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Alfred Russel Wallace: o “outro cara” da evolução

Ele foi tirado da escola aos 14 anos e perdeu o irmão para a febre amarela no Brasil. Também passou por um naufrágio que destruiu anos de suas pesquisas. Mas isso não o impediu de bolar a teoria da seleção natural antes que Darwin publicasse suas descobertas. Entenda quem foi Wallace e o peso real de suas ideias.

Por Maria Clara Rossini
Atualizado em 21 Maio 2024, 17h48 - Publicado em 20 out 2022, 14h35

Olhe para os dois lados antes de atravessar a praia. Essa é a dica mais valiosa que se pode dar aos turistas que vão a Salinas, uma cidade litorânea a 200 quilômetros de Belém. Suas praias não só permitem a entrada de carros como se transformam num grande estacionamento ao longo da faixa de areia. Para tomar banho de mar, as mães guiam os filhos pela mão em meio ao tráfego intenso de veículos.

Mas essa não é a única peculiaridade de Salinas. O lugar também teve um pequeno papel na história da descoberta mais importante da biologia. Foi lá que o britânico Alfred Russel Wallace teve seu primeiro contato com o Brasil, em 26 de maio de 1848 (1). A partir de Salinas, o naturalista de 25 anos faria uma viagem de quatro anos pela Amazônia, sempre de barco. Lutava contra o enjoo para rascunhar em seus caderninhos as evidências empíricas daquilo que viria a ser sua teoria.

Aqui vai ela: Wallace acreditava que as espécies tendiam a variar indefinidamente a partir de um ancestral. Um mamífero terrestre, por exemplo, pode dar origem a um boto, dado o devido tempo. A “transformação” ocorre ao longo de várias gerações, nas quais cada descendente se diferencia um pouquinho dos seus pais. Quem nasce com características vantajosas para determinado ambiente (seja uma mordida mais forte, uma pelagem camuflada ou, no caso do proto-boto, capacidade de ficar mais tempo debaixo d’água) tem mais chances de sobreviver e passar esses traços adiante. Dessa forma, pressões de sobrevivência fazem surgir novas espécies.

Familiar? Wallace chegou a essas conclusões de forma independente de Charles Darwin – e ninguém plagiou ninguém. “Nunca vi coincidência tão assustadora”, escreveu Darwin (2). “Se Wallace tivesse lido meus rascunhos, ele não poderia ter feito um resumo melhor!”

Mas a história quis que Alfred Russel Wallace ficasse restrito aos rodapés de textos e menções breves nas aulas de ensino médio. A questão é: por que alguém com ideias tão revolucionárias também não é reconhecido amplamente como pai da teoria da evolução? Nas próximas páginas, conheça as viagens, ideias e controvérsias do homem que, com um pouquinho de sorte, poderia ter se tornado capa dos livros didáticos de biologia.

Retrato de Alfred Wallace.
(London Stereoscopic and Photographic Company/Wikimedia Commons)

Largados e pelados

Wallace nasceu quando Darwin completava 14 anos. Naquela época, o garoto Darwin estudava em uma escola anglicana e se preparava para entrar na faculdade de medicina. Com a mesma idade, Wallace foi expulso da escola porque sua família passava por dificuldades financeiras. Pouco tempo depois, ele começou a trabalhar como agrimensor com um de seus oito irmãos. Aos 21, já lecionava agrimensura e cartografia em uma universidade na cidade de Leicester.

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Na faculdade, ele conheceu (o também naturalista) Henry Bates. Os dois passavam horas juntos na biblioteca e competiam para ver quem coletava os besouros mais interessantes. Como quem não quer nada, Wallace lançou a ideia de fazer uma viagem à Amazônia. A proposta era ousada: sabia-se pouquíssimo sobre o norte do Brasil na época. Wallace queria ser um dos primeiros a explorar o futuro paraíso dos biólogos. Bates topou.

