A ciência da homossexualidade
A homossexualidade já foi registrada em mais de 1.500 espécies animais. Em humanos, a orientação não pode ser mudada na marra – terapias de "cura gay" não passam de aberrações. Entenda por que a homossexualidade é algo natural, e o que a evolução e a genética têm a ver com ela.
Por muito tempo, um dos principais argumentos para justificar a perseguição e opressão de minoriais sexuais era de que qualquer orientação diferente da heterossexual era, simplesmente, algo antinatural. No século 13, por exemplo, o filósofo Tomás de Aquino dizia que a “luxúria unissexual” (ou seja, a homossexualidade) era errada justamente porque não existia entre animais – sinal de que seria uma corrupção humana.
Só recentemente essa ideia caiu por terra. Recentemente mesmo: em 1986, apenas 38 anos atrás, a Suprema Corte dos EUA decidiu que os estados americanos podiam sim criar leis “antissodomia”. Na opinião da maioria dos juízes, o fato da homossexualidade não ser algo natural do ser humano – o que, hoje sabemos, está errado – excluía esses atos de proteções constitucionais.
Foi só em 2003 que esse mesmo tribunal reverteu a decisão, anulando as leis que proibiam relações entre pessoas do mesmo sexo ainda vigentes em 14 estados americanos. Dessa vez, a Corte citou estudos que comprovavam que o comportamento homossexual existia sim em animais, e, portanto, era natural.
E bota natural nisso. Atualmente, o comportamento homossexual já foi documentado em mais de 1.500 espécies, de cobras a libéluas, de estrelas-do–mar a moscas, de patos a vermes nematoides, passando por uma ampla variedade de mamíferos: girafas, morcegos, raposas e muitos primatas. Aqui, não falamos só de penetração, mas também de cortejo de parceiros – usando música e danças, por exemplo –, estímulo de genitais, ejaculação ou formação de núcleos familiares, por exemplo.
(Nota: cientistas geralmente não utilizam termos como “gay”, “homossexual” ou “lésbica” para falar de animais porque essas palavras descrevem identidades sexuais inerentemente humanas. Em vez disso, preferem termos como “comportamento sexual entre o mesmo sexo”. Aqui, para simplificar, tomamos a liberdade de utilizar os adjetivos mais comuns.)
Não se tem registro exato de quando humanos notaram, pela primeira vez, que o comportamento homossexual existia entre animais. Mas, dada a prevalência dele, provavelmente isso aconteceu várias vezes. O problema era o tabu em admitir.
Em 1834, por exemplo, o entomologista August Kelch observou dois besouros machos fazendo sexo. Ele relatou a descoberta numa revista científica (com direito a ilustração da cena), concluindo que o ato foi um estupro de um indivíduo mais forte sobre um mais fraco.
A publicação gerou um certo bafafá entre cientistas da época, que passaram a buscar uma razão para um comportamento tão anormal, obscuro. A hipótese mais aceita acabou sendo a de que os besouros não eram muito bons em distinguir machos e fêmeas, então o sexo gay era fruto de um mal-entendido (quem nunca? rs).
Foi só em 1896 que o entomologista francês Henri Gadeau de Kerville publicou uma hipótese revolucionária: talvez alguns insetos simplesmente… preferissem aquilo. Não é nem preciso dizer que essa ideia foi prontamente rejeitada pelos seus colegas e ficou perdida na história.
Fato é que, hoje, há um consenso de que o comportamento não heterossexual é bastante comum na natureza. Mas por quê?
Darwin explica
Em tese, como a baguncinha entre indivíduos do mesmo sexo não permite fazer bebês, ela não deveria existir na natureza de um ponto de vista estritamente evolutivo. A matemática da seleção natural é clara: se um comportamento não ajuda na reprodução, os genes que causam esse comportamento não são passados para as próximas gerações e tendem a desaparecer. O que explica esse paradoxo?
É claro que animais que apresentem comportamento homossexual ainda podem copular com indivíduos do sexo oposto e procriar – não são, afinal, estéreis. Mas flertar sempre exige energia e tempo – não dá para atirar para todo lado o tempo todo. Quanto mais relações homossexuais existirem em um grupo, menos relações hétero ocorrerão, e menores serão as chances de novos nascimentos. Ou seja: propor a bissexualidade animal não resolve todo o paradoxo.
Uma explicação plausível e já proposta é que o comportamento homossexual esteja ligado a um grupo de vários genes que, em outros contextos, têm efeitos diferentes e benéficos para a produção de bebês – como mulheres mais férteis, por exemplo. Um mesmo gene, afinal, pode ter (e com frequência, tem) vários papéis bioquímicos em vários contextos diferentes.
