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A bebida das visões

Conhecido há milhares de anos pelos índios da Amazônia, o chá do Santo Daime atrai cada vez mais a atenção de farmacologistas e psiquiatras no mundo. Nos Estados Unidos, um empresário já patenteou uma das plantas usadas na infusão.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 31 mar 2000, 22h00

Ivonete D. Lucirio

A cor da bebida varia entre o ocre e o marrom-escuro. O gosto é mais amargo que o de um suco de laranja esquecido fora da geladeira. E os efeitos mais comuns são vômito e diarréia. Mas nada disso impede que ela seja consumida regularmente por índios da Amazônia ou pelos moradores de grandes cidades que freqüentam os rituais de seitas religiosas como o Santo Daime e a União do Vegetal. Ela também provoca alucinações e visões místicas.

Chamado de daime ou vegetal por seus adeptos, o chá é mais conhecido pelos antropólogos como ayahuasca – cipó dos espíritos ou vinho dos mortos em quéchua, língua indígena peruana. Obtido pela fervura de duas plantas amazônicas – o cipó jagube, ou mariri (Banisteriopsis caapi), e o arbusto chacrona (Psychotria viridis) – , ele é usado há milênios pelos pajés da floresta. Para eles, o chá é capaz de livrar o corpo e a alma de toda impureza, fazer a mente viajar no tempo e no espaço e abrir a comunicação com os antepassados e as forças da natureza.

Não é o tipo de coisa na qual os cientistas acreditam, mas o fato é que a ayahuasca vem atraindo cada vez mais interesse na comunidade acadêmica. Alguns estudos indicam que ele ajuda a combater a dependência alcoólica. Em 1996, os psiquiatras Charles Grob, da Universidade da Califórnia, e Eliseu Labigalini, da Universidade Federal de São Paulo, avaliaram um grupo de quinze usuários da bebida. Alcoólatras há vários anos, eles haviam abandonado o vício semanas após começarem a tomar o daime. Mas ninguém arrisca ainda indicar o uso do chá como terapia. “A amostragem foi pequena”, diz Labigalini, que continua investigando como o daime pode contribuir também no tratamento da dependência de crack e cocaína.

A briga pelo cipó

Junto do interesse médico, logo vêm os interesses econômicos. Já em 1986, o americano Loren Miller, da Corporação Internacional de Plantas Medicinais, na Califórnia, pediu a patente de uma variedade do cipó Banisteriopsis caapi. Correu o boato de que ele pretendia criar um refrigerante. Mas Miller nega. “Meu interesse é apenas científico”, garantiu ele à SUPER. “A planta foi investigada para o tratamento de câncer, de angina e como anti-séptico, mas nenhum efeito medicinal foi encontrado.”

Movido ou não por interesses financeiros, o registro da patente provocou protestos de grupos internacionais como a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica, do Equa-dor, e a Coalizão Amazônica, sediada em Washington. Em março de 1999, ambas pediram a suspensão da patente. Desde então, o processo permanece sob avaliação do Escritório de Patentes de Marcas dos Estados Unidos. “É uma ofensa aos povos indígenas patentear uma planta sagrada para eles”, diz a secretária da Coalização, Betsy Boatner. Um forte argumento contra a patente é que o vegetal já foi descrito cientificamente há mais de um século.

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Chá age no cérebro e cria alucinações

Com os olhos abertos, as luzes parecem dançar. As cores ganham uma intensidade fora do comum. Fechando-se os olhos, manchas brilhantes e pulsantes transformam-se em animais da floresta, como onças e serpentes. Assim são as descrições mais comuns das visões provocadas pela bebida – também chamadas de miração, no Santo Daime, e burracheira, na União do Vegetal. Essa alteração da consciência levou o Ministério da Saúde a proibir o uso do chá no início da década de 80. Mas dois pareceres do Conselho Federal de Entorpecentes liberaram o consumo, desde que em rituais religiosos.