A dupla dinâmica chegou à costa brasileira pelo porto de Salinas (que na época não passava de uma vila), mas esperou para desembarcar em Belém, que tinha meros 15 mil habitantes na época (3). Curiosamente, o jovem Charles Darwin já havia pisado em terras brasileiras 16 anos antes, em 1832. Salvador e Rio de Janeiro faziam parte do itinerário do HMS Beagle – a famosa viagem que o inspirou a elaborar a teoria da evolução.

Wallace e Bates subiram o rio Amazonas até chegarem à bifurcação que separa o rio Negro e o Solimões. A partir daí, cada um seguiu por um braço d’água em uma separação amigável, típica de dupla sertaneja. No rio Negro, Wallace percebeu que espécies diferentes habitavam cada margem. Isso não rolava em rios da Europa, ou mesmo com os rios pequenos da Amazônia. Ficou com uma pulga atrás da orelha.

Ele concluiu que os rios grandes funcionam como uma barreira para isolar as espécies, já que elas não conseguem cruzar de um lado para o outro. O interessante é que isso vale até para aves e insetos, que teoricamente não teriam problema em voar sobre a água. Wallace supôs que, nesse caso, haveria uma barreira não explícita que separa as espécies – por exemplo, predadores terrestres ou alimentos que não existem na outra margem. O pensamento foi se sofisticando.

A Amazônia tinha material suficiente para anos de pesquisa. E o naturalista enviava espécimes constantemente para serem vendidos na Inglaterra, então não tinha que se preocupar com dinheiro. Mas havia mais um personagem nessa história: Herbert Wallace. O irmão caçula havia chegado à Amazônia para ajudar o mais velho com as transações de animais para a Europa. Pouco antes de retornar ao país natal, Herbert morreu de febre amarela, a doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, endêmica na Amazônia.

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Ao mesmo tempo em que estava enlutado pela morte do irmão, Wallace também temia pela própria vida: entendia que se passasse mais tempo na Amazônia provavelmente morreria. No navio de volta para a Inglaterra, ele de fato foi acometido por uma febre violenta.

Sobreviveu, mas nem deu tempo de respirar aliviado. Na metade do caminho de volta para a Europa, Wallace ouve o capitão bater na sua cabine: “Temo que o navio esteja pegando fogo. Venha dar uma olhada e me diga o que acha”. Em pouco tempo, um incêndio provocado por uma carga de óleo de copaíba tomou conta da embarcação. O naturalista só conseguiu carregar alguns cadernos debaixo do braço antes de entrar no bote salva-vidas. Em seu diário de viagem, ele descreve como foi ver, de longe, quatro anos de anotações, espécimes e pesquisas serem destruídos diante dos seus olhos.

O bote ficou à deriva por nove dias antes de ser resgatado por outra embarcação. Wallace escapou da morte duas vezes seguidas, e prometeu a si mesmo que nunca mais exploraria regiões exóticas. Menos de dois anos após retornar à Inglaterra, porém, o naturalista já estava de olho em uma terra ainda mais distante – dessa vez, a que consolidaria em sua mente a ideia mais brilhante que qualquer biólogo já teve.

Embarcação naufragando em mar agitado, com tripulação, incluindo Alfred Wallace jovem, espantados e atribulados. Elementos que remetem a anotações e estudos científicos voando pelos ares e boiando na água do mar, arruinados (papéis de anotações, cadernos/livros, vidrinhos remetendo a amostras de espécimes, etc.)
(Joana Fraga/Superinteressante)

Próxima parada: arquipélago malaio

Se você tem medo de abelhas, não vá para as Ilhas Molucas, na Indonésia. É lá que vive a maior espécie do mundo – quase do tamanho de um cartão de crédito. O monstro de 6 cm é conhecido como “abelha gigante de Wallace”. Se o seu pavor for de sapos, vale o mesmo. Sumatra e Bornéu, outras ilhas da região, abrigam o “sapo voador de Wallace”: ventosas entre seus dedos permitem que ele plane entre as folhas das árvores.