Dessa forma, a não heterossexualidade seria um subproduto de outra característica que, normalmente, se dá bem na seleção natural. É viável a manutenção de alguns poucos indivíduos que se reproduzem pouco ou nada se a contrapartida é a existência de vários outros indivíduos mais férteis, passando esses genes para a frente.
Outra hipótese relevante foi apelidada de “ajudante no ninho”, que prega que o comportamento evoluiu via um mecanismo ecológico conhecido como “seleção de parentesco”. Nesse cenário, características de um indivíduo continuam se perpetuando na espécie mesmo que ele não se reproduza porque seus parentes diretos têm um alto grau de sucesso reprodutivo, graças a ele.
Explicamos: indivíduos de espécies sociais que não têm filhos ainda podem ajudar na perpetuação de seus próprios genes ao cuidar de irmãos, sobrinhos, primos etc. (afinal, como seu DNA é muito parecido com o de seus parentes, cuidar deles é quase como cuidar de si mesmo). Esse é o mesmo mecanismo que explica o sucesso das colônias de abelhas, em que a maioria dos indivíduos são operárias inférteis com 75% de similaridade genética entre si – cuidando da rainha para que ela produza cada vez mais dessas irmãzinhas com ¾ de DNA idêntico.
Mais recentemente, um grupo de biólogos propôs uma terceira hipótese: pelo menos nos mamíferos, o comportamento homossexual pode ter surgido por razões sociais, e não puramente reprodutivas.
Em um artigo de 2023, esses pesquisadores analisaram a prevalência das relações em mais de 260 espécies de mamíferos – e notaram que a homossexualidade era especialmente comum nos que vivem em sociedade, com destaque para os primatas: 51 espécies, de lêmures a gorilas, apresentam o comportamento.
Os cientistas levantaram a hipótese que essa característica evoluiu várias vezes entre esses animais porque traz benefícios sociais. Fazer sexo, você bem sabe, não serve apenas para reprodução. Essas relações ajudariam essas sociedades a estabelecer e reforçar vínculos e alianças, reduzir conflitos e tensão e garantir mais cooperação – gerando mais harmonia no grupo e, assim, mais chances de sobrevivência para cada indivíduo.
Grande parte das transas entre bonobos, por exemplo, acontece entre fêmeas. Primatólogos notaram que quase todo episódio de conflito entre duas bonobos é seguido por um encontro sexual entre as duas. A liberação do hormônio oxitocina ajuda não só na reconciliação como faz com que as macacas passem a se ajudar mutuamente – compartilhando comida, cuidando dos filhotes ou ficando do mesmo lado em outros conflitos, por exemplo. O verdadeiro enemy to lovers.
O mesmo vale para os meninos. Em muitas espécies sociais, machos disputam fêmeas e território, o que resulta em assassinatos dentro da espécie. E acontece que as espécies com maior nível de comportamento não heterossexual também apresentam menores taxas de assassinatos, reforçando o argumento de que o comportamento homossexual surgiu como uma espécie de válvula de escape para reduzir a tensão e evitar conflitos. Faça amor, não faça guerra.
Por fim, uma quarta hipótese saiu em um artigo de 2019. Os pesquisadores argumentaram que, talvez, a própria noção de que o sexo gay é algo inerentemente negativo e custoso do ponto de vista evolutivo esteja errada.
A ideia é que o sexo gay pode existir na natureza desde que o próprio sexo foi inventado. Animais muito ancestrais teriam adotado a estratégia de acasalamento indiscriminado porque não sabiam distinguir (ou para não perder tempo distinguindo) machos e fêmeas.
Essa característica pode ter surgido uma única vez na árvore da vida e sido perpetuada desde então em vários de seus ramos – o que explicaria por que o comportamento foi observado em tantas espécies distintas de animais, de vermes a orangotangos. Transar com todo mundo pode ser mais certeiro do que escolher demais e acabar sem nada (a ideia nos parece absurda porque seres humanos exibem diferenças físicas óbvias entre os sexos, mas esse não é o caso de todo bichinho).
Qual das hipóteses está certa? Talvez um pouco de todas, em maior ou menor grau, para contextos ou espécies distintas. A natureza da não heterossexualidade é complexa, e o único fato é que algo a mantém viva na história evolutiva. Caso contrário, ela não seria tão comum.
Cadê o gene gay?
Se pesquisar as causas da homossexualidade em animais já era tabu, em humanos nem se fala. Há quem acredite que estudos científicos sobre o tema possam levar à patologização do tema ou a conclusões deterministas.
A população LGBTQIA+ tem razão em temer pesquisas desse tipo: por décadas, a ciência viu o comportamento como uma doença a ser corrigida, levando a iniciativas no mundo todo para tentar “curar” gays – com torturas físicas e psicológicas, castração química, choques elétricos etc.
