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A língua não é dividida em zonas de sabor, e você não sente doce só na ponta

Recentemente, a influenciadora Maíra Cardi disse que comemos chocolate errado, e que o certo é senti-lo com a extremidade da língua. Entenda a origem desse mito científico muito difundido.

Por Leo Caparroz
14 abr 2024, 19h00

A influenciadora Maíra Cardi postou um vídeo em seu Instagram ensinando a comer chocolate “da maneira certa”. Segundo ela, dependendo da parte em que você coloca o chocolate na sua boca, você pode ter mais ou menos prazer.

“Tem a maneira que você engorda e tem a maneira que você não engorda. Quando você come chocolate, você tem prazer, mas você tem prazer somente durante o momento que ele está na sua boca”, diz no vídeo. “Lá atrás, onde você coloca quando come de uma vez só, você não sente o doce do chocolate, porque a papila gustativa está na ponta da língua.” 

“Você acaba comendo infinitamente mais do que você comeria por conta de não sentir o doce. A parte docinha, aquela de degustar, você só pode sentir na ponta da língua.”

Maíra Cardi está falando isso com base nessa imagem abaixo, que você já deve ter visto em aulas de biologia ou na internet. Esse mapa aponta as regiões da língua responsáveis por identificar determinados sabores: a região 1 sentiria o sabor amargo, a 2 o azedo, a 3 o salgado e a 4, a pontinha da língua, o doce.

Um grafíco mostrando uma língua com regiões marcadas. A parte de trás está marcada como região 1. As laterais superiores estão marcadas como região 2. As laterais inferiores estão marcadas como região 3. A ponta da língua está marcada como região 4.
Esse gráfico, ou uma variação dele, pode até ter sido passado para você na escola. A região 1  é do sabor amargo, a 2, do azedo, a 3, do salgado e a 4, do doce. Mas ele está errado, sua língua não funciona assim. (MesserWoland/Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0))

Só tem um pequenino detalhe: essas zonas de sabor são um dos maiores mitos científicos que existem. 

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De onde veio o mito

O mapa tem origem nas pesquisas do cientista alemão David P. Hänig – mais especificamente, vem do seu artigo Zur Psychophysik des Geschmackssinnes, em alemão, “Sobre a psicofísica do sentido do paladar”.

Hänig jogava pequenas amostras salgadas, azedas, amargas e doces em diferentes partes da língua de voluntários. Com isso, ele descobriu que as beiradas e a ponta da língua são mais sensíveis do que a região central, e que certas partes precisavam ser mais estimuladas para reagirem ao sabor.

Apesar de não ter investigado o quinto sabor básico, o umami, os achados de Hänig são verdadeiros – diferentes partes da língua têm sim um limiar mais baixo para perceber certos sabores, mesmo que essas diferenças sejam mínimas. Ele não defendia, porém, que certas áreas correspondiam exclusivamente a certos gostos.

O problema não está no que ele descobriu, mas sim em como ele representou isso. Seu desenho era mais artístico do que algo cientificamente preciso. Em vez de mostrar que algumas partes da língua são ligeiramente mais sensíveis a certos sabores do que outras, ele dava a impressão de que certas partes eram inteiramente responsáveis por sentir cada sabor.

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A coisa piorou em 1940, quando Edwin Boring, um psicólogo de Harvard, refez o gráfico impreciso de Hänig para seu livro sobre sentidos, Sensation and perception in the history of experimental psychology (“Sensação e percepção na história da psicologia experimental”, em inglês). 

Boring desenhou uma versão ainda mais simplificada, que não mencionava a explicação completa, e induzia de vez os leitores à interpretação incorreta que impera até hoje.

Por isso, dá para creditar Boring por espalhar o mito das zonas de sabor – a nova figura mostrava uma língua com diversas regiões destacadas e um único sabor listado para cada uma, já bem parecida com as imagens que você conhece. Muitos pesquisadores já refutaram o mapa de sabores da língua, mas a ideia resiste no imaginário popular.

Como sua língua percebe sabores (de verdade)

Todas as partes da sua boca que tem papilas gustativas são sensíveis a diferentes sabores – que não estão demarcados por zonas. Cada pessoa tem cerca de 10 mil papilas gustativas, localizadas principalmente na superfície da língua – mas elas também estão no céu da boca e no fundo da garganta.

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Cada papila individual tem entre 50 e 100 células sensoriais especializadas que vão detectar os cinco gostos básicos: doce, salgado, umami, azedo e amargo. 

Quando você come um brigadeiro, toma um suco de limão ou amassa aquela macarronada, diferentes compostos químicos, como açúcares, sais, ácidos e aminoácidos, entram em contato com seus respectivos receptores nas papilas. Em resposta, elas liberam sinais neurais até uma parte específica do cérebro, responsável por processar o paladar: o córtex gustativo primário. Ele interpreta os sinais recebidos e junta eles com outras informações sensoriais, como cheiros. É a partir desse caminho que conseguimos perceber os sabores.

Nosso conhecimento de biologia permite refutar as zonas de sabores de várias formas. Como já conhecemos cada um dos diferentes receptores responsáveis por cada sabor, se o mapa fosse verdadeiro, as papilas gustativas no fundo da língua teriam apenas receptores amargos. Não é o caso.

Pesquisadores no final do século 20 também testaram o mapa de um jeito curioso: eles anestesiaram o nervo responsável pela comunicação da ponta da língua com o cérebro. Se o mapa estivesse correto, as pessoas perderiam a capacidade de sentir sabores doces. De novo, não foi isso que aconteceu – pelo contrário: elas não só continuaram sentindo o sabor como relataram que ele tinha ficado mais intenso.

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Mas não precisa ser nenhum cientista para desmascarar a ladainha: corte um limão na metade, encoste a pontinha da língua e tente não fazer uma careta. Nossos sentidos são mais complexos que um mapa, e não é qualquer coisa que vai driblar o seu cérebro.

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