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Esses são só alguns dos 125 mil espécimes que Wallace coletou durante sua viagem ao arquipélago malaio – que, apesar do nome, engloba Indonésia, Filipinas, Timor Leste etc. Pelo menos mil desses animais não tinham sido catalogados. O naturalista passou oito anos pulando entre as ilhas e compensando pelo trabalho perdido no naufrágio.

Lá, percebeu algo curioso: algumas ilhas bem próximas abrigam espécies completamente diferentes. E não estamos falando de espécies mais ou menos diferentes, como rolava entre as margens dos rios amazônicos, e sim de seres alienígenas entre si. As ilhas a leste abrigavam espécies típicas da Austrália, enquanto as das ilhas a oeste eram mais vistas pela Ásia.

Não só isso: Wallace percebeu que havia uma linha imaginária determinando exatamente o limite entre as ilhas com cara de Austrália e as com cara de Ásia (veja no mapa abaixo). Hoje, sabemos que isso é consequência do movimento das placas tectônicas: no passado, esses grupos de ilhas estavam distantes, o que permitiu a evolução de espécies típicas de cada região. A aproximação entre elas só ocorreu há alguns milhões de anos – recentemente, na escala geológica.

Alfred Wallace explorando/estudando a Amazônia - uma cena em que ele anda na floresta, com flora típica amazônica, carregando instrumentos de cientista, como caderno de anotações, binóculos, etc. Há ter borboletas voando e alguns animais entre a mata, como macaquinhos nos galhos. No canto inferior direito, há um mapa da Linha de Wallace integrado à arte. Acima, um box com texto explicativo sobre ele.
(Joana Fraga/Arte/Superinteressante)

Toda espécie surge coincidindo no espaço e no tempo com uma espécie ancestral, que já existia antes. Em outras palavras, não surgem “do nada”. Isso pode parecer óbvio hoje, mas Wallace foi o primeiro a enunciar a ideia, em um artigo que foi popularizado como “Lei de Sarawak” (4) – nome de uma ilha do arquipélago.

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Beleza, o naturalista já tinha sacado que as espécies derivam umas das outras de alguma forma. A questão era explicar como isso acontece. O pulo do gato veio quase que como uma alucinação, quando Wallace passava por outra crise de febre. Ele lembrou dos besouros-tigre que viu ao longo da viagem: os que viviam na floresta eram verdes; os da praia, cor de areia; os que nasciam na lama, marrons.

Como os besouros eram programados para combinar exatamente com o seu entorno? Bom, talvez nascessem besouros de várias cores em cada região, mas aqueles que conseguiam se camuflar passavam despercebidos pelos predadores. Esses sobreviviam e tinham mais filhos, passando a cor hereditariamente para as gerações seguintes. Com o tempo, os besouros bem camuflados se tornavam maioria em cada ambiente.

Foi seu momento eureka. Ainda nas ilhas, Wallace escreveu outro artigo detalhando suas ideias (5). Era uma teoria ousada, então queria a opinião de alguém que também estivesse estudando a origem das espécies. O naturalista enviou o artigo para a Inglaterra, endereçado a um colega com quem já trocava cartas há anos: Charles Darwin.

Os dois barbudos

A teoria da seleção natural de Darwin era segredo de estado. Ele só revelava suas ideias para amigos muito próximos – segundo ele, era como se estivesse confessando um crime. Wallace não era um deles.

Você deve imaginar sua surpresa quando recebeu a carta de Wallace. Darwin havia passado os últimos 20 anos trabalhando em sua teoria da evolução, detalhada em um livro que ele planejava publicar algum dia: A Origem das Espécies. As ideias dos dois eram tão parecidas que Darwin chegou a usar alguns termos presentes na carta como títulos dos seus capítulos.