Hoje, sabemos que tais atos abjetos são, além de claras violações aos direitos humanos, anticientíficas. A sexualidade de alguém não é uma doença e é impossível mudá-la à força – as supostas “terapias de reversão”, mesmo que não envolvam violência física explícita, só causam mais sofrimento psiquíco. A prática é, inclusive, banida em boa parte do mundo, e repudiada por toda organização de saúde de respeito.
Um fato é que a homossexualidade humana, assim como a observada em animais, sempre existiu e existirá. Estimativas distintas, feitas em populações separadas no tempo e no espaço, em culturas e sociedades diferentes, sempre chegam a algo entre 4% e 10% de não heterossexuais. Sinal de que há um componente biológico universal em jogo.
Apesar disso, é um tema difícil de estudar na ciência justamente porque o próprio conceito de sexualidade não é óbvio. Costumamos pensar em caixinhas: heterossexual, homossexual, bissexual. Mas, hoje, sabemos que um espectro descreve melhor a orientação humana: há quem, por exemplo, seja predominantemente hétero, mas que pode sentir atração pelo mesmo sexo em contextos específicos, por pessoas específicas. Como traduzir essa nuance nas pesquisas? É complicado.
Sabemos que a homossexualidade tem alguma influência genética já há algum tempo, graças a estudos feitos com gêmeos. Os gêmeos idênticos têm a mesma orientação sexual com mais frequência que os dizigóticos – o que evidencia que há uma mãozinha dos genes nas nossas atrações.
Que genes, exatamente? Vários candidatos foram estudados nas últimas décadas, nenhum com muita evidência. O maior avanço recente nessa linha de investigação veio num artigo de 2019, que analisou o genoma de 500 mil pessoas em busca de semelhanças entre pessoas que relataram, em questionários, já ter tido relações sexuais com alguém do mesmo sexo. A conclusão foi… bem, complexa.
Os cientistas analisaram genomas coletados de bancos de dados distintos, sendo o principal o UK BioBank, do Reino Unido. Eles compararam essas informações com respostas de questionários fornecidas pelos donos do DNA, que incluíam algumas perguntas sobre a sexualidade deles – a mais crucial para o estudo foi a “você já teve relação sexual com alguém do mesmo sexo?”. E saíram em busca de coincidências genéticas em quem respondeu “sim”.
Mais especificamente, eles analisaram polimorfismos de nucleotídeo único (SNP). Revisão rápida: os seus genes contêm instruções para fabricar proteínas. Essas instruções estão armazenadas em um “alfabeto” de quatro letras: A, T, C e G (essas letras, na verdade, são quatro moléculas que desencadeiam certos processos bioquímicos porque aparecem em uma certa ordem. Mas isso não vem ao caso).
Os SNPs são nada mais do que variações dessas letras que mudam de uma pessoa para outra. Para o mesmo gene, eu posso ter uma letra “C” no mesmo lugar que você tem um “T”, por exemplo, e isso pode (ou não) se traduzir em diferenças.
A principal conclusão do artigo é que não existe nenhum gene ou SNP único que seja determinante nessa questão. Não há um trecho do DNA em que trocar um “A” por um “C” torna uma pessoa hétero ou homo. É fato, porém, que o DNA pode explicar algo entre 8% e 25% da sexualidade humana. Acontece que essa influência é poligênica, ou seja, depende de várias regiões do material genético trabalhando em conjunto, de uma maneira complexa.
Para ser mais preciso, o artigo identificou cinco SNPs diferentes, cada um num cromossomo distinto, que parecem ter algum impacto. Um deles, por exemplo, está ligado a uma maior chance de homossexualidade masculina (ainda que pequena) e fica localizado numa região do DNA relacionada a reconhecimento de odores – algo interessante, já que o olfato já havia sido ligado à atração sexual em outros estudos.
O estudo também foi emblemático por incluir uma grande amostra de mulheres – historicamente, a homossexualidade feminina foi bem menos estudada, e é bastante provável que ela tenha origens distintas, mas ainda menos compreendidas. De fato, os cientistas identificaram dois SNPs que parecem estar relacionados apenas à homossexualidade masculina, e um que era exclusivamente feminino.
Essa, porém, é só a ponta do iceberg. O estudo, apesar de ser o mais completo do tipo, também teve suas limitações: não considerou exatamente a orientação sexual, mas o comportamento; pessoas que já tiveram relações íntimas com outras do mesmo sexo foram automaticamente contadas como não heterossexuais, o que não é necessariamente verdade, e vice-versa. Isso só mostra a dificuldade de estudar o tema.
No útero
Se os genes não explicam tudo – e sabemos que não –, quais outros fatores entram na jogada? Estudos e mais estudos já provaram que a sexualidade não pode ser moldada à força ou “ensinada”, em nenhuma fase da vida, por conta de influências externas. Mas existe uma exceção. Um ambiente capaz de influenciar nossa orientação, porque é nele que nossos corpos e cérebros se formam: o útero.