Existem mais de vinte grupos com autorização para tomar o chá. O Santo Daime e a União do Vegetal, instalados em várias cidades brasileiras, são os mais conhecidos. “Apesar das visões proporcionadas pela mistura, ela não causa dependência física”, disse à SUPER o psiquiatra Charles Grob, da Universidade da Califórnia. Esse argumento não é suficiente para convencer o governo de outros países onde há representações desses grupos religiosos, como Estados Unidos e Alemanha. Lá a bebida é proibida.

Antidepressivo natural

“A forma de ação do chá ainda não é bem conhecida”, diz o psiquiatra Glacus de Souza. “Mas está claro que ele altera a percepção dos estímulos externos”. Por isso, o daime é colocado na categoria das drogas chamadas perturbadoras do sistema nervoso, a mesma da maconha e do LSD.

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O efeito alucinatório, que dura de alguns minutos a até mais de 1 hora, é resultado principalmente da ação de uma substância chamada dimetiltriptamina, encontrada nas folhas da chacrona. Já o cipó jagube contém três alcalóides chamados harmina, harmalina e tetrahidroharmina. Sua ação também se dá no cérebro, aumentando a quantidade do neurotransmissor serotonina, responsável pelas alterações de humor (veja infográfico).

A ação da bebida no sistema nervoso não é muito diferente do funcionamento de antidepressivos como o Prozac. A fluoxetina, seu princípio ativo, impede que a serotonina seja recaptada pelo neurônio depois de liberada. Assim, uma quantidade maior fica em circulação. Por isso, quem toma esse medicamento deve esquecer o chá. Tanto um quanto o outro deixam uma quantidade maior do neurotransmissor disponível. Sobrepostos em doses elevadas podem provocar até derrame cerebral.

Para o farmacologista americano Dennis MacKenna, uma das maiores autoridades no assunto, existem poucos temas tão fascinantes quanto a ayahuasca. “É um estudo que combina Antropologia, Botânica, Química, Neurologia e as ciências do comportamento. Ele pode até nos ajudar a revelar alguns segredos básicos da bioquímica dos sonhos, por exemplo.”

Rituais buscam um mergulho interior

Nenhuma seita moderna descobriu a ayahuasca. A primeira descrição do consumo da bebida é de 1855, feita pelo britânico Richard Spruce, mas há evidências arqueológicas de que ela já fazia parte dos hábitos indígenas há 5 000 anos. Sua utilização em rituais religiosos é uma tradição corriqueira entre os pajés de várias tribos amazônicas do Brasil, do Peru e do Equador.

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Foi no meio da mata, com curandeiros indígenas, que o seringueiro maranhense Raimundo Irineu Serra conheceu o chá. Certo dia na década de 20, sob efeito da ayahuasca, Irineu teve a visão de uma senhora, sentada em um trono, que se identificou como Nossa Senhora da Conceição. Sob sua inspiração, e sempre sob efeito da bebida, ele se embrenhou na floresta para receber da santa os ensinamentos da igreja que iria fundar. Essa é a história contada pelos seguidores do Santo Daime, seita criada por mestre Irineu, originalmente em Rio Branco, no Acre, com o mesmo nome que ele deu ao chá. A origem desse batismo está no pedido que aparece nos hinos cantados durante os rituais, em versos como “dai-me força, dai-me luz, dai-me amor”.

Nascido com princípios católicos, o Daime abriga hoje kardecistas, umbandistas e até céticos, somando cerca de 2 000 adeptos no mundo todo. A religião da mata se espalhou para os centros urbanos do Brasil, Europa, Estados Unidos e Japão e, nos tempos de desorientação de hoje, é procurada por intelectuais, médicos, psicólogos. O mesmo fenômeno aconteceu com a União do Vegetal (UDV), a maior organização baseada no uso do chá. Nascida em 1961, em Rondônia, e tendo como fundador outro seringueiro, mestre José Gabriel da Costa, a União conta com 6 000 seguidores espalhados por todas as grandes cidades brasileiras.