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Sorte que Darwin era bom caráter. Ele juntou suas palavras com as de Wallace e, em 1858, enviou um artigo para ser lido no encontro anual da Sociedade Linneana de Londres, chamado “Sobre a tendência das espécies de formar variedades”. Wallace ainda estava nas ilhas malaias, então nem ficou sabendo. Mas Darwin fez questão que o artigo fosse assinado pelos dois.

O mais velho não fazia ideia de em que pé estava a pesquisa do outro lado do mundo. Com medo de ser ultrapassado, antecipou a publicação de seu livro, que chegou às prateleiras já no ano seguinte, 1859. Só que não havia com o que se preocupar: o trabalho de Darwin era detalhado o bastante para provar que a teoria estava certa – o próprio Wallace reconhece o conterrâneo como o verdadeiro pai da evolução.

Alfred Wallace e Darwin trocando correspondências, cada um em um cenário diferente. Ambos estão retratados mais velhos, com barbas e cabelos brancos.
(Joana Fraga/Superinteressante)

Apesar da coincidência, as ideias dos dois não eram idênticas. Darwin,  acreditava que as espécies poderiam herdar características adquiridas pelos pais ao longo da vida (pois é, ele tinha um pé no lamarckismo). O exemplo clássico: se uma girafa esticasse muito seu pescoço ao longo da vida, seus filhos poderiam nascer com um pescoço um pouco maior. Wallace não comprava essa ideia – e hoje sabemos que ele estava certo.

Por outro lado, Wallace não acreditava no conceito de seleção sexual proposto por Darwin. A ideia é que as fêmeas contribuem ativamente para a evolução ao escolher parceiros com as melhores características para seus filhos. Isso também rola com os machos, mas o fato é que as fêmeas produzem menos filhos, por conta do período de gestação, então precisam ser mais seletivas. Um século e meio de pesquisas depois provam que quem acertou aí foi Darwin (6).

O terceiro ponto em que os dois discordavam é o menos comentado sobre a teoria de Wallace – e, de longe, o mais polêmico. O naturalista acreditava que a seleção natural tinha um limite, e que não poderia explicar as faculdades morais e intelectuais do homem. Para ele, isso dependeria de “alguma outra influência, lei ou agente”.

O lado B de Wallace

A comunidade cética tinha um pé atrás com Wallace. Ele mostrava um interesse especial pelo misticismo e acreditava em fenômenos sobrenaturais. Em 1866, aos 43 anos, publicou um livro (7) em que apresenta supostas evidências dessas manifestações, e ainda critica cientistas pela falta de interesse no assunto.

Ele não estava sozinho nessa. O contexto histórico da segunda metade do século 19 corroborava com tais crenças. Allan Kardec, principal mentor do espiritismo, havia acabado de publicar O livro dos espíritos, e cada vez mais se falava em conceitos como psicografia e clarividência. Em suma, Wallace acreditava que a seleção natural poderia explicar totalmente a origem das outras espécies, mas a evolução da mente humana dependeria de alguma força superior.

Hoje entende-se que a humanidade não é tão especial – outras espécies também demonstram capacidades intelectuais (comunicação, transmissão de cultura) e até “morais” (altruísmo). Ou seja: a seleção natural, sozinha, dá conta. Wallace não sabia. Mas sua própria teoria era a força superior por trás de tudo.

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Fontes (1) Livro “The Heretic in Darwin’s Court: The Life of Alfred Russel Wallace”, de Ross A. Slotten. (2) Carta endereçada a Charles Lyell, em 18 de junho de 1858. (3) Livro “A Narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro”, de Alfred Russel Wallace. (4) Artigo “On the Law hich has Regulated the Tntroduction of New Species”, de Alfred Russel Wallace. (5) Artigo “On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type”, de Alfred Russel Wallace. (6) Livro “Darwinismo”, publicado por Wallace sete anos após a morte de Darwin. (7) Livro “The Scientific Aspect of the Supernatural”.

Agradecimentos Viviane Arruda do Carmo, historiadora da ciência.

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