As primeiras especulações focaram na exposição do feto a diferentes níveis de hormônios durante a gravidez. À primeira vista, isso pode remeter a alguns projetos de “cura gay” do século passado – que se baseavam na ideia errada de que a homossexualidade é fruto de falta de testosterona, e torturavam homossexuais com injeções de hormônio. Calma: não estamos falando disso, e ser gay não é fruto de um desbalanço na tireoide ou qualquer coisa do tipo.
Acontece que, no útero, a exposição a diversos tipos de hormônios é, sim, responsável por diversas características do indivíduo. Na década de 1990, houve pesquisas idôneas sobre uma região cerebral que seria diferente entre homens gays e homens héteros, possivelmente causada por diferenças hormonais intrauterinas. Esses achados, porém, nunca foram totalmente reproduzidos por outros laboratórios, e a hipótese perdeu força.
Uma das dificuldades de estudar essa hipótese é que, obviamente, cientistas não podem alterar artificialmente a quantidade de hormônios que um feto recebe numa gestação para ver o que acontece. O que é possível fazer é estudar casos em que naturalmente acontecem flutuações. Com isso, as poucas evidências que temos hoje sugerem que a hipótese dos hormônios na gestação não é uma grande influência na homossexualidade masculina… mas talvez seja na feminina.
Efeito caçula
Uma outra hipótese envolvendo o ambiente uterino foi estudada a fundo – e há muito mais evidências a seu favor. Três décadas atrás, dois cientistas notaram que homens gays tinham, em média, mais irmãos mais velhos do que homens héteros. O número de irmãs, porém, não parecia fazer qualquer diferença.
Eles e outros pesquisadores estudaram o tema a fundo e chegaram a uma conclusão bastante peculiar: para cada filho homem que nasce da mesma mãe, as chances de ele ser gay aumentam em algo entre 33% e 50% em relação ao irmão anterior, mais velho. Note que isso não significa que, em algum momento, um irmão caçula vai ser necessariamente gay. Se as chances do primogênito ser homossexual forem 2%, a probabilidade do segundo passa a ser algo como 3%, a do terceiro, 5% e assim por diante.
Em suma: a ordem de nascimento de filhos homens influencia a homossexualidade masculina. Esse fenômeno peculiar foi confirmado várias vezes, com amostras de diferentes tamanhos e países, e hoje é tido como fato.
A hipótese mais aceita é que isso tenha a ver com o sistema imunológico da mãe. Quando uma mulher fica grávida de um menino, seu corpo tem contato com uma uma miríade de proteínas inéditas, oriundas de genes do cromossomo Y e, portanto, presentes apenas em homens. Contra esses penetras no baile bioquímico, o corpo da mãe pode criar anticorpos.
Uma dessas proteínas, batizada pelo código NLGN4Y, é importante para a formação cerebral de homens. E mulheres que foram mães de meninos costumam ter anticorpos para atacar essa proteína quando ela aparece em seus corpos.
Em 2017, cientistas analisaram a concentração desses anticorpos em diferentes voluntárias e descobriram que mulheres que tinham filhos gays possuíam um maior número deles do que mulheres com filhos heterossexuais. Dentre essas mulheres, a maior concentração de todas foi entre as que tinham filhos gays depois de outros filhos homens. Coincidência? Parece que não.
Em suma: mulheres tendem a criar anticorpos para a proteína NLGN4Y quando ficam grávidas de meninos – e, quanto mais filhos homens elas têm, maior o nível desses anticorpos. É possível que a ação imunológica da mãe, então, atue de alguma forma na atividade da proteína, o que, por sua vez, resulta em alterações na formação do cérebro dos caçulas gays. A ordem de nascimento, porém, não tem qualquer relação com lésbicas, nem com primogênitos homens gays.
E tudo bem: nenhuma hipótese, isoladamente, explica todo o leque de atrações e amores que nós exibimos. Todos os estudos que temos até agora só nos permitem tirar uma conclusão: a sexualidade humana é um fenômeno muito complexo, determinado por combinação de fatores genéticos, intrauterinos, evolutivos e, possivelmente, muitas outras variáveis que ainda nem começamos a desvendar.
O que sabemos, é claro, é que nossa sexualidade não é uma doença, não é uma escolha e não pode ser mudada na marra (ainda que variações na sexualidade de uma pessoa possam ocorrer naturalmente – há quem sinta atrações diferentes depois de adulto, por exemplo). Só há uma maneira de saber a orientação sexual de alguém: perguntando à pessoa. E, claro, respeitando-a o suficiente para que ela se sinta confortável de expressá-la como bem entender.