que bichos como o grilo serão uma das maiores fontes de proteína para humanos vivendo fora da Terra nas próximas décadas. Estudo recente encarou a alimentação marciana como nunca antes.
Dois cientistas planetários da Universidade da Flórida Central, nos EUA, escreveram um artigo publicado em agosto no periódico New Space em que investigaram com todo o rigor científico o que seria preciso para alimentar uma cidade de grandes proporções no planeta vermelho. Mais especificamente, com uma população em torno de um milhão de pessoas — número de habitantes que a SpaceX espera alcançar após um século de colonização.
Kevin Cannon e Daniel Britt desenvolveram um modelo de crescimento populacional através de imigração da Terra e por nascimentos de marcianinhos. Cerca de 6,9 mil missões tripuladas seriam o suficiente para transportar um milhão de pessoas ao longo de 100 anos. Nesse período, nasceriam algo em torno de 340 mil bebês em Marte, com uma taxa de natalidade parecida com a dos países desenvolvidos.
Ao fazer uma revisão da literatura sobre como produzir comida em outros mundos, eles constataram que, até agora, a grande maioria dos estudos focava no cultivo de vegetais pouco calóricos, que não dão conta de encher uma pança nem aqui na Terra, que dirá de seres humanos vivendo em condições bem menos amigáveis. Os pesquisadores também trabalharam com uma abordagem bem pé no chão para tratar a questão.
Naturalmente, no curto prazo, ranchos espaciais produtores de carne bovina e de laticínios estão fora de cogitação por um motivo bem simples: não sabemos como transportar vacas e bois em viagens interplanetárias. Mas, ao mesmo tempo, nem todo mundo que embarcar nessa aventura estará disposto a aderir a uma dieta 100% vegetariana ou vegana. Como vai ser? Bem, é aqui que entram as fazendas de insetos e a carne feita em laboratório.
Quando se pensa na produção de alimentos em Marte, duas variáveis devem ser colocadas com todo o cuidado na balança — a quantidade de recursos necessários para cultivá-los e o tanto de calorias que eles fornecem. Tudo será contado, então cada gota de água e cada grama de solo e de ração terão muito valor. Nessa, logo de cara, o boi já perde de lavada.
Por outro lado, insetos como o grilo, proteicos e nutritivos, despontam como ótima opção. Precisam de poucos insumos para sobreviver e crescer, ao passo que oferecem boas doses de calorias. Nós da civilização ocidental ainda achamos a ideia nojenta, mas para 2 bilhões de pessoas em 80% dos países da Terra, que consomem quase 2 mil espécies de insetos comestíveis, eles são um reforço totalmente válido e legítimo à dieta cotidiana.
Já existem diversas empresas comercializando produtos que usam os bichinhos como base, então mesmo quem sente asco em se imaginar mascando exoesqueletos crocantes, ainda assim pode comê-los como farinha misturada nas receitas, ou em barras de proteína. Além de insetos, muito provavelmente o prato de colonizadores marcianos vai conter carne fruto da chamada agricultura celular — bifes de boi ou filés de peixe cultivados a partir de células.
É uma opção muito mais “limpa” que a tradicional pois não envolve sofrimento animal, nem carnificinas em matadouros ou degradação ambiental. Nos últimos anos, houve bastante avanço na área graças à atuação de grande número de startups que receberam vultosos investimentos para desenvolver as tecnologias necessárias para tornar isso uma realidade. Além da carne em si, alga, leite e ovos dessa linha logo devem chegar aos supermercados.
E há, é claro, os legumes e vegetais. Eles terão de ser cultivados ao longo de grandes túneis iluminados por luzes LED com a frequência certa para mantê-los saudáveis em ambientes fechados. Tanto sistemas hidropônicos quanto aeropônicos (em que as plantas ficam suspensas no ar e recebem gotículas de solução nutritiva) podem funcionar, mas exigem aparatos e suportes pesados que teriam de ser trazidos da Terra.
Uma alternativa mais eficiente seria fertilizar o estéril e inorgânico solo marciano para que se possa plantar nele — mas ainda teremos que descobrir como. Cultivos como trigo, milho, soja, amendoim, batata doce e tomate são considerados apropriados para Marte, por não consumirem tanta água. A engenharia genética será uma grande aliada para aumentar a resistência e produtividade das plantas, além de fazê-las sugar mais CO2, por exemplo.
Partindo das necessidades alimentares de um milhão de pessoas, Cannon e Britt simularam o uso de terra para uma dieta à base de trigo, milho, batata doce, grilos e frango de laboratório. Em um século, a colônia alcançaria a autossuficiência alimentar, mas até lá, cerca de 54 mil naves de carga teriam que trazer suprimentos da Terra. As lavouras ficariam em 14,5 mil quilômetros de túneis, que podem estar dentro de estruturas verticais.
É claro que os detalhes por trás disso tudo ainda terão de ser aprimorados, mas o estudo oferece um panorama inédito bastante realista de como será a produção e o consumo de alimentos nas colônias humanas permanentes em outros mundos. E, no final das contas, isso pode acabar sendo muito bom até mesmo para o nosso planeta natal.
“As restrições impostas por Marte — uma atmosfera fria e fina — força você a produzir comida de jeitos que são na verdade mais sustentáveis e éticos dos que usamos na Terra com as atuais práticas de agricultura industrial”, Cannon disse ao Space.com. “Então, fazer a transição para uma ‘dieta marciana’ pode ajudar nosso planeta”, conclui. Para estimular isso, o cientista planetário criou até um projeto: o Eat Like a Martian. Topa encarar?