Cerimônia terapêutica

Os rituais do Daime e da União do Vegetal buscam, acima de tudo, a introspecção e a autoconsciência, e o chá é o veículo principal para consegui-las. Mas, no Daime, não é o único. A dança, que pode se estender por mais de 10 horas, e os hinos de letras simples e repetitivas ajudam na concentração mental, até se chegar às mirações. “Apesar de a bebida ser considerada um alucinógeno, a palavra visão descreve melhor o que acontece durante o ritual”, diz o psiquiatra Charles Grob.

“Elas são geralmente de cenas positivas ou de seres mitológicos. Não são assustadoras como é típico nas alucinações”, explica ele.

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Aos céticos pode ser apenas o efeito químico das plantas no cérebro. Mas, para os crentes, o chá destampa o inconsciente e abre o caminho para o auto-entendimento, numa espécie de psicanálise da floresta. Ela seria a recompensa para o gosto amargo do vinho dos espíritos.

Para saber mais

Guiado pela Lua, de Edward MacRae, Editora Brasiliense, São Paulo, 1992.

Na Internet

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https://www.udv.org.br

https://www.santodaime.org

Algo mais

A Igreja Nativa Americana, fundada pelos índios da América do Norte, utiliza em seus rituais o cacto peiote. Ele contém a substância alucinógena mescalina, tornada mundialmente famosa na década de 70 pelos livros do antropólogo Carlos Castañeda.

Receita da mata

A preparação do chá também é um ritual, chamado de feitio ou preparo.

1. Cipó masculino

O jagube, considerado o princípio masculino da bebida, é cortado em pedaços iguais. Assim, acredita-se que todos que tomarem a bebida receberão seus benefícios nas mesmas proporções.

2. Folha feminina

O arbusto chacrona é visto como o princípio feminino do chá e, por isso, suas folhas são separadas pelas mulheres.

3. Limpeza

Primeiro, o cipó é raspado para retirar terra, fungos e outras impurezas. Depois, é batido até ficar completamente triturado, com as fibras bem expostas.

4. Horas no fogo

Depois de limpo, o cipó macerado é misturado com a folha e a água em um grande caldeirão. Os dois vegetais irão ferver durante horas.

5. Pronto para beber

Afinal, o chá é coado. Logo que fica pronto, o gosto é pouco intenso e adocicado. O sabor forte aparecerá depois, com a fermentação dentro das garrafas.

Química na cabeça

Os compostos presentes no daime alteram a transmissão de sinais neuronais

1. Normalmente os neurônios – as células nervosas do cérebro – liberam neurotransmissores para que os impulsos nervosos passem de um para outro carregando informações. Um desses neurotransmissores é a serotonina.

2. A folha da chacrona é rica em uma substância chamada dimetiltriptamina. Sua molécula é semelhante à da serotonina e se encaixa nas regiões destinadas ao neurotransmissor, aumentando seu efeito. Assim, aparecem as visões.

3. Mas, quando há muita serotonina, entra em ação a enzima monoaminoxidase, que destrói as moléculas para garantir o equilíbrio neurológico. Os alcalóides presentes no cipó impedem a formação dessa enzima. Assim, sobra serotonina, o que intensifica as visões e muda o humor de quem tomou o chá.

Retratos do delírio

Artista peruano é especialista em pintar as visões da ayahuasca.

As miragens provocadas pela ayahuasca são difíceis de descrever em palavras. Por isso, o artista plástico Pablo Amaringo – autor das imagens que emolduram estas páginas –– dedicou sua vida a pintá-las. Pablo, que mora em Pucallpa, no Peru, não é um pintor comum. Ele descende de uma linhagem de xamãs, os sacerdotes indígenas, meio bruxos, meio curandeiros, e chegou a desempenhar essa função em seu povoado. Além de famoso como o pintor das visões da ayahuasca, Amaringo fundou a Escola Amazônica de Pintura Usko-Ayar, onde ensina suas técnicas de artes plásticas